Para nós era sempre um dia de festa. Chovesse ou fizesse sol, era certo e sabido que iamos sempre, no primeiro domingo de Julho, em romaria, vale acima, pelas Azenhas, até à capela do S. Paio, no Prazo.
Manhã ainda cedo, iam os homens, mota acima, caminhando e conversando, até lá acima, para preparar as coisas. Como de costume, a senhora Aurora, dos Monteiros, que tomava conta da capela, tinha tudo muito arranjadinho. A capela muito limpinha, o altar com alva toalha rendada, flores e a lamparina do azeite acesa.
Meu Pai era, como os irmãos e muitos amigos, caçador. Ou, pelo menos, um curioso pela caça. Não era, propriamente, para apanhar coelhos ou perdizes que, na respectiva época, lá ia com os amigos, espingarda ao ombro ou, como algumas vezes, sem espingarda mas com um varapau, como batedor. Para ele era um prazer o contacto com a natureza. Alguns episódios espero recordar.
Como tal, conhecia todos os recantos onde, no meio dos montes ou nas baixas férteis, havia fontes de água pura. Naquele tempo ainda as fontes corriam água e não conheciam a poluição! E no vale de S. Paio, pouco antes de chegarmos à capela, havia, e felizmente ainda existe, uma pequena bica, de água pura e fresquissima, que nos deliciava quando a bebiamos por uma folha de couve ou horto a servir de copo.
Uma pequena gruta, interiormente recoberta de avenca, por cujas folhas se via a água a pingar para uma pequena bacia escavada na rocha e de onde corria em fio para uma vala, com uma telha a servir de cano.
Estava, um dia, meu Pai internado no hospital da Universidade de Coimbra, onde tinha sido operado ao estomago. Em Julho o calor era bastante e, não podendo beber água, a sede atermentava-o. Prometeu, então, que se corresse tudo bem, ele iria com a família, no primeiro domingo de Julho, passar o dia ao S. Paio e beber um pouco daquela fresca água que ali tanto lhe lembrava.
Foi assim que começou. Ao princípio só alguns, poucos, familiares lá iam. Depois mais familiares e amigos começaram, também, a esperar ansiosamente este dia de confraternização.
Como atrás ia dizendo, mal os homens chegavam lançavam ao ar dois ou três foguetes, que estralejavam alegremente no ar, como que querendo anunciar, á aldeia lá em baixo, que já tinham chegado.
Preparavam-se os locais para depois se estenderem as colchas e as toalhas e o sítio onde se iriam disputar as provas desportivas, normalmente partidas de malha.
Entretanto o tempo ia correndo e às tantas, começava-se a olhar, com alguma ansiedade, cá para baixo, para a mota, procurando vislumbrar a vinda das mulheres que, saindo mais tarde, depois de arranjarem o farnel, tinham que subir até à capela mais pachorrentamente, pois as cestas à cabeça ou os cestos nas mãos, iam bem carregadinhos com os comeres. Os garrafões com o vinho já os homens tinham levado mas, mesmo assim, a peso certamente era muito.
Quando chegavam junto à capela eram horas de almoço. Apetite era coisa que não faltava. Os ares puros e frescos faziam mais efeito que o melhor aperitivo! No entanto, primeiro, era sempre o tempo das orações ao Santo.
Estendidas as toalhas, onde se dispunham os tachos com a comida, os talheres, pratos, copos, etc., sentávamo-nos nas colchas e eis-nos saboreando o almoço. Havia variedade, pois um dia não são dias. Peixe frito, galinha assada no forno ou de cabidela, coelho, etc. A sobremesa é que não era muito variada, normalmente arroz doce. E fruta, que sabia muito bem.
Bem comidos e bem bebidos, havia que passar o tempo até à tarde. Uns, especialmente as mulheres, depois de arrumados os tachos e lavada a louça, cá em baixo no ribeiro, aproveitavam para uma soneca. Algumas, por embirração às formigas, não dormiam mas faziam renda. Os homens, esses, dormiam, jogavam às cartas ou à malha, bebiam um copito de vez em quando...
A partir de determinado ano já havia bailarico. Do grupo passou a fazer parte o Diamantino Rocha, o Diamantino alfaiate ou Diamantino coxo, como lhe chamavam, que não se esquecia em casa da sua sanfona, e era ouvi-lo a tocar, sentado num pequeno tronco à sombra, e a dar e dar ao fole. Havia, algumas vezes, mais músicos. Meu Pai e meu Tio José tocavam bandolim e viola, respectivamente. O Manuel Lindote tocava viola e ou pífaro. E havia mais. Parece que estou a ver dançar aquelas danças de roda (polcas e mazurcas) que eram as modas dos arraiais de então...
Pela tarde, e porque o almoço já lá ia, era tempo de vir toda a gente para baixo, para junto da azenha, perto da fonte, onde novamente se estendiam as toalhas e se atacava as sobras do almoço, numa merenda farta. Havia sempre comer com fartura e era ver os homens olharem para os farnéis dos vizinhos à procura dum petisco diferente, que lhes fizesse boca para mais um copito. Era mais fácil acabar a pinga do que o comer. Vinham sempre ainda os tachos com alguma coisa que se não estragava, pois no dia seguinte já havia o jantar feito.
Quando se começava a avizinhar a noite, embora ainda com bastante ar de dia, porque o caminho era estreito e algo acidentado, até aos Canos, eis-nos de regresso. Era sempre cantando que se efectuava a caminhada até Tavarede.
Chegados a casa, mal havia tempo de lavar. O sono, activado pelo passeio e pelos abusos dos petiscos e das pinguitas, obrigava a fechar os olhos e o corpo pedia o descanso da cama.
No dia seguinte a vida recomeçava com a rotina habitual. Trabalho e mais trabalho. E, entretanto, começava-se a contar o tempo em falta para a romaria seguinte...
Até que um dia a romaria acabou. Chegou um ano em que alguém entendeu que o que era uma romaria familiar ou de amizade, também havia de ser de negócio. Foram para lá, armaram uma tenda, e vá de vender vinho e outras bebidas às imensas pessoas que entretanto iam até lá, especialmente depois de almoçarem em casa. Pessoas estranhas. É claro que, copo atrás de copo, acaba por dar mau resultado. Tudo com estranhos, mas houve zaragata e pancadaria. Resolveu-se, de comum acordo, acabar com a romaria ao S. Paio.
No ano seguinte, somente meu Pai com os familiares mais chegados, é que foram dar cumprimento à promessa. Enquanto foi vivo e teve possibilidades físicas o fez. Foi pena!
Era um dia diferente e, se não fosse a ambição do negócio, tudo teria continuado. Talvez, até, a promessa que um dia meu Pai fez se tivesse transformado, após a sua morte, numa verdadeira romaria da aldeia. Em Tavarede não há outra.
E agora, tantos anos depois, a capela lá continua. Ainda há pouco tempo lá estive. Muito arranjadinha mas já não no meio dos pinheiros e das acácias, mas de eucaliptos que também chegaram à encosta da capela do S. Paio.
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