domingo, 26 de julho de 2015

Tavarede - a terra de meus avós - 16

E quanto mais?...

        
Muitas outras coisas teria a recordar. Mas, além de não querer alongar em demasia estas recordações, penso que já deixei uma imagem, talvez ténue, da vida da minha aldeia nos recuados tempos da minha infância e mocidade.

         Tínhamos uma vida feliz. Tavarede, já o disse mais do que uma vez, era uma terra agradável. E, sobretudo, tinha uma vida sossegada e pacata, aonde raramente a tranquilidade era perturbada. Nos nossos tempos livres, andávamos à vontade por todo o lado.

         Aos domingos, se a parte da manhã era ocupada para actualizarmos os apontamentos da escola e outras tarefas como, por exemplo, limpar a bicicleta, o nosso meio de transporte, a parte da tarde, e isto quando não havia bailarico ou teatro, era dedicada a grandes passeios pelos arredores, em grupos mais ou menos numerosos.

         Umas vezes íamos pela Várzea, onde apreciávamos aquela enorme cobertura verde das leiras das nossas afamadas couves, atravessávamos a Quinta do Robim e seguíamos até ao Casal da Robala, regressando pela Vergieira e pela Chã. Outras, caminhávamos pela estrada da Chã a Caceira, passávamos o Vale do Porco e descíamos áquela povoação, regressando pelos Carritos. Estes passeios eram mais usuais nos meses de Março e Abril, pois era a época propícia à busca dos saborosos rebentos dos espargos bravos, que são saborosa merenda em omeleta. Os valados e os pinhais eram cuidadosamente vasculhados à sua procura.

         Por falar em merenda, recordo quando, com meu pai, ia ao quintal do Ferreira, à procura dos caracois grandes, as caracoletas, que rastejavam lentamente nas ervas das valas e no valado do ribeiro. Apanhávamos grande quantidade e, chegados a casa, meu pai cozia-os com água e sal, após o que aproveitava só o corpo do bicho. Laváva-os em vártias agues, até ficarem completamente limpos. Fazia, de seguida, uma enorme omeleta e só digo que era um petisco de primeira…

         No verão e outono, as nossas voltas, habitualmente, encaminhavam-se pelo caminho do Peso ou pelas Azenhas e Pejeiros, para as encostas da Serra donde, muitas vezes, passávamos ao Saltadouro. Andávamos muito, pois não era raro chegarmos a subir ao monte Crasto, da parte de cima do Prazo.

         Mas, forçoso é dizer a verdade, estes passeios não eram totalmente inocentes. Não seguíamos sempre pelos caminhos normais. Aqui e além, embrenhávamo-nos pelo meio dos pinhais ou das vinhas, em direcção aos sítios onde sabíamos estarem as árvores de fruta que, com relativa segurança, podíamos “visitar”.

         Claro que estas “visitas” eram feitas com o maior cuidado, não fosse dar-se o caso de algum dos donos também ter tido o “desejo” de dar um passeio às suas terras… Recordo algumas das “visitas” mais usuais: na encosta da Serra, da parte de cima da capela do S. Paio, eram ameixas; no vale do Prazo, as laranjas e as nêsperas; a caminho do Crasto, os pêssegos estavam à nossa espera, bem como nas encostas do Saltadouro; na Vergieira, que belas peras francesas então havia! Condados e Pejeiros, bem sabíamos onde estavam as mais perfumadas maçãs, etc.

         Algumas vezes, tínhamos de fugir, a bom fugir. Ali aos Quatro Caminhos, a seguir ao portão da entrada da quinta da Borlateira, havia entre o caminho para a casa lá no alto e o pinhal que dava até à estrada da Serra, um lindo e grande laranjal. Era uma tentação para nós, ver as laranjas tão amarelinhas entre a verde folhagem… O pior é que muito poucas vezes as conseguimos provar, por parece que o Ti Júlio adivinhava as nossas intenções e mantinha-se por ali à espreita tardes inteiras… E as uvas?... Essas, havia em abundância por todo o lado e nós bem conhecíamos os locais das videiras que as davam mais doces!

         Já referi, noutro local, que, durante os meses de verão, quase todos íamos trabalhar para o comércio, no Bairro Novo. É curioso que, há já bastantes anos, não se trabalha aos sábados ou só se trabalha da parte da manhã. Pois naqueles nossos tempos o sábado era o dia em que o comércio estava aberto até mais tarde. Nunca saíamos antes das dez ou onze horas da noite. Tanto nós, rapazes, como as raparigas que, no comércio ou nas alfaiatarias, também trabalhavam até àquelas horas. Como não havia transportes para Tavarede, as carreiras de camionetas entre Figueira e Tavarede só se iniciaram em 1957, e o caminho era mal iluminado e pouco seguro, combinávamos encontrarmos em determinado local para virmos em grandes grupos até Tavarede, para não termos encontros indesejáveis pelo caminho escuro e deserto. Algumas vezes chegávamos tardíssimo aos bailes, e quando os não havia em Tavarede, ainda íamos até Brenha, Quiaios, Alhadas ou outros locais.

         Todos, ou quase todos, entrávamos no teatro. Aliás, éramos viciados pelas colectividades. Quando já tínhamos acabado os nossos estudos e estávamos empregados, podia dizer-se que a casa era “para comer e dormir”, pois o resto do tempo livre era passado na Sociedade ou no Grupo. Naquela era o teatro e neste a dança. Chegávamos a ir, rapazes e raparigas, assistir aos ensaios do Lúcia-Lima para dançar…

         Na Sociedade, quando não tínhamos ensaio de teatro, entretinhamo-nos a ler, na biblioteca, ou com alguns jogos que haviam. Das cartas, o principal era o “marimbo”, com dez feijões a valer um tostão. Também jogávamos ao dominó, às damas e ao xadrez, bem como ao ping-pong.

         Quando se estreava uma peça teatral havia representações aos domingos, em “matinées”. Depois do espectáculo arranjava-se sempre merenda. Algumas vezes eram caranguejos do rio e pilados, de que o Carlos Conde e o José Vasco arranjavam grandes sacadas. Invariavelmente, depois do petisco, vinham as cantigas. Já lembrei meu tio José Medina, ensaiador dos coros do teatro. Era ele um dos grandes entusiastas pela improvisação dos orfeons. Bastavam apenas dois copitos para ele ficar animadíssimo. Inspirado musicólogo, um dos vários que houveram em Tavarede, e lembro Gentil Ribeiro, João Prôa, João Jorge da Silva, José Francisco da Silva, António Ferreira Jerónimo e António de Oliveira Cordeiro, entre mais alguns, foi muito novo regente da tuna do Grupo Musical, que chegou a dar concertos exclusivamente com números musicais de sua autoria. Fundou e dirigiu, durante alguns anos, o Lúcia-Lima. Mas a sua verdadeira paixão eram os coros. Bem disposto por natureza, quando estava animado, juntava em seu redor os coristas. Quando era na Sociedade também se juntavam as raparigas, mas era mais habitual os orfeons serem constituídos só por homens, o que não admira se disser que a maior parte das vezes começavam nas adegas, que se entretinham a visitar!

         Quando lhes faltavam alguns cantores, cujas vozes entendia fazerem falta, não hesitava em ir à procura deles, obrigando-os, muitas das vezes, a sairem de suas casas e irem com ele. Distribuía convenientemente os elementos, pois já conhecia as vozes e começando muito pianinho e subindo gradualmente a
tonalidade, começavam a ouvir-se as usuais cantigas do alecrim, da menina Luísa e tantas, tantas outras cantigas, especialmente dos teatros mais antigos e que tão bonitas eram…

         Assim se passava o tempo na nossa aldeia.

         Também tinhamos o costume de ir aos grilos, no tempo deles. Faziamos gaiolas com os canudos de cana mais grossos, que rachávamos e tapávamos com uma tampa mais larga para abrir a cana, metíamos o grilo lá dentro com umas folhas de alface e pendurávamos à porta da entrada de nossas casas, ao sol. Passado instantes começavam os grilos a cantar. Um dia fomos a eles ao pinhal da quinta do senhor Gaspar de Lemos, ao cimo da subida para o Saltadouro e em frente ao cemitério. Lá andávamos muito entretidos quando, sem saber como, me entrou por uma das pernas das calças um  pequeno sardão. Os saltos que eu dei! Mas o bicho não fez qualquer mal e, tanto pulo dei, que ele saíu pela outra perna das calças! Ainda hoje, o Augustito, das Abadias, me lembra do sucedido!



         Vem a propósito, e para cumprir a promessa feita anteriormente, contra duas historietas, das narradas por meu avô. A primeira, para mim das mais interessantes, é a história da lotaria. Meu avô trabalhava na Companhia do Gaz, na Figueira. Todas as sextas-feiras, de manhã, antes de andar à roda, ia lá vender jogo um cauteleiro, do qual ele dizia o nome, mas já não me recorda qual era.

         Durante anos, jogou todas as semanas e sempre com o mesmo número. Pois, durante todo o tempo, nunca lhe saíu nada, nem sequer uma terminação! Um dia resolveu acabar com o jogo. Nessa sexta-feira, quando chegou o cauteleiro, logo lhe disse que não queria a cautela. O outro insistiu, insistiu, que ele se ia arrepender, mas não o demoveu, pois não jogou mesmo. E não é que nessa semana a sorte grande calhou ao número que ele comprava e, daquela vez, recusára?!

         Na semana seguinte lá apareceu o cauteleiro. “Então, senhor António, eu não lhe disse que se havia de arrepender?”. Tinha razão, respondeu ele, e logo se dispôs a continuar a jogar, e cojm o mesmo número. É claro que semanas, meses e anos se passaram e a má sorte voltou a persegui-lo, pois nem ao menos uma terminação!...

         Desistiu novamente e, então, para sempre. Pois não é que na semana eem que voltou a desistir, mais uma vez a sorte grande saíu ao número recusado?!! Azar dele e azar nosso, pois podíamos estar cheios de dinheiro!

         A outra história, entre as muitas que ele contava, era esta. Todos os anos, e isso era verdade, semeava e colhia batatas que chegavam para a família todo o ano. Também, para isso, comprava a semente no Grémio, de qualidade garantida. Um ano houve, porém, que, por qualquer motivo, se esqueceu de encomendar os sacos da batata de semente. Quando chegou a ocasião, bem as tentou comprar, mas estavam completamente esgotadas. No Grémio e em todo o lado onde as procurou. Desesperado, pois esse ano teria de ir à feira comprar as batatas para o consumo da casa, sempre de qualidade duvidosa, acabou por se resignar, embora já tivesse as terras prontas para a sementeira.

         Casualmente foi à adega, em procura de qualquer coisa, e reparou que, a um canto, estava uma medida de Madeira quase cheia de pequenitas batatas que eram para ter dado ao porco e haviam ficado esquecidas por ali. Tinham ou grelo ou outro e estavam já meio podres. Pois iriam aquelas amostras de batatas para a terra…

         Querem saber uma coisa? Nunca, em tantos anos de lavoura, teve tantas e tão boas batatas como naquele ano! Aquela pequena medida de batatas produziu mais e melhor que os dois ou três sacos das de semente que ele usualmente comprava! Acreditam nestas histórias? Bem, os filhos, pelo menos, não acreditavam…

Por aqueles tempos, quando havia garraiada no Coliseu Figueirense, o gado vinha dos campos do Mondego, de Santo Varão, a pé, conduzidos pelos campinos, e atravessavam a nossa terra, sempre noite alta. A rapaziada sempre teve o costume de brincar com estas passagens do gado. Arranjavam uns chocalhos e, quando começava a escurecer, começavam a correr pela aldeia a fazer barulho, o que logo punha em fuga as pessoas desprevenidas que ocasionalmente se encontrassem na rua.

         Algumas vezes um ou outro garraio tresmalhava, o que dava sempre muito trabalho aos campinos que, depois de levarem os outros ao Coliseu, tinham de andar pelos campos à procura do tresmalhado para o apanhar. A este propósito, transcrevo uma notícia publicada em “O Figueirense”, em Setembro de 1923:

         “Em tempos áureos, em que a praça de toiros dessa cidade era onde está edificado o Jardim Escola João de Deus, a passagem dos toiros era obrigatória por Tavarede.
Predominava então no íntimo - mau íntimo, vamos lá - dos rapazes daquela época o "subido prazer" de espantar o gado à entrada da povoação. Era para eles um praxista pratinho, ou antes, a melhor tourada que podia haver, pois chegaram ao ponto de causarem o adiamento de algumas corridas, pois que o gado não dava a tempo ingresso nas portas do Coliseu.
Os motivos que os levava àquele procedimento era o de os emprezários lhes não concederem o direito de assistirem às embolações, senão mediante o pagamento de uma determinada importância.
Protestavam, mas sempre em vão. Todavia, quando os emprezários souberam o motivo de tal espantamento, que afinal lhes causava enormes prejuízos, concederam então a entrada franca a toda a gente que tivesse vontade de ver as embolações.
Sucediam coisas interessantes com a espera dos toiros. Por exemplo esta: o sr. António Teodoro, ao tempo aficionado tesíssimo, montava bem e fazia proezas várias, chegando mesmo a arriscar a sua própria vida Sucede que duma certa ocasião desmanaram-se os toiros, um dos quais entrou para um quintal e subiu para o telhado duma casa que ficava à superfície do mesmo quintal, sendo difícil retiral-o dali.
Depois o "saltitante pardal" fugiu para o Quintal da Azenha, que fica por detraz da capela da Junta Paroquial. Como teimasse em não sair de lá, o sr. Teodoro, que ainda hoje vive nessa cidade, lembra-se lançar-lhe um laço. Assim, pôz em prática o seu plano, valendo-lhe no entanto à vida uma árvore que ali havia e para onde trepou com a rapidez dum gamo, pois que o toiro, sentindo-se preso pelo laço, arrancou sobre ele, marrou no tronco da árvore com uma tal violência que momentos depois caía por terra sem vida, pois esfacelara o craneo!
Ainda hoje contam proesas interessantes sobre a passagem de toiros aqui por Tavarede em tempos que já não voltam. E se hoje toquei neste assunto, foi devido à espera do último sábado, em que o gado entendeu por bem não chegar ao seu destino sem aqui passear primeiro as ruas da terra, alguns quintais, etc, metendo sustos graúdos a muita gente, "dando que fazer a muitas lavadeiras" e arreliando, a ponto de fazer perder a paciência aos campinos, que eram em número bastante avultado.
Foi aqui uma tarde de autêntica tourada, em que se não usou das etiquetas exigidas pela praxe tauromáquica para o bom sucesso da "lide", de que saíram ilesos os protagonistas e os intérpretes da "cómica farça"...

E acabo estas recordações com a nota de dois fenómenos naturais que presenciei na nossa terra. Em Fevereiro de 1941, um violento ciclone passou por Tavarede “árvores derrubadas, chaminés caídas, telhados levantados, etc. e as sementeiras ficaram completamente arrasadas”, lia-se numa local publicada no “Jornal – Réclamo”. E no ano de 1957, em Janeiro, Tavarede foi surpreendida com o espectáculo deslumbrante de uma aurora boreal. Eis a notícia:

         “Fomos ontem, segunda feira, espectadores de um dos mais soberbos espectáculos da natureza.
         Cerca das 22 e 30 horas uma aurora boreal estupenda deslumbrou os nossos olhos e os de quem, como nós, correu á rua para apreciar o esplêndido fenómeno.
         O céu, do lado norte, parecia de fogo, e, entremeando um vermelho lindíssimo, alguns raios solares davam-lhe um aspecto maravilhoso.
         Que soberbo espectáculo!

         Alguns, mais velhos, recordavam uma outra que já tinham observado há bastantes anos. Mas nós, que nunca tínhamos visto nada de semelhante, abrimos os olhos e olhávamos admirados para o céu, até que desapareceu o fenómeno”.

Tavarede no Teatro - 7

         Entretanto, entram em casa para prepararem as coisas para a festa, pois os visitantes não haviam de demorar muito mais. E chega o regedor com a filha. Ele vem insistindo com Capitolina para que ela procure agradar a Tomás Castanho, bom partido para ela sob todos os aspectos, e ela mostrava que já estava bastante inclinada para o brasileiro. No dueto que cantaram nota-se isso perfeitamente.

                    (pai)   Cá pelos sítios
                               Não és capaz
                               De descobrir
                               Melhor rapaz.
                               Ele não é velho
                               E tem dinheiro;
                               É um bom partido
                               O brasileiro.

               (filha)           Por ele já sinto
                                    No coração
                                    A chama viva
                                    Duma paixão!

         Quando se juntaram os donos da casa e ao fazerem as apresentações, Capitolina beija Flor de Chá nas faces, a qual fica muito admirada.

         Eduardo Leirosa diz-lhe que não estranhe. É costume do país! E explica-lhe: “Ora, ouve, querida. Em Portugal há o beijo infantil, que é puro; o beijo maternal, que é santo; o beijo conjugal, que é postiço e da moda; o beijo entre amigas, que destila fel; o beijo furtivo entre namorados, que sabe a licor de rosas; e, finalmente, o beijo entre amantes, que é o rastilho para uma descarga de... dinamite!”.

         Recordo a canção do beijo que então cantavam.

Flor de Chá -   
  Um beijo dar, na China toda,
 É uma excepção.
 Só noivo à noiva, ao fim da boda,
 Lhe beija a mão.

Leirosa -      
 Um beijo assim não tem agrado,
 Não tem sabor
 Como o que furta o namorado
 Ébrio d’amor.

Flor de Chá -     
 Então o beijo
 Em Portugal,
 Pelo que vejo
 Deve ter sal...
 Corar o rosto
 Que o recebeu
 Ter tanto gosto
 Que eleve ao céu!

Capitolina
  Beijo d’encanto
Que d'alma vem.
  É beijo santo,
beijko de mãe
 Um dá loucura,
 Outro arrebata...
 Se muito dura
 Quasi que mata.

Flor de Chá
 Quando em terno devaneio
 E bem junto de quem se ama,
 Qual o modo, qual o meio,
 D’acender ardente chama?

Castanho -  
 Se ela não é macambuzia,
 Ele todo aberto em sorrisos
 De beijos furta uma duzia
Ou quantos forem precisos.

Todos -           
  Um beijo em carinha cheia
  Vagaroso e bem cantado,
   Sabe a quem o saboreia
  A leite creme queimado...
  Há beijos muito apressados
E beijos que não têem fim,
  Mas os mais saboreados
  Cá p’ra mim
  São assim!
  Assim!

         Quando ficam sós, Capitolina e Castanho acabam por confessar o seu mútuo amor. E pouco depois de entrar um grande rancho de raparigas e rapazes da aldeia que vêm cumprimentar Flor de Chá, Castanho diz na presença de todos, dirigindo-se ao pai de Capitolina: “Agora que estão feitas as apresentações, vou fazer um pedido ao senhor regedor e a minha felicidade depende da resposta que me for dada. Sr. José Badaleiro: amo a sua filha! Desde a minha primeira estada nesta terra que senti por ela a maior simpatia e compreendi que seria feliz tendo-a por esposa. Creio que não lhe sou indiferente. Peço-lhe, pois, a mão de sua filha. Quer dar-ma?”.

         Ora se queria... Desejoso por isso estava ele.

         Com o grupo tinham vindo, também, as seis Emílias da aldeia. Aliás, na aldeia, “todos os homens são Manueis e todas as mulheres são Emílias...”. Era a Emília Castanheira, que já esteve para casar sete vezes e sempre ficou a assar castanhas; a Emília Tomateira, que cultiva os maiores tomates da freguesia e que guarda a semente da especialidade; a Emília Gaiteira, que toca gaita de foles; e Emília Canastreira, que parece uma canastra velha; a Emília Pevideira, que vende pevides; e muitas outras mais...

         Um pouco mais tarde vêm os cabos de ordens que, para descarga da consciência, resolveram vir contar a partida magicada pelo Pinga-Amor, na qual tinham colaborado e de que estavam arrependidos, pedindo que lhes perdoassem.

         Logo foram perdoados. Pois não foi graças à mentira, que Eduardo Leirosa encontrára a sua felicidade com Flor de Chá? E estavam nisto quando aparece novamente o Gil Chinguiço, com um ramo de limonete escondido, e que entra gritando: “Cá está a Lúcia-Lima!”.

         Todos ficam muito admirados quando ele lhes mostra, triunfante, o ramo do limonete. E perante o pasmo de todos, lê um papel que lhe tinha dado o senhor Cura: “Lúcia-Lima, arbusto verbanáceo, de perfume agradável e intenso, vegetando bem nos terrenos frescos. Foi importado do Malabar em 1502, pelo capitão-mór D. Sancho Fagundes de Encerrabodes, que residiu em Tavarede há mais de três séculos. Serve para dar cheiro aos baús de roupa e é muito usado para fazer ramos nas burricadas de Buarcos. Há quem dele faça chá contra as prisões de ventre”.

         E, no meio de grande alegria e risota, cantam a valsa do limonete:

Coro -    
  Das plantas que tem a aldeia
  Outra não há de mais gala;
  E em noites de lua cheia
  Tem um cheiro que regala.

   Quem fizer um ramalhete
   Para dar à sua amada,
   Se el’ não tiver limonete
  É coisa desconsolada.

Uma Voz -   
  Das burricadas luzidas
   Da festa de S. João
 Trazem as moças garridas
  Um grande ramo na mão.

Coro -    
  O limonete caseiro
  É talvez neto da lima...
    Quem quizer sentir-lhe o cheiro
    Basta pôr-lhe a mão por cima.

    Se uma donzela travessa
    Quer-se com ele enfeitar
    Com três folhas na cabeça
    Fica bonita a matar.

Uma Voz -       
  Eu não sei de flor mais bela
  De quantas há no jardim.
  Anda sempre na lapela
  De quem suspira por mim.

Coro -    
  Veio das matas frondosas
  Da costa do Malabar
  Para as donzelas vaidosas
   Cheeirarem bem ao seu par.

         E vem a explicação, pelo Chinguiço, do tal anúncio. “Foi uma brincadeira do carnaval. Ora eu lhes ponho tudo em pratos limpos. Conhecem belamente o Mamede do Casal dos Piratas... O jarreta andou com a mania de casar... O sr. Cura então combinou com o sr. Mateus Caleira uma partida ao melro e mandaram pôr o tal anúncio a ver se ele caía na arriosca. Coisas de entrudo, está bem de ver...”.

         Tudo acaba em bem. O regedor ainda quiz prender o Pinga-Amor e os outros darem-lhe uma “casaca de pau”, mas todos perdoam quando Flor de Chá lhes pede, pois havia sido dessa mentira que lhe tinha vindo a felicidade. E a festa continua na eira da quinta, onde todos cearam e dançaram toda a noite:

                          “Galharda festa
                            Hoje a que há
                            Em homenagem
                            A Flor de Chá.

                            A mocidade
                            Que jamais cansa
                             Entra de gosto
                             Nesta folgança.

                             Também aos noivos
                              Em galardão
                               Se rende preito
                               Do coração.

                               Feliz consórcio
                               Grata aliança!
                              Vá mocidade,
                              Começo à dança.



                         
                 ***

sábado, 18 de julho de 2015

Tavarede - A terra de meus Avós - 15

A matança do porco e vindima


         Eram sempre, para mim, dois dias em cheio. Primeiro, em Setembro, eram as vindimas e, já no inverno, era a matança do porco. Vou começar por esta e nada melhor do que copiar o que se escreve no livro “Figueira do Passado ao Presente – Gastronomia e Culinária”.

         “Não há muitos anos ainda, as famílias dos arredores da cidade criavam o seu porco, alimentado com as sobras das refeições e para o qual se cozinhava propositadamente a “lavagem”, com água, couves e farinha ou sêmea, o que permitia que o toucinho entremeado ficasse mais gostoso.
         A matança, geralmente em Dezembro e escolhida a fase da lua conveniente, segundo a boa tradição popular, era pretexto para a reunião de toda a família. Faziam-se os bolos de sangue, as morcelas, as papas de moado, e conservavam-se na salgadeira os ossos e o toucinho. Preparavam-se os negritos, os chouriços e os presuntos que haviam de chegar para todo o ano, sem falar na banha, nos rojões, no sal de unto e nos torresmos. Os lombos assados no forno eram conservados em banha e comiam-se parcimoniosamente nos dias de festa. Até a cabeça era aproveitada, juntamente com as queixadas, a língua, as orelhas e os miolos, de que se preparava um prato requintado com ovos, pedaços de carne e miolo de pão”.

         Recordo três épocas. Primeiro, nos meus tempos de rapazito, era a matança anual em casa de meus avós paternos, em Tavarede. Já rapazote, passei a ir, todos os anos, a Reveles às matanças em casa de meus tios maternos. Posteriormente, e outra vez em Tavarede, nunca deixarei de recordar a matança do porco, numa casa cujos donos não quero nem posso deixar de recordar nestas histórias, pois sempre foram para mim de uma bondade e de um carinho verdadeiramente excepcionais. Gratamente, evoco as figuras do senhor Elói e da senhora Pureza, em cuja casa, durante tantos anos, fui sempre bem recebido no grupo de amigos que ali se reuniam nestes dias e não só.

Algumas vezes assisti a todos os preparativos que antecedem a matança. O preparar da forte tábua inclinada, o ir buscar o animal ao curral e ao amarrá-lo, fortemente, para estrebuchar o menos possível enquanto era sangrado. O sangue, que corria em esguicho da facada, caía num alguidar de barro vidrado, onde estava um pouco de sal e vinagre e era constantemente mexido com uma colher de pau, para não coalhar.

         Ainda o dia mal tinha rompido e já o porco se encontrava chamuscado e muito bem lavado e esfregado. Era chegado o momento da primeira paragem. Se ao chegarem, os homem “matavam o bicho” com figos secos e aguardente, havia agora petisco de garfo, que constava sempre de bacalhau assado na brasa, temperado em abundância com bom azeite e no qual sobressaíam muitas lascas de alho. A travessa era colocada em cima da carcaça do pobre animal. Para acompanhar, o vinho tinto caseiro.

         Acabado o petisco era o porco amanhado. Nesta altura já havia sido aceso um fogareiro, onde, enquanto trabalhavam, iam grelhando pequenos pedaços de carne. Algumas mulheres encarregavam-se da lavagem das tripas, para os enchidos, enquanto outras iam preparando o almoço. Depois de devidamente amanhado, o animal era pendurado para o enxugo e com as mantas da carne bem abertas e separadas com pedaços de cana, para melhor escorrerem os restos de sangue. Muitas vezes, e quando não a aproveitavam para qualquer enchido, davam-me a bexiga. Vazia e com um fino canudo de cana, enchia-a de ar e servia para brincar, como se fosse uma bola.

         O almoço constava, habitualmente, da tradicional sopa à lavrador, couves com feijão, pedaços de toucinho entremeado e rodelas de bom chouriço, que nadavam em abundância no caldo e que faziam a delícia de todos, comendo-se, até, por gulodice…

         Seguia-se o inevitável sarrabulho, com batatas cozidas. Comia-se até mais não e bebia-se melhor, pois o vinho era bom e à discrição.

         A digestão era feita, pelos homens, na costumada “garujada”. Ao redor da comprida mesa, jogadores e assistentes ali passavam a tarde, ouvindo-se constante cantar de seis, nove e acaba-se a moca… para mais depressa se beber outro copo. É que as taçadas de freiras, entretanto trazidas para a mesa, secavam a boca…

         À noite, o jantar era composto de canja de galinha caseira, febras fritas com batatas igualmente fritas e ovos estrelados, e, como sobremesa, as gostosas papas de moado, polvilhadas com canela. É extraordinário como se comia e bebia naquele dia!

         No dia seguinte era o desmanchar do porco, com as carnes para a salgadeira, e a preparação dos presuntos e dos enchidos, que logo iam para o fumeiro.

         Os dias das vindimas também eram passados no meio da maior alegria. Grupos de homens e mulheres, mais novos ou mais idosos, iam manhã cedo para as vinhas. Pequeno cesto numa mão e tesoura  na outra, lá iam de cepa em cepa colhendo os cachos cuidadosamente. Cesto cheio iam vazá-lo à dorna, que estava em cima do carro de bois à entrada do terreno. Cantava-se muito. E, de vez em quando, molhava-se a goela…

         Eu gostava muito de, com um pequeno cesto enfiado no braço e uma velha tesoura de costura, ir vindimar os corrimões. Cortavam-se melhor os cachos. Depois, quando o carro dos bois vinha trazer as uvas à adega, lá vinha eu sentado ao lado da dorna e a comer cachos doces. Quando a vindima acabava e regressavam todos a casa, era a ocasião da pisa, no enorme balseiro. Eram três ou quatro homens que procediam a esta tarefa. Algumas vezes, agarrando-me por baixo dos braços, também me metiam lá dentro. Diziam que dava força às pernas! Mas eu gostava, de verdade.

         E o mosto lá ficava a fermentar, até ser trasfegado para as pipas, onde continuava a fermentação. Depois era feita a água-pé, juntando uns canecos de pura água ao bagaço e prensando o mesmo, pois ainda continha muito vinho. Ficava sempre uma bela água-pé. A faina ainda não terminava, pois havia que levar o bagaço para o alambique, para destilar e fazer aguardente. Algumas vezes, num pequeno barril, metiam mosto e aguardente e faziam jeropiga, a que juntavam algum açúcar amarelo, o que tornava aquilo numa bebida doce e agradável, embora um pouco alcoólica.


         Enquanto fervia o mosto nas pipas elas não eram fechadas, tinham só um marmelo em cima para não entrar pó. Quando acabava a fermentação, eram então as pipas devidamente fechadas e aguardava-se, com alguma impaciência, que chegasse o dia de S. Martinho para, com um pequeno “espicho”, provar o vinho. Normalmente, era sempre bom…

Tavarede no Teatro - 6

                “Pátria formosa, terra bendita,
                Onde correu minha leda infância
                Duma alegria pura, infinita.
               Já te não vejo que mágoa funda!
               De mim tão longe, a imensa distância,
                E que saudade minha alma inunda.
                De meu marido tenho a ternura;
                Dou-lhe também o meu grande amor,
                Se os dois se amam existe a ventura...
                 Não pode haver ventura maior!

         O país é lindo, lindas paisagens, largos horizontes. Vales formosíssimos e imponentes montanhas. Ao longe, muito ao longe, o mar... A habitação é agradável. Eduardo ama-me e procura adivinhar todos os meus pensamentos. Mas não posso esquecer-me de Tching-fon, dos bosques de cerejeiras em flor. A China!... Como a distância a torna ainda mais bela! Ah! Que saudades da minha terra...”.

         É assim que começa o terceiro acto. Flor de Chá, pensativa e melancólica, encontra-se passeando, sòzinha, no jardim de sua casa.

         Quando voltaram da China, donde escaparam milagrosamente às fúrias do Mandarim e de Chin-Fan-tu, a quem haviam raptado filha e noiva, respectivamente, e cumprindo a promessa feita antes de empreenderem a viagem até Macau, em busca da Lúcia-Lima, o aeroplano poisou novamente em Tavarede.

         Foi uma viagem sem incidentes, desta vez. Quando chegaram, tiveram sorte, pois encontraram “uma quinta para arrendar, com uma bela casa, bons ares e boas vistas...” e ali se instalaram para gozarem uns dias de repouso, para depois iniciarem uma viagem por essa Europa fora, até que, aborrecidos e cansados de viajar, partiriam para o Brasil, país tão belo e maravilhoso como a China, dizia a Flor de Chá o seu marido, Eduardo Leirosa, procurando mitigar as saudades que ela sentia da sua terra tão distante.

         A quinta era no Peso. E um dia, depois de ali instalados, Tomás Castanho desceu à aldeia em visita aos amigos, e quando regressou informou que o regedor e a filha, acompanhados de muitos outros, ali iriam para conhecerem “a senhora chinesa”.

         Estava ele a dar a notícia quando entrou o nosso Pinga-Amor, pedindo para ter uma conversa em particular com Tomás Castanho. Vale a pena ouvir o diálogo:

Pinga - É um assunto melindroso de que venho falar-lhe e peço-lhe desculpa pela ousadia... É questão da filha do regedor, da Capitolina, que o sr. conhece muito bem...
Castanho - Sim, conheço...
Pinga - O regedor é um ambicioso, um homem que só vê o dinheiro... quando aqui estiveram persuadiu-se que os senhores eram podres de ricos...
Castanho - Já nos contaram o dinheiro? Pode ser-se rico sem ser podre!...
Pinga - Que tinham mundos e fundos e que casando a filha com um dos ricaços era uma pechincha para ele... e começou a meter a filha à cara...
Castanho - Nunca dei por isso...
Pinga - Toda a gente reparou... sabendo-se já que eu a pretendia...
Castanho - (risonho) E ela dá-lhe d’olho?
Pinga - Agora, não. Amores d’algum dia...
Castanho - Mas não d’alguma noite...
Pinga - Ora essa! A Capitolina nunca capitulou... lá nesse ponto é uma rapariga séria, só gosta das coisas direitas...
Castanho - Estimo saber isso. E ela não é nenhuma peste... e não me desagrada...
Pinga - Então sempre é certo que a pretende?
Castanho - Não digo tanto, mas o mundo dá muita volta e cada um come do que gosta... parece que quer meter-se muito na minha vida...
Pinga - Não, sr.! O que eu desejo é que não se importe com ela, quero que faça de conta que não a conhece... Já lhe confessei o meu sentimento. Sem ela não posso viver... ela é a minha vida... e se a vir casada com outro morro, com certeza... não queira a minha desgraça!...
Castanho - Mas foi o próprio a confessar que ela não lhe dá trela...
Pinga - Se o sr. não a quizer, se saír da aldeia, ela não tem outro melhor do que eu e então aceita-me...
Castanho - Quem sabe lá! Sabe o que diz o ditado: “mulas e mulheres, nozes e castanhas, ninguém lhes conhece as manhas”...
Pinga - Por quem é, sr., deixe esta terra e fará a minha felicidade!...
Castanho - Isso não lhe prometo. Tenha paciência! Quem está bem, deixa-se estar...Sabe que mais? Dou-lhe um conselho... Largue de mão a Capitolina, faça de conta que nunca a viu...
Pinga - E o grande amor que lhe tenho?! Fala bem!
Castanho - Lérias! O amor é uma cobiça... Tudo passa, esqueça-a...
Pinga - Não posso, estou acostumado a vê-la todos os dias...
Castanho - Aí está o mal! Olhe que isto de mulheres é um hábito em que a gente se põe... (Pinga-amor invectiva-o tragicamente)
Pinga - O sr. não tem coração, não é um homem de brio! Torno-o responsável pela desgraça que acontecer... (mudando de tom) Tem muito dinheiro? Pois coma-o de noite como as bestas... Ainda hei-de ver-lhe a cabeça como a dum veado!...
Castanho - Olhe sabe que mais? (fala ao ouvido de Pinga-amor)
Pinga - Vá você, seu grande malcriado! (Castanho entra em casa dando uma gargalhada e Pinga sai)

         Como se vê o conquistador tavaredense não desistia de conquistar o coração de Capitolina, mas... a tarefa era difícil, mesmo impossível.

         Pouco depois entra Gil Chinguiço, o sacristão, para dar uma grande novidade. Tinha, finalmente, aparecido a Lúcia-Lima. Tinha sido o senhor Cura quem lha tinha mostrado. Às perguntas de Leirosa respondia que ela devia ter entre dezoito a vinte anos, que quando estava bem vestida, bem coberta era um encanto e que cheirava muito bem! Bastava passar-lhe a mão por cima e ela deitava um cheiro que regalava!

                O interesse de Eduardo Leirosa pela tal Lúcia Lima despertou o ciúme a Flor de Chá, mas seu marido prontamente a dissuadiu de tal, pois que agora unicamente tinha curiosidade em conhecer aquela que dera origem à viagem

sábado, 11 de julho de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 14

Circo na aldeia


         “ Mencionaremos ainda os trabalhos acrobáticos da praça pública, realizados sobre simples mantas estendidas no chão; outros, mais raros, dispunham de vedações de pano, a coberto das quais se realizavam os espectáculos.
         E ainda a exibição de animais selvagens, amestrados, conduzidos em caravanas de maltrapilhos, os filhos metidos em ceirões, as mulheres semi-nuas e andrajosas, que percorriam as ruas da povoação trabalhando com os animais e entoando cânticos estranhos, ao toque de pandeiros.
         Outras vezes, apenas um homem a tocar realejo, com o seu macaquito amestrado e mesmo sem ele; uma mulher a tocar harpa; uma matilha de cães que davam cabriolas e faziam habilidades, etc.
         E o rapazio, cheio de contentamento pelo gratuito espectáculo, formava círculo e aplaudia calorosamente, em pungente contraste com a vida miserável desses párias da sorte, que nem socorridos eram, muitas vezes, pelos que, podendo sem sacrifício faze-lo, se afastavam discretamente ao passar
a bandeja do peditório”.

         Transcrevi o retalho acima do livro “Coisas da minha terra”, do figueirense José da Silva Fonseca. É que, quando o li, vieram à minha memória os pequenos e humildes espectáculos de rua que, periodicamente, se realizavam em Tavarede, normalmente no Largo do Paço.

         Quando chegava a caravana, a maior parte das vezes uma pequena carroça, puxada por um triste jumento, e com uma coberta que servia de habitação aos artistas, estacionava naquele largo, perto de um espaço mais ou menos liso, que serviria de pista. Algumas das “companhias” montavam um trapézio, dois mastros espetados no chão e devidamente escorados, onde, a razoável altura, baloiçava o referido trapézio. Mas outras, talvez a maioria, tinham somente trabalhos feitos no chão.

         Acabada a montagem, e quando a tarde se aproximava do fim, efectuavam o desfile pelas ruas da aldeia, chamando a atenção da população para o espectáculo circense. Duas ou três crianças conduzindo os animais amestrados, geralmente um pequeno macaco e alguns cães magríssimos, eram seguidos por uma rapariga que, trajando “vésteas” ondulantes, se esforçava por dançar ritmicamente, ao som da banda, composta por um homem tocando, estridentemente, uma trompete e um rapaz que marcava ruidosamente o ritmo num tambor que pendurava a tiracolo.

         De vez em quando a caravana parava. Então, fazendo-se silêncio, ouvia-se um homem apregoando o espectáculo e apelando à comparência do “respeitável público”.

         À hora anunciada acendiam-se dois ou três candeeiros “petromax”, que iluminavam tenuamente a pista. E, ao rufar do tambor, lá se ia juntando alguma assistência. A maior parte, já se vê, era o rapazio da aldeia que, sentando-se no chão ao redor da velha serapilheira, esperava ansiosamente pelo início do espectáculo.

         Invariavelmente, era a pequena contorcionista, que causava dó pela sua magreza, o cãozito que, a mando do domador, dava a volta ao recinto às cambalhotas e que agradecia os aplausos, pondo-se de pé sobre as patas trazeiras, e um número de palhaços, que era aquele que mais nos divertia pelas costumadas peripécias e que sempre terminava ao toque da trompete e do tambor, a que se juntavam as palmas da maior parte dos assistentes. Quando, como atrás referi, havia o número do trapézio, ficávamos todos admiradíssimos com as habilidades da artista, pois quase sempre era uma rapariga, e nos momentos mais arriscados até suspendíamos a respiração. No fim, felizmente, terminava tudo em bem.

         Entretanto, era chegada a hora da cobrança. Uma ou duas das crianças mais pequenas, bandeja na mão e olhar triste, mesmo faminto, davam a volta apelando uma moeda aos assistentes. Com mais ou menos vontade, a verdade é que quase todos davam o seu contributo.


         Era pequena a receita. Mas, pelo menos nesse dia, tinham garantida uma parca ceia, algumas das vezes comprada na loja ali ao lado e cozinhada apressadamente no velho fogão a petróleo. Depois, arrumada a tralha toda na carroça, seguiam viagem até ao local onde pernoitavam, perto de um valado para onde conduziam o burrito que, pela noite fora, ia tasquinhando a relva verdejante, enquando na carroça, amontoados da melhor maneira, os “artistas” dormiam. No dia seguinte, à mesma hora de sempre, e numa outra das povoações vizinhas, ouvia-se o apelo ao “respeitável público”, para o espectáculo que iria começar…