Tempos de Escola
Comecei a
escola primária na época de 1941/1942. Era professor dos rapazes o sr. Alberto Coelho, que morava na Figueira. Com ele fiz as duas primeiras
classes e depois veio substitui-lo o professor Constantino Gomes Tomé, de
Ferreira-a-Nova.
Precisamente
no ano anterior, todos os alunos tinham tirado uma fotografia com o professor
Coelho. Ela aqui fica reproduzida e identificados todos os alunos, na sua
maioria por alcunhas que já tinham e pelas quais ficaram conhecidos.
Ainda fui
condiscípulo de quase todos, pois, dos que aqui estão fotografados, só três ou
quatro acabaram a instrução primária naquele ano.
Eram tempos
muito difíceis. Os professores leccionavam as quatro classes numa única sala.
Havia um pátio que servia de recreio e onde estavam as casas de banho.
Entrávamos de manhã, vinhamos almoçar a casa ou levávamos qualquer coisa para
comer, e só saíamos à tarde. Tenho ideia de que o professor Coelho era mais
benevolente para com os alunos e que o professor Tomé tinha um procedimento
muito mais exigente. Porém, e que me recorde, só um aluno lhe dava verdadeiros
problemas. Era o António Rodrigues, mais conhecido por “Mafarrico”. E, vamos
lá, ele era um verdadeiro mafarrico na escola.
Volta que
não volta lá trabalhava a régua ou o pequeno ponteiro, na mão do professor e na
cabeça do Mafarrico. Quando ele previa castigo maior, fugia cá para fora. Por
baixo do piso da escola o edifício tem uma caixa de ar, relativamente alta. A
ventilação é feita por vários buracos resguardados por grades de ferro. São uns
buracos rectangulares, relativamente pequenos.
Num deles, do lado do recreio, a grade tinha sido arrancada.
Naquelas
ocasiões mais difíceis, o Mafarrico fugia da sala de aula e, como uma enguia,
enfiava o corpo franzino por aquele buraco, refugiando-se lá debaixo. Atrás
dele, sempre com a vara na mão, corria o professor Tomé. Mas ali não podia
avançar e, pelo menos temporariamente, o Mafarrico estava a salvo. Colérico, o
professor Tomé até espumava, enquanto gritava para que o António Mafarrico
saísse. Mas ele, que já lhe conhecia o feitio, só depois de bastante tempo
decorrido, quando calculava que as coisas estavam mais calmas, é que se
resolvia a sair e voltar ao seu lugar. Ainda levava uma ou duas reguadas, mas
nada que se comparasse ao que apanharia se não fugisse.
No inverno
era custoso suportar a baixa temperatura. Para já, a roupa e o calçado da
maioria, não era suficiente para abrigar do frio. Poucos tinham o luxo de um
sobretudo ou outro agasalho… Pelas
manhãs, quando íamos para a escola, nos Quatro Caminhos, levávamos as mãos
resguardadas… com meias a servirem de luvas. Mesmo assim, quando chegavamos à escola, tinhamos
sempre de estar um bom bocado a esfregar e assoprar as mãos engadanhidas, para
podermos agarrar no lápis ou no “bril”, com que escrevíamos na ardósia, ou no
giz, quando iamos ao quadro.
Na subida
da estrada dos Quatro Caminhos para a Figueira, quando acabava o muro da quinta
do Paço e começava o pinhal, existia uma enorme barroca que, com as águas das
chuvas, se enchia por completo. Pois o frio, durante a noite, era tal que a
água ficava coberta por uma forte placa de gelo, de tal forma grossa que
aguentava com o peso dos mais atrevidos, que iam “patinar”. Aos lados, onde o
gelo era mais fino, conseguíamos partir pequenos pedaços, que chupávamos deliciados!
Também nos
Quatro Caminhos, ao princípio do caminho para Buarcos, estavam os velhos
edifícios da extinta Cerâmica Exportadora, Lda. Já não laborava haveria cerca
de dez anos e, segundo as notícias que
encontrei, chegou a ter uma actividade bastante importante, dando emprego a
muitos trabalhadores da zona. Pelos anos de 1920, falou-se muito no
prolongamento da linha do caminho de ferro até ao Cabo Mondego, passando pela
Várzea e pelos Quatro Caminhos. Se a ideia tem avançado, é natural que a
empresa se mantivesse em laboração, mas, por outro lado, toda esta zona, hoje
urbanizada, se transformaria por completo.
Pois, nos
intervalos das aulas, os rapazes iam para lá e metiam-se dentro dos velhos
fornos, em busca dos pequenos triângulos de argila que seriam usados para
separar as loiças durante a sua cozedura. Para nós serviam para brincar como
“boxes”.
Por esse
tempo, havia guerra na Europa. De vez em quando, pela estrada da Figueira, a
caminho da Serra ou de Buarcos, passavam enormes tanques, com lagartas, que
andavam em exercício.
Nós íamos vê-los manobrar, pois subiam e desciam valados e
pequenas ribanceiras sem quaisquer problemas, o que muito nos admirava. A
propósito, recordo-me que, especialmente na Figueira, as casas tinham os vidros
das janelas com tiras de papel branco ou de jornal coladas. Era para não se
quebrarem com o eventual rebentamento de alguma bomba. Felizmente, não
aconteceu, mas, de noite, grandes focos de luz apontados ao céu, procuravam
qualquer avião inimigo que se atrevesse a vir até aqui. Também me lembro muito
bem das senhas do racionamento de vários produtos alimentares, como o açúcar.
Só comprava quem tivesse a correspondente senha. Tempos difíceis, na verdade.
A quinta do
Paço, desde o palácio até à barroca acima referida, era vedada por um velho
muro. Não me recordo de ver, em qualquer outra parte, tantos sardões como
naquele muro. Eram imensos, e quando o sol começava a aquecer, iam para o cimo
do muro aquecerem-se. Uma das nossas diversões era atirarmos pedras com as
fisgas, procurando acertar-lhes. Às vezes lá havia um que apanhava pedrada,
muitas vezes mortal, mas eles caiam para o lado de dentro da quinta. Mas não se
notava a falta, tantos eles eram. Um dia, recordo-me, agarrámos um com um laço
e levámo-lo para o largo dos Quatro Caminhos. Não sei como, mas a verdade é que
o bicho conseguiu dar uma mordidela num calcanhar, julgo que do Zé Figueiredo,
que teve de ir ao hospital da Figueira fazer o curativo.
Cá em
baixo, frente ao palácio, do lado da quinta, existia um pátio onde, entre
outras aves, haviam diversos pavões. Gostávamos muito de os admirar quando eles
abriam as caudas coloridas… Num
pau, do lado da estrada, estava preso um pequeno macaco, um “saguim”, que
passava a vida a subir e descer o pau, sentando-se a descansar no alto, onde
tinham pregado uma pequena tábua.
Quando acabávamos a escola e
fazíamos o exame da quarta classe, aqueles que quizessem, ou tivessem
possibilidades de prosseguir os estudos, na Escola Industrial e Comercial ou no
Liceu, tinham que ir fazer novo exame para admissão, mas este era feito na Escola
do Conde de Ferreira. Uma vez aprovados, prosseguíamos os estudos, sendo muitos
os que optavam pelo curso nocturno, o que lhes possibilitava empregarem-se na
Figueira, para angariação de um parco rendimento, bem necessário à vida
familiar.
Boa tarde Sr. Vitor,
ResponderEliminarAdoro saber estas coisas. Que maravilha.
Bjs.
Sandra Grilo