sábado, 4 de julho de 2015

Tavarede - A terra de meus avós 3 - 13

Tempos de Escola


         Comecei a escola primária na época de 1941/1942. Era professor dos rapazes o sr. Alberto Coelho, que morava na Figueira. Com ele fiz as duas primeiras classes e depois veio substitui-lo o professor Constantino Gomes Tomé, de Ferreira-a-Nova.

         Precisamente no ano anterior, todos os alunos tinham tirado uma fotografia com o professor Coelho. Ela aqui fica reproduzida e identificados todos os alunos, na sua maioria por alcunhas que já tinham e pelas quais ficaram conhecidos.



         Ainda fui condiscípulo de quase todos, pois, dos que aqui estão fotografados, só três ou quatro acabaram a instrução primária naquele ano.

         Eram tempos muito difíceis. Os professores leccionavam as quatro classes numa única sala. Havia um pátio que servia de recreio e onde estavam as casas de banho. Entrávamos de manhã, vinhamos almoçar a casa ou levávamos qualquer coisa para comer, e só saíamos à tarde. Tenho ideia de que o professor Coelho era mais benevolente para com os alunos e que o professor Tomé tinha um procedimento muito mais exigente. Porém, e que me recorde, só um aluno lhe dava verdadeiros problemas. Era o António Rodrigues, mais conhecido por “Mafarrico”. E, vamos lá, ele era um verdadeiro mafarrico na escola.

         Volta que não volta lá trabalhava a régua ou o pequeno ponteiro, na mão do professor e na cabeça do Mafarrico. Quando ele previa castigo maior, fugia cá para fora. Por baixo do piso da escola o edifício tem uma caixa de ar, relativamente alta. A ventilação é feita por vários buracos resguardados por grades de ferro. São uns buracos rectangulares, relativamente pequenos.  Num deles, do lado do recreio, a grade tinha sido arrancada.

         Naquelas ocasiões mais difíceis, o Mafarrico fugia da sala de aula e, como uma enguia, enfiava o corpo franzino por aquele buraco, refugiando-se lá debaixo. Atrás dele, sempre com a vara na mão, corria o professor Tomé. Mas ali não podia avançar e, pelo menos temporariamente, o Mafarrico estava a salvo. Colérico, o professor Tomé até espumava, enquanto gritava para que o António Mafarrico saísse. Mas ele, que já lhe conhecia o feitio, só depois de bastante tempo decorrido, quando calculava que as coisas estavam mais calmas, é que se resolvia a sair e voltar ao seu lugar. Ainda levava uma ou duas reguadas, mas nada que se comparasse ao que apanharia se não fugisse.

         No inverno era custoso suportar a baixa temperatura. Para já, a roupa e o calçado da maioria, não era suficiente para abrigar do frio. Poucos tinham o luxo de um sobretudo ou outro agasalho… Pelas manhãs, quando íamos para a escola, nos Quatro Caminhos, levávamos as mãos resguardadas… com meias a servirem de luvas. Mesmo assim, quando chegavamos à escola, tinhamos sempre de estar um bom bocado a esfregar e assoprar as mãos engadanhidas, para podermos agarrar no lápis ou no “bril”, com que escrevíamos na ardósia, ou no giz, quando iamos ao quadro.

         Na subida da estrada dos Quatro Caminhos para a Figueira, quando acabava o muro da quinta do Paço e começava o pinhal, existia uma enorme barroca que, com as águas das chuvas, se enchia por completo. Pois o frio, durante a noite, era tal que a água ficava coberta por uma forte placa de gelo, de tal forma grossa que aguentava com o peso dos mais atrevidos, que iam “patinar”. Aos lados, onde o gelo era mais fino, conseguíamos partir pequenos pedaços, que chupávamos  deliciados!

         Também nos Quatro Caminhos, ao princípio do caminho para Buarcos, estavam os velhos edifícios da extinta Cerâmica Exportadora, Lda. Já não laborava haveria cerca de dez anos e, segundo  as notícias que encontrei, chegou a ter uma actividade bastante importante, dando emprego a muitos trabalhadores da zona. Pelos anos de 1920, falou-se muito no prolongamento da linha do caminho de ferro até ao Cabo Mondego, passando pela Várzea e pelos Quatro Caminhos. Se a ideia tem avançado, é natural que a empresa se mantivesse em laboração, mas, por outro lado, toda esta zona, hoje urbanizada, se transformaria por completo.

         Pois, nos intervalos das aulas, os rapazes iam para lá e metiam-se dentro dos velhos fornos, em busca dos pequenos triângulos de argila que seriam usados para separar as loiças durante a sua cozedura. Para nós serviam para brincar como “boxes”.

         Por esse tempo, havia guerra na Europa. De vez em quando, pela estrada da Figueira, a caminho da Serra ou de Buarcos, passavam enormes tanques, com lagartas, que andavam em exercício. Nós íamos vê-los manobrar, pois subiam e desciam valados e pequenas ribanceiras sem quaisquer problemas, o que muito nos admirava. A propósito, recordo-me que, especialmente na Figueira, as casas tinham os vidros das janelas com tiras de papel branco ou de jornal coladas. Era para não se quebrarem com o eventual rebentamento de alguma bomba. Felizmente, não aconteceu, mas, de noite, grandes focos de luz apontados ao céu, procuravam qualquer avião inimigo que se atrevesse a vir até aqui. Também me lembro muito bem das senhas do racionamento de vários produtos alimentares, como o açúcar. Só comprava quem tivesse a correspondente senha. Tempos difíceis, na verdade.

         A quinta do Paço, desde o palácio até à barroca acima referida, era vedada por um velho muro. Não me recordo de ver, em qualquer outra parte, tantos sardões como naquele muro. Eram imensos, e quando o sol começava a aquecer, iam para o cimo do muro aquecerem-se. Uma das nossas diversões era atirarmos pedras com as fisgas, procurando acertar-lhes. Às vezes lá havia um que apanhava pedrada, muitas vezes mortal, mas eles caiam para o lado de dentro da quinta. Mas não se notava a falta, tantos eles eram. Um dia, recordo-me, agarrámos um com um laço e levámo-lo para o largo dos Quatro Caminhos. Não sei como, mas a verdade é que o bicho conseguiu dar uma mordidela num calcanhar, julgo que do Zé Figueiredo, que teve de ir ao hospital da Figueira fazer o curativo.

         Cá em baixo, frente ao palácio, do lado da quinta, existia um pátio onde, entre outras aves, haviam diversos pavões. Gostávamos muito de os admirar quando eles abriam as caudas coloridas… Num pau, do lado da estrada, estava preso um pequeno macaco, um “saguim”, que passava a vida a subir e descer o pau, sentando-se a descansar no alto, onde tinham pregado uma pequena tábua.

         Quando acabávamos a escola e fazíamos o exame da quarta classe, aqueles que quizessem, ou tivessem possibilidades de prosseguir os estudos, na Escola Industrial e Comercial ou no Liceu, tinham que ir fazer novo exame para admissão, mas este era feito na Escola do Conde de Ferreira. Uma vez aprovados, prosseguíamos os estudos, sendo muitos os que optavam pelo curso nocturno, o que lhes possibilitava empregarem-se na Figueira, para angariação de um parco rendimento, bem necessário à vida familiar.


1 comentário:

  1. Boa tarde Sr. Vitor,

    Adoro saber estas coisas. Que maravilha.

    Bjs.

    Sandra Grilo

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