domingo, 26 de julho de 2015

Tavarede - a terra de meus avós - 16

E quanto mais?...

        
Muitas outras coisas teria a recordar. Mas, além de não querer alongar em demasia estas recordações, penso que já deixei uma imagem, talvez ténue, da vida da minha aldeia nos recuados tempos da minha infância e mocidade.

         Tínhamos uma vida feliz. Tavarede, já o disse mais do que uma vez, era uma terra agradável. E, sobretudo, tinha uma vida sossegada e pacata, aonde raramente a tranquilidade era perturbada. Nos nossos tempos livres, andávamos à vontade por todo o lado.

         Aos domingos, se a parte da manhã era ocupada para actualizarmos os apontamentos da escola e outras tarefas como, por exemplo, limpar a bicicleta, o nosso meio de transporte, a parte da tarde, e isto quando não havia bailarico ou teatro, era dedicada a grandes passeios pelos arredores, em grupos mais ou menos numerosos.

         Umas vezes íamos pela Várzea, onde apreciávamos aquela enorme cobertura verde das leiras das nossas afamadas couves, atravessávamos a Quinta do Robim e seguíamos até ao Casal da Robala, regressando pela Vergieira e pela Chã. Outras, caminhávamos pela estrada da Chã a Caceira, passávamos o Vale do Porco e descíamos áquela povoação, regressando pelos Carritos. Estes passeios eram mais usuais nos meses de Março e Abril, pois era a época propícia à busca dos saborosos rebentos dos espargos bravos, que são saborosa merenda em omeleta. Os valados e os pinhais eram cuidadosamente vasculhados à sua procura.

         Por falar em merenda, recordo quando, com meu pai, ia ao quintal do Ferreira, à procura dos caracois grandes, as caracoletas, que rastejavam lentamente nas ervas das valas e no valado do ribeiro. Apanhávamos grande quantidade e, chegados a casa, meu pai cozia-os com água e sal, após o que aproveitava só o corpo do bicho. Laváva-os em vártias agues, até ficarem completamente limpos. Fazia, de seguida, uma enorme omeleta e só digo que era um petisco de primeira…

         No verão e outono, as nossas voltas, habitualmente, encaminhavam-se pelo caminho do Peso ou pelas Azenhas e Pejeiros, para as encostas da Serra donde, muitas vezes, passávamos ao Saltadouro. Andávamos muito, pois não era raro chegarmos a subir ao monte Crasto, da parte de cima do Prazo.

         Mas, forçoso é dizer a verdade, estes passeios não eram totalmente inocentes. Não seguíamos sempre pelos caminhos normais. Aqui e além, embrenhávamo-nos pelo meio dos pinhais ou das vinhas, em direcção aos sítios onde sabíamos estarem as árvores de fruta que, com relativa segurança, podíamos “visitar”.

         Claro que estas “visitas” eram feitas com o maior cuidado, não fosse dar-se o caso de algum dos donos também ter tido o “desejo” de dar um passeio às suas terras… Recordo algumas das “visitas” mais usuais: na encosta da Serra, da parte de cima da capela do S. Paio, eram ameixas; no vale do Prazo, as laranjas e as nêsperas; a caminho do Crasto, os pêssegos estavam à nossa espera, bem como nas encostas do Saltadouro; na Vergieira, que belas peras francesas então havia! Condados e Pejeiros, bem sabíamos onde estavam as mais perfumadas maçãs, etc.

         Algumas vezes, tínhamos de fugir, a bom fugir. Ali aos Quatro Caminhos, a seguir ao portão da entrada da quinta da Borlateira, havia entre o caminho para a casa lá no alto e o pinhal que dava até à estrada da Serra, um lindo e grande laranjal. Era uma tentação para nós, ver as laranjas tão amarelinhas entre a verde folhagem… O pior é que muito poucas vezes as conseguimos provar, por parece que o Ti Júlio adivinhava as nossas intenções e mantinha-se por ali à espreita tardes inteiras… E as uvas?... Essas, havia em abundância por todo o lado e nós bem conhecíamos os locais das videiras que as davam mais doces!

         Já referi, noutro local, que, durante os meses de verão, quase todos íamos trabalhar para o comércio, no Bairro Novo. É curioso que, há já bastantes anos, não se trabalha aos sábados ou só se trabalha da parte da manhã. Pois naqueles nossos tempos o sábado era o dia em que o comércio estava aberto até mais tarde. Nunca saíamos antes das dez ou onze horas da noite. Tanto nós, rapazes, como as raparigas que, no comércio ou nas alfaiatarias, também trabalhavam até àquelas horas. Como não havia transportes para Tavarede, as carreiras de camionetas entre Figueira e Tavarede só se iniciaram em 1957, e o caminho era mal iluminado e pouco seguro, combinávamos encontrarmos em determinado local para virmos em grandes grupos até Tavarede, para não termos encontros indesejáveis pelo caminho escuro e deserto. Algumas vezes chegávamos tardíssimo aos bailes, e quando os não havia em Tavarede, ainda íamos até Brenha, Quiaios, Alhadas ou outros locais.

         Todos, ou quase todos, entrávamos no teatro. Aliás, éramos viciados pelas colectividades. Quando já tínhamos acabado os nossos estudos e estávamos empregados, podia dizer-se que a casa era “para comer e dormir”, pois o resto do tempo livre era passado na Sociedade ou no Grupo. Naquela era o teatro e neste a dança. Chegávamos a ir, rapazes e raparigas, assistir aos ensaios do Lúcia-Lima para dançar…

         Na Sociedade, quando não tínhamos ensaio de teatro, entretinhamo-nos a ler, na biblioteca, ou com alguns jogos que haviam. Das cartas, o principal era o “marimbo”, com dez feijões a valer um tostão. Também jogávamos ao dominó, às damas e ao xadrez, bem como ao ping-pong.

         Quando se estreava uma peça teatral havia representações aos domingos, em “matinées”. Depois do espectáculo arranjava-se sempre merenda. Algumas vezes eram caranguejos do rio e pilados, de que o Carlos Conde e o José Vasco arranjavam grandes sacadas. Invariavelmente, depois do petisco, vinham as cantigas. Já lembrei meu tio José Medina, ensaiador dos coros do teatro. Era ele um dos grandes entusiastas pela improvisação dos orfeons. Bastavam apenas dois copitos para ele ficar animadíssimo. Inspirado musicólogo, um dos vários que houveram em Tavarede, e lembro Gentil Ribeiro, João Prôa, João Jorge da Silva, José Francisco da Silva, António Ferreira Jerónimo e António de Oliveira Cordeiro, entre mais alguns, foi muito novo regente da tuna do Grupo Musical, que chegou a dar concertos exclusivamente com números musicais de sua autoria. Fundou e dirigiu, durante alguns anos, o Lúcia-Lima. Mas a sua verdadeira paixão eram os coros. Bem disposto por natureza, quando estava animado, juntava em seu redor os coristas. Quando era na Sociedade também se juntavam as raparigas, mas era mais habitual os orfeons serem constituídos só por homens, o que não admira se disser que a maior parte das vezes começavam nas adegas, que se entretinham a visitar!

         Quando lhes faltavam alguns cantores, cujas vozes entendia fazerem falta, não hesitava em ir à procura deles, obrigando-os, muitas das vezes, a sairem de suas casas e irem com ele. Distribuía convenientemente os elementos, pois já conhecia as vozes e começando muito pianinho e subindo gradualmente a
tonalidade, começavam a ouvir-se as usuais cantigas do alecrim, da menina Luísa e tantas, tantas outras cantigas, especialmente dos teatros mais antigos e que tão bonitas eram…

         Assim se passava o tempo na nossa aldeia.

         Também tinhamos o costume de ir aos grilos, no tempo deles. Faziamos gaiolas com os canudos de cana mais grossos, que rachávamos e tapávamos com uma tampa mais larga para abrir a cana, metíamos o grilo lá dentro com umas folhas de alface e pendurávamos à porta da entrada de nossas casas, ao sol. Passado instantes começavam os grilos a cantar. Um dia fomos a eles ao pinhal da quinta do senhor Gaspar de Lemos, ao cimo da subida para o Saltadouro e em frente ao cemitério. Lá andávamos muito entretidos quando, sem saber como, me entrou por uma das pernas das calças um  pequeno sardão. Os saltos que eu dei! Mas o bicho não fez qualquer mal e, tanto pulo dei, que ele saíu pela outra perna das calças! Ainda hoje, o Augustito, das Abadias, me lembra do sucedido!



         Vem a propósito, e para cumprir a promessa feita anteriormente, contra duas historietas, das narradas por meu avô. A primeira, para mim das mais interessantes, é a história da lotaria. Meu avô trabalhava na Companhia do Gaz, na Figueira. Todas as sextas-feiras, de manhã, antes de andar à roda, ia lá vender jogo um cauteleiro, do qual ele dizia o nome, mas já não me recorda qual era.

         Durante anos, jogou todas as semanas e sempre com o mesmo número. Pois, durante todo o tempo, nunca lhe saíu nada, nem sequer uma terminação! Um dia resolveu acabar com o jogo. Nessa sexta-feira, quando chegou o cauteleiro, logo lhe disse que não queria a cautela. O outro insistiu, insistiu, que ele se ia arrepender, mas não o demoveu, pois não jogou mesmo. E não é que nessa semana a sorte grande calhou ao número que ele comprava e, daquela vez, recusára?!

         Na semana seguinte lá apareceu o cauteleiro. “Então, senhor António, eu não lhe disse que se havia de arrepender?”. Tinha razão, respondeu ele, e logo se dispôs a continuar a jogar, e cojm o mesmo número. É claro que semanas, meses e anos se passaram e a má sorte voltou a persegui-lo, pois nem ao menos uma terminação!...

         Desistiu novamente e, então, para sempre. Pois não é que na semana eem que voltou a desistir, mais uma vez a sorte grande saíu ao número recusado?!! Azar dele e azar nosso, pois podíamos estar cheios de dinheiro!

         A outra história, entre as muitas que ele contava, era esta. Todos os anos, e isso era verdade, semeava e colhia batatas que chegavam para a família todo o ano. Também, para isso, comprava a semente no Grémio, de qualidade garantida. Um ano houve, porém, que, por qualquer motivo, se esqueceu de encomendar os sacos da batata de semente. Quando chegou a ocasião, bem as tentou comprar, mas estavam completamente esgotadas. No Grémio e em todo o lado onde as procurou. Desesperado, pois esse ano teria de ir à feira comprar as batatas para o consumo da casa, sempre de qualidade duvidosa, acabou por se resignar, embora já tivesse as terras prontas para a sementeira.

         Casualmente foi à adega, em procura de qualquer coisa, e reparou que, a um canto, estava uma medida de Madeira quase cheia de pequenitas batatas que eram para ter dado ao porco e haviam ficado esquecidas por ali. Tinham ou grelo ou outro e estavam já meio podres. Pois iriam aquelas amostras de batatas para a terra…

         Querem saber uma coisa? Nunca, em tantos anos de lavoura, teve tantas e tão boas batatas como naquele ano! Aquela pequena medida de batatas produziu mais e melhor que os dois ou três sacos das de semente que ele usualmente comprava! Acreditam nestas histórias? Bem, os filhos, pelo menos, não acreditavam…

Por aqueles tempos, quando havia garraiada no Coliseu Figueirense, o gado vinha dos campos do Mondego, de Santo Varão, a pé, conduzidos pelos campinos, e atravessavam a nossa terra, sempre noite alta. A rapaziada sempre teve o costume de brincar com estas passagens do gado. Arranjavam uns chocalhos e, quando começava a escurecer, começavam a correr pela aldeia a fazer barulho, o que logo punha em fuga as pessoas desprevenidas que ocasionalmente se encontrassem na rua.

         Algumas vezes um ou outro garraio tresmalhava, o que dava sempre muito trabalho aos campinos que, depois de levarem os outros ao Coliseu, tinham de andar pelos campos à procura do tresmalhado para o apanhar. A este propósito, transcrevo uma notícia publicada em “O Figueirense”, em Setembro de 1923:

         “Em tempos áureos, em que a praça de toiros dessa cidade era onde está edificado o Jardim Escola João de Deus, a passagem dos toiros era obrigatória por Tavarede.
Predominava então no íntimo - mau íntimo, vamos lá - dos rapazes daquela época o "subido prazer" de espantar o gado à entrada da povoação. Era para eles um praxista pratinho, ou antes, a melhor tourada que podia haver, pois chegaram ao ponto de causarem o adiamento de algumas corridas, pois que o gado não dava a tempo ingresso nas portas do Coliseu.
Os motivos que os levava àquele procedimento era o de os emprezários lhes não concederem o direito de assistirem às embolações, senão mediante o pagamento de uma determinada importância.
Protestavam, mas sempre em vão. Todavia, quando os emprezários souberam o motivo de tal espantamento, que afinal lhes causava enormes prejuízos, concederam então a entrada franca a toda a gente que tivesse vontade de ver as embolações.
Sucediam coisas interessantes com a espera dos toiros. Por exemplo esta: o sr. António Teodoro, ao tempo aficionado tesíssimo, montava bem e fazia proezas várias, chegando mesmo a arriscar a sua própria vida Sucede que duma certa ocasião desmanaram-se os toiros, um dos quais entrou para um quintal e subiu para o telhado duma casa que ficava à superfície do mesmo quintal, sendo difícil retiral-o dali.
Depois o "saltitante pardal" fugiu para o Quintal da Azenha, que fica por detraz da capela da Junta Paroquial. Como teimasse em não sair de lá, o sr. Teodoro, que ainda hoje vive nessa cidade, lembra-se lançar-lhe um laço. Assim, pôz em prática o seu plano, valendo-lhe no entanto à vida uma árvore que ali havia e para onde trepou com a rapidez dum gamo, pois que o toiro, sentindo-se preso pelo laço, arrancou sobre ele, marrou no tronco da árvore com uma tal violência que momentos depois caía por terra sem vida, pois esfacelara o craneo!
Ainda hoje contam proesas interessantes sobre a passagem de toiros aqui por Tavarede em tempos que já não voltam. E se hoje toquei neste assunto, foi devido à espera do último sábado, em que o gado entendeu por bem não chegar ao seu destino sem aqui passear primeiro as ruas da terra, alguns quintais, etc, metendo sustos graúdos a muita gente, "dando que fazer a muitas lavadeiras" e arreliando, a ponto de fazer perder a paciência aos campinos, que eram em número bastante avultado.
Foi aqui uma tarde de autêntica tourada, em que se não usou das etiquetas exigidas pela praxe tauromáquica para o bom sucesso da "lide", de que saíram ilesos os protagonistas e os intérpretes da "cómica farça"...

E acabo estas recordações com a nota de dois fenómenos naturais que presenciei na nossa terra. Em Fevereiro de 1941, um violento ciclone passou por Tavarede “árvores derrubadas, chaminés caídas, telhados levantados, etc. e as sementeiras ficaram completamente arrasadas”, lia-se numa local publicada no “Jornal – Réclamo”. E no ano de 1957, em Janeiro, Tavarede foi surpreendida com o espectáculo deslumbrante de uma aurora boreal. Eis a notícia:

         “Fomos ontem, segunda feira, espectadores de um dos mais soberbos espectáculos da natureza.
         Cerca das 22 e 30 horas uma aurora boreal estupenda deslumbrou os nossos olhos e os de quem, como nós, correu á rua para apreciar o esplêndido fenómeno.
         O céu, do lado norte, parecia de fogo, e, entremeando um vermelho lindíssimo, alguns raios solares davam-lhe um aspecto maravilhoso.
         Que soberbo espectáculo!

         Alguns, mais velhos, recordavam uma outra que já tinham observado há bastantes anos. Mas nós, que nunca tínhamos visto nada de semelhante, abrimos os olhos e olhávamos admirados para o céu, até que desapareceu o fenómeno”.

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