E quanto mais?...
Muitas outras coisas teria a
recordar. Mas, além de não querer alongar em demasia estas recordações, penso
que já deixei uma imagem, talvez ténue, da vida da minha aldeia nos recuados
tempos da minha infância e mocidade.
Tínhamos
uma vida feliz. Tavarede, já o disse mais do que uma vez, era uma terra
agradável. E, sobretudo, tinha uma vida sossegada e pacata, aonde raramente a
tranquilidade era perturbada. Nos nossos tempos livres, andávamos à vontade por
todo o lado.
Aos
domingos, se a parte da manhã era ocupada para actualizarmos os apontamentos da
escola e outras tarefas como, por exemplo, limpar a bicicleta, o nosso meio de
transporte, a parte da tarde, e isto quando não havia bailarico ou teatro, era
dedicada a grandes passeios pelos arredores, em grupos mais ou menos numerosos.
Umas vezes
íamos pela Várzea, onde apreciávamos aquela enorme cobertura verde das leiras
das nossas afamadas couves, atravessávamos a Quinta do Robim e seguíamos até ao
Casal da Robala, regressando pela Vergieira e pela Chã. Outras, caminhávamos
pela estrada da Chã a Caceira, passávamos o Vale do Porco e descíamos áquela
povoação, regressando pelos Carritos. Estes passeios eram mais usuais nos meses
de Março e Abril, pois era a época propícia à busca dos saborosos rebentos dos
espargos bravos, que são saborosa merenda em omeleta. Os valados e
os pinhais eram cuidadosamente vasculhados à sua procura.
Por falar
em merenda, recordo quando, com meu pai, ia ao quintal do Ferreira, à procura
dos caracois grandes, as caracoletas, que rastejavam lentamente nas ervas das
valas e no valado do ribeiro. Apanhávamos grande quantidade e, chegados a casa,
meu pai cozia-os com água e sal, após o que aproveitava só o corpo do bicho.
Laváva-os em vártias agues, até ficarem completamente limpos. Fazia, de
seguida, uma enorme omeleta e só digo que era um petisco de primeira…
No verão e
outono, as nossas voltas, habitualmente, encaminhavam-se pelo caminho do Peso
ou pelas Azenhas e Pejeiros, para as encostas da Serra donde, muitas vezes,
passávamos ao Saltadouro. Andávamos muito, pois não era raro chegarmos a subir
ao monte Crasto, da parte de cima do Prazo.
Mas,
forçoso é dizer a verdade, estes passeios não eram totalmente inocentes. Não
seguíamos sempre pelos caminhos normais. Aqui e além, embrenhávamo-nos pelo
meio dos pinhais ou das vinhas, em direcção aos sítios onde sabíamos estarem as
árvores de fruta que, com relativa segurança, podíamos “visitar”.
Claro que
estas “visitas” eram feitas com o maior cuidado, não fosse dar-se o caso de
algum dos donos também ter tido o “desejo” de dar um passeio às suas terras…
Recordo algumas das “visitas” mais usuais: na encosta da Serra, da parte de
cima da capela do S. Paio, eram ameixas; no vale do Prazo, as laranjas e as
nêsperas; a caminho do Crasto, os pêssegos estavam à nossa espera, bem como nas
encostas do Saltadouro; na Vergieira, que belas peras francesas então havia!
Condados e Pejeiros, bem sabíamos onde estavam as mais perfumadas maçãs, etc.
Algumas
vezes, tínhamos de fugir, a bom fugir. Ali aos Quatro Caminhos, a seguir ao
portão da entrada da quinta da Borlateira, havia entre o caminho para a casa lá
no alto e o pinhal que dava até à estrada da Serra, um lindo e grande laranjal.
Era uma tentação para nós, ver as laranjas tão amarelinhas entre a verde
folhagem… O pior é que muito poucas vezes as conseguimos provar, por parece que
o Ti Júlio adivinhava as nossas intenções e mantinha-se por ali à espreita
tardes inteiras… E as uvas?...
Essas, havia em
abundância por todo o lado e nós bem conhecíamos os locais das videiras que as
davam mais doces!
Já referi,
noutro local, que, durante os meses de verão, quase todos íamos trabalhar para o
comércio, no Bairro Novo. É curioso que, há já bastantes anos, não se trabalha
aos sábados ou só se trabalha da parte da manhã. Pois naqueles nossos tempos o
sábado era o dia em que o comércio estava aberto até mais tarde. Nunca saíamos
antes das dez ou onze horas da noite. Tanto nós, rapazes, como as raparigas
que, no comércio ou nas alfaiatarias, também trabalhavam até àquelas horas.
Como não havia transportes para Tavarede, as carreiras de camionetas entre
Figueira e Tavarede só se iniciaram em 1957, e o caminho era mal iluminado e
pouco seguro, combinávamos encontrarmos em determinado local para virmos em
grandes grupos até Tavarede, para não termos encontros indesejáveis pelo
caminho escuro e deserto. Algumas vezes chegávamos tardíssimo aos bailes, e quando
os não havia em Tavarede, ainda íamos até Brenha, Quiaios, Alhadas ou outros
locais.
Todos, ou
quase todos, entrávamos no teatro. Aliás, éramos viciados pelas colectividades.
Quando já tínhamos acabado os nossos estudos e estávamos empregados, podia
dizer-se que a casa era “para comer e dormir”, pois o resto do tempo livre era
passado na Sociedade ou no Grupo. Naquela era o teatro e neste a dança.
Chegávamos a ir, rapazes e raparigas, assistir aos ensaios do Lúcia-Lima para
dançar…
Na
Sociedade, quando não tínhamos ensaio de teatro, entretinhamo-nos a ler, na
biblioteca, ou com alguns jogos que haviam. Das cartas, o principal era o
“marimbo”, com dez feijões a valer um tostão. Também jogávamos ao dominó, às
damas e ao xadrez, bem como ao ping-pong.
Quando se
estreava uma peça teatral havia representações aos domingos, em “matinées”.
Depois do espectáculo arranjava-se sempre merenda. Algumas vezes eram
caranguejos do rio e pilados, de que o Carlos Conde e o José Vasco arranjavam
grandes sacadas. Invariavelmente, depois do petisco, vinham as cantigas. Já
lembrei meu tio José Medina, ensaiador dos coros do teatro. Era ele um dos
grandes entusiastas pela improvisação dos orfeons. Bastavam apenas dois copitos
para ele ficar animadíssimo. Inspirado musicólogo, um dos vários que houveram
em Tavarede, e lembro Gentil Ribeiro, João Prôa, João Jorge da Silva, José
Francisco da Silva, António Ferreira Jerónimo e António de Oliveira Cordeiro,
entre mais alguns, foi muito novo regente da tuna do Grupo Musical, que chegou
a dar concertos exclusivamente com números musicais de sua autoria. Fundou e
dirigiu, durante alguns anos, o Lúcia-Lima. Mas a sua verdadeira paixão eram os
coros. Bem disposto por natureza, quando estava animado, juntava em seu redor
os coristas. Quando era na Sociedade também se juntavam as raparigas, mas era
mais habitual os orfeons serem constituídos só por homens, o que não admira se
disser que a maior parte das vezes começavam nas adegas, que se entretinham a
visitar!
Quando
lhes faltavam alguns cantores, cujas vozes entendia fazerem falta, não hesitava
em ir à procura deles, obrigando-os, muitas das vezes, a sairem de suas casas e
irem com ele. Distribuía convenientemente os elementos, pois já conhecia as
vozes e começando muito pianinho e subindo gradualmente a
tonalidade, começavam
a ouvir-se as usuais cantigas do alecrim, da menina Luísa e tantas, tantas
outras cantigas, especialmente dos teatros mais antigos e que tão bonitas eram…
Assim se
passava o tempo na nossa aldeia.
Também
tinhamos o costume de ir aos grilos, no tempo deles. Faziamos gaiolas com os
canudos de cana mais grossos, que rachávamos e tapávamos com uma tampa mais
larga para abrir a cana, metíamos o grilo lá dentro com umas folhas de alface e
pendurávamos à porta da entrada de nossas casas, ao sol. Passado instantes
começavam os grilos a cantar. Um dia fomos a eles ao pinhal da quinta do senhor
Gaspar de Lemos, ao cimo da subida para o Saltadouro e em frente ao cemitério.
Lá andávamos muito entretidos quando, sem saber como, me entrou por uma das
pernas das calças um pequeno sardão. Os
saltos que eu dei! Mas o bicho não fez qualquer mal e, tanto pulo dei, que ele
saíu pela outra perna das calças! Ainda hoje, o Augustito, das Abadias, me
lembra do sucedido!
Vem a
propósito, e para cumprir a promessa feita anteriormente, contra duas
historietas, das narradas por meu avô. A primeira, para mim das mais
interessantes, é a história da lotaria. Meu avô trabalhava na Companhia do Gaz,
na Figueira. Todas as sextas-feiras, de manhã, antes de andar à roda, ia lá
vender jogo um cauteleiro, do qual ele dizia o nome, mas já não me recorda qual
era.
Durante
anos, jogou todas as semanas e sempre com o mesmo número. Pois, durante todo o
tempo, nunca lhe saíu nada, nem sequer uma terminação! Um dia resolveu acabar
com o jogo. Nessa sexta-feira, quando chegou o cauteleiro, logo lhe disse que
não queria a cautela. O outro insistiu, insistiu, que ele se ia arrepender, mas
não o demoveu, pois não jogou mesmo. E não é que nessa semana a sorte grande
calhou ao número que ele comprava e, daquela vez, recusára?!
Na semana
seguinte lá apareceu o cauteleiro. “Então, senhor António, eu não lhe disse que
se havia de arrepender?”. Tinha razão, respondeu ele, e logo se dispôs a
continuar a jogar, e cojm o mesmo número. É claro que semanas, meses e anos se
passaram e a má sorte voltou a persegui-lo, pois nem ao menos uma
terminação!...
Desistiu
novamente e, então, para sempre. Pois não é que na semana eem que voltou a desistir,
mais uma vez a sorte grande saíu ao número recusado?!! Azar dele e azar nosso,
pois podíamos estar cheios de dinheiro!
A outra
história, entre as muitas que ele contava, era esta. Todos os anos, e isso era
verdade, semeava e colhia batatas que chegavam para a família todo o ano.
Também, para isso, comprava a semente no Grémio, de qualidade garantida. Um ano
houve, porém, que, por qualquer motivo, se esqueceu de encomendar os sacos da
batata de semente. Quando chegou a ocasião, bem as tentou comprar, mas estavam
completamente esgotadas. No Grémio e em todo o lado onde as procurou.
Desesperado, pois esse ano teria de ir à feira comprar as batatas para o
consumo da casa, sempre de qualidade duvidosa, acabou por se resignar, embora
já tivesse as terras prontas para a sementeira.
Casualmente
foi à adega, em procura de qualquer coisa, e reparou que, a um canto, estava
uma medida de Madeira quase cheia de pequenitas batatas que eram para ter dado
ao porco e haviam ficado esquecidas por ali. Tinham ou grelo ou outro e estavam
já meio podres. Pois iriam aquelas amostras de batatas para a terra…
Querem
saber uma coisa? Nunca, em tantos anos de lavoura, teve tantas e tão boas
batatas como naquele ano! Aquela pequena medida de batatas produziu mais e
melhor que os dois ou três sacos das de semente que ele usualmente comprava!
Acreditam nestas histórias? Bem, os filhos, pelo menos, não acreditavam…
Por aqueles tempos, quando havia
garraiada no Coliseu Figueirense, o gado vinha dos campos do Mondego, de Santo Varão,
a pé, conduzidos pelos campinos, e atravessavam a nossa terra, sempre noite
alta. A rapaziada sempre teve o costume de brincar com estas passagens do gado.
Arranjavam uns chocalhos e, quando começava a escurecer, começavam a correr
pela aldeia a fazer barulho, o que logo punha em fuga as pessoas desprevenidas
que ocasionalmente se encontrassem na rua.
Algumas
vezes um ou outro garraio tresmalhava, o que dava sempre muito trabalho aos
campinos que, depois de levarem os outros ao Coliseu, tinham de andar pelos
campos à procura do tresmalhado para o apanhar. A este propósito, transcrevo
uma notícia publicada em “O Figueirense”, em Setembro de 1923:
“Em tempos
áureos, em que a praça de toiros dessa cidade era onde está edificado o Jardim
Escola João de Deus, a passagem dos toiros era obrigatória por Tavarede.
Predominava
então no íntimo - mau íntimo, vamos lá - dos rapazes daquela época o
"subido prazer" de espantar o gado à entrada da povoação. Era para
eles um praxista pratinho, ou antes, a melhor tourada que podia haver, pois
chegaram ao ponto de causarem o adiamento de algumas corridas, pois que o gado
não dava a tempo ingresso nas portas do Coliseu.
Os motivos que os levava àquele procedimento era o de os
emprezários lhes não concederem o direito de assistirem às embolações, senão
mediante o pagamento de uma determinada importância.
Protestavam,
mas sempre em vão.
Todavia , quando os emprezários souberam o motivo de tal espantamento,
que afinal lhes causava enormes prejuízos,
concederam então a entrada franca a toda a gente que tivesse vontade de ver as embolações.
Sucediam coisas interessantes com a espera dos toiros.
Por exemplo esta: o sr. António Teodoro, ao tempo aficionado tesíssimo,
montava bem e fazia proezas várias, chegando mesmo a arriscar a sua própria
vida Sucede que duma certa ocasião desmanaram-se os toiros, um dos quais entrou
para um quintal e subiu para o telhado duma casa que ficava à superfície do
mesmo quintal, sendo difícil retiral-o dali.
Depois o "saltitante pardal" fugiu para o
Quintal da Azenha, que fica por detraz da capela da Junta Paroquial. Como teimasse em não sair de lá, o sr. Teodoro, que ainda hoje vive nessa cidade,
lembra-se lançar-lhe um laço. Assim, pôz em prática o seu plano,
valendo-lhe no entanto à vida uma árvore que ali havia e para onde trepou com a
rapidez dum gamo, pois que o toiro, sentindo-se preso pelo laço, arrancou sobre ele,
marrou no tronco da árvore com uma tal violência que momentos depois caía por
terra sem vida, pois esfacelara o craneo!
Ainda hoje contam proesas interessantes sobre a passagem
de toiros aqui por Tavarede em tempos que já não voltam. E se hoje
toquei neste assunto, foi devido à espera do último sábado, em que o gado
entendeu por bem não chegar ao seu destino sem aqui passear
primeiro as ruas da terra, alguns quintais, etc, metendo sustos graúdos a muita
gente, "dando
que fazer a muitas lavadeiras" e arreliando, a ponto de fazer perder a
paciência aos campinos, que eram em número bastante
avultado.
Foi aqui uma tarde de autêntica tourada, em que se não
usou das etiquetas exigidas pela praxe tauromáquica para o bom sucesso da
"lide", de que saíram ilesos os protagonistas e os intérpretes da
"cómica farça"...
E acabo
estas recordações com a nota de dois fenómenos naturais que presenciei na nossa
terra. Em Fevereiro de 1941, um violento ciclone passou por Tavarede “árvores
derrubadas, chaminés caídas, telhados levantados, etc. e as sementeiras ficaram
completamente arrasadas”, lia-se numa local publicada no “Jornal – Réclamo”. E
no ano de 1957, em Janeiro, Tavarede foi surpreendida com o espectáculo
deslumbrante de uma aurora boreal. Eis a notícia:
“Fomos
ontem, segunda feira, espectadores de um dos mais soberbos espectáculos da
natureza.
Cerca
das 22 e 30 horas uma aurora boreal estupenda deslumbrou os nossos olhos e os
de quem, como nós, correu á rua para apreciar o esplêndido fenómeno.
O
céu, do lado norte, parecia de fogo, e, entremeando um vermelho lindíssimo,
alguns raios solares davam-lhe um aspecto maravilhoso.
Que
soberbo espectáculo!
Alguns, mais velhos, recordavam uma
outra que já tinham observado há bastantes anos. Mas nós, que nunca tínhamos
visto nada de semelhante, abrimos os olhos e olhávamos admirados para o céu,
até que desapareceu o fenómeno”.
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