sábado, 11 de julho de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 14

Circo na aldeia


         “ Mencionaremos ainda os trabalhos acrobáticos da praça pública, realizados sobre simples mantas estendidas no chão; outros, mais raros, dispunham de vedações de pano, a coberto das quais se realizavam os espectáculos.
         E ainda a exibição de animais selvagens, amestrados, conduzidos em caravanas de maltrapilhos, os filhos metidos em ceirões, as mulheres semi-nuas e andrajosas, que percorriam as ruas da povoação trabalhando com os animais e entoando cânticos estranhos, ao toque de pandeiros.
         Outras vezes, apenas um homem a tocar realejo, com o seu macaquito amestrado e mesmo sem ele; uma mulher a tocar harpa; uma matilha de cães que davam cabriolas e faziam habilidades, etc.
         E o rapazio, cheio de contentamento pelo gratuito espectáculo, formava círculo e aplaudia calorosamente, em pungente contraste com a vida miserável desses párias da sorte, que nem socorridos eram, muitas vezes, pelos que, podendo sem sacrifício faze-lo, se afastavam discretamente ao passar
a bandeja do peditório”.

         Transcrevi o retalho acima do livro “Coisas da minha terra”, do figueirense José da Silva Fonseca. É que, quando o li, vieram à minha memória os pequenos e humildes espectáculos de rua que, periodicamente, se realizavam em Tavarede, normalmente no Largo do Paço.

         Quando chegava a caravana, a maior parte das vezes uma pequena carroça, puxada por um triste jumento, e com uma coberta que servia de habitação aos artistas, estacionava naquele largo, perto de um espaço mais ou menos liso, que serviria de pista. Algumas das “companhias” montavam um trapézio, dois mastros espetados no chão e devidamente escorados, onde, a razoável altura, baloiçava o referido trapézio. Mas outras, talvez a maioria, tinham somente trabalhos feitos no chão.

         Acabada a montagem, e quando a tarde se aproximava do fim, efectuavam o desfile pelas ruas da aldeia, chamando a atenção da população para o espectáculo circense. Duas ou três crianças conduzindo os animais amestrados, geralmente um pequeno macaco e alguns cães magríssimos, eram seguidos por uma rapariga que, trajando “vésteas” ondulantes, se esforçava por dançar ritmicamente, ao som da banda, composta por um homem tocando, estridentemente, uma trompete e um rapaz que marcava ruidosamente o ritmo num tambor que pendurava a tiracolo.

         De vez em quando a caravana parava. Então, fazendo-se silêncio, ouvia-se um homem apregoando o espectáculo e apelando à comparência do “respeitável público”.

         À hora anunciada acendiam-se dois ou três candeeiros “petromax”, que iluminavam tenuamente a pista. E, ao rufar do tambor, lá se ia juntando alguma assistência. A maior parte, já se vê, era o rapazio da aldeia que, sentando-se no chão ao redor da velha serapilheira, esperava ansiosamente pelo início do espectáculo.

         Invariavelmente, era a pequena contorcionista, que causava dó pela sua magreza, o cãozito que, a mando do domador, dava a volta ao recinto às cambalhotas e que agradecia os aplausos, pondo-se de pé sobre as patas trazeiras, e um número de palhaços, que era aquele que mais nos divertia pelas costumadas peripécias e que sempre terminava ao toque da trompete e do tambor, a que se juntavam as palmas da maior parte dos assistentes. Quando, como atrás referi, havia o número do trapézio, ficávamos todos admiradíssimos com as habilidades da artista, pois quase sempre era uma rapariga, e nos momentos mais arriscados até suspendíamos a respiração. No fim, felizmente, terminava tudo em bem.

         Entretanto, era chegada a hora da cobrança. Uma ou duas das crianças mais pequenas, bandeja na mão e olhar triste, mesmo faminto, davam a volta apelando uma moeda aos assistentes. Com mais ou menos vontade, a verdade é que quase todos davam o seu contributo.


         Era pequena a receita. Mas, pelo menos nesse dia, tinham garantida uma parca ceia, algumas das vezes comprada na loja ali ao lado e cozinhada apressadamente no velho fogão a petróleo. Depois, arrumada a tralha toda na carroça, seguiam viagem até ao local onde pernoitavam, perto de um valado para onde conduziam o burrito que, pela noite fora, ia tasquinhando a relva verdejante, enquando na carroça, amontoados da melhor maneira, os “artistas” dormiam. No dia seguinte, à mesma hora de sempre, e numa outra das povoações vizinhas, ouvia-se o apelo ao “respeitável público”, para o espectáculo que iria começar…         

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