Circo na aldeia
“
Mencionaremos ainda os trabalhos acrobáticos da praça pública, realizados sobre
simples mantas estendidas no chão; outros, mais raros, dispunham de vedações de
pano, a coberto das quais se realizavam os espectáculos.
E ainda a
exibição de animais selvagens, amestrados, conduzidos em caravanas de
maltrapilhos, os filhos metidos em ceirões, as mulheres semi-nuas e andrajosas,
que percorriam as ruas da povoação trabalhando com os animais e entoando
cânticos estranhos, ao toque de pandeiros.
Outras
vezes, apenas um homem a tocar realejo, com o seu macaquito amestrado e mesmo
sem ele; uma mulher a tocar harpa; uma matilha de cães que davam cabriolas e
faziam habilidades, etc.
E o
rapazio, cheio de contentamento pelo gratuito espectáculo, formava círculo e
aplaudia calorosamente, em pungente contraste com a vida miserável desses
párias da sorte, que nem socorridos eram, muitas vezes, pelos que, podendo sem
sacrifício faze-lo, se afastavam discretamente ao passar
a bandeja do peditório”.
Transcrevi
o retalho acima do livro “Coisas da minha terra”, do figueirense José da Silva
Fonseca. É que, quando o li, vieram à minha memória os pequenos e humildes
espectáculos de rua que, periodicamente, se realizavam em Tavarede, normalmente
no Largo do Paço.
Quando
chegava a caravana, a maior parte das vezes uma pequena carroça, puxada por um
triste jumento, e com uma coberta que servia de habitação aos artistas,
estacionava naquele largo, perto de um espaço mais ou menos liso, que serviria
de pista. Algumas das “companhias” montavam um trapézio, dois mastros espetados
no chão e devidamente escorados, onde, a razoável altura, baloiçava o referido
trapézio. Mas outras, talvez a maioria, tinham somente trabalhos feitos no
chão.
Acabada a
montagem, e quando a tarde se aproximava do fim, efectuavam o desfile pelas
ruas da aldeia, chamando a atenção da população para o espectáculo circense.
Duas ou três crianças conduzindo os animais amestrados, geralmente um pequeno
macaco e alguns cães magríssimos, eram seguidos por uma rapariga que, trajando
“vésteas” ondulantes, se esforçava por dançar ritmicamente, ao som da banda,
composta por um homem tocando, estridentemente, uma trompete e um rapaz que
marcava ruidosamente o ritmo num tambor que pendurava a tiracolo.
De vez em
quando a caravana parava. Então, fazendo-se silêncio, ouvia-se um homem
apregoando o espectáculo e apelando à comparência do “respeitável público”.
À hora
anunciada acendiam-se dois ou três candeeiros “petromax”, que iluminavam
tenuamente a pista. E, ao rufar do tambor, lá se ia juntando alguma
assistência. A maior parte, já se vê, era o rapazio da aldeia que, sentando-se
no chão ao redor da velha serapilheira, esperava ansiosamente pelo início do
espectáculo.
Invariavelmente,
era a pequena contorcionista, que causava dó pela sua magreza, o cãozito que, a
mando do domador, dava a volta ao recinto às cambalhotas e que agradecia os
aplausos, pondo-se de pé sobre as patas trazeiras, e um número de palhaços, que
era aquele que mais nos divertia pelas costumadas peripécias e que sempre
terminava ao toque da trompete e do tambor, a que se juntavam as palmas da
maior parte dos assistentes. Quando, como atrás referi, havia o número do
trapézio, ficávamos todos admiradíssimos com as habilidades da artista, pois
quase sempre era uma rapariga, e nos momentos mais arriscados até suspendíamos
a respiração. No fim, felizmente, terminava tudo em bem.
Entretanto,
era chegada a hora da cobrança. Uma ou duas das crianças mais pequenas, bandeja
na mão e olhar triste, mesmo faminto, davam a volta apelando uma moeda aos
assistentes. Com mais ou menos vontade, a verdade é que quase todos davam o seu
contributo.
Era pequena
a receita. Mas, pelo menos nesse dia, tinham garantida uma parca ceia, algumas
das vezes comprada na loja ali ao lado e cozinhada apressadamente no velho
fogão a petróleo. Depois, arrumada a tralha toda na carroça, seguiam viagem até
ao local onde pernoitavam, perto de um valado para onde conduziam o burrito
que, pela noite fora, ia tasquinhando a relva verdejante, enquando na carroça,
amontoados da melhor maneira, os “artistas” dormiam. No dia seguinte, à mesma
hora de sempre, e numa outra das povoações vizinhas, ouvia-se o apelo ao
“respeitável público”, para o espectáculo que iria começar…
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