sexta-feira, 30 de março de 2012

RECORDAÇÕES DE TAVAREDE


Ao ver o dono da locanda, e os miseraveis apparelhos que o circumdavam na loja para supplicio dos desventurados freguezes, tivemos um quarto d’hora de desanimo; veio-nos á memoria uma partida do Alexandre, a nossa situação perante aquella guilhotina, quizemos retroceder mas, transpunhamos já o limiar d’aquelle antro de horrores, havendo já tambem trocado uma mimica de intelligencia com o notavel barbeiro em que lhe davamos a conhecer que estavamos disposto a barbear-nos... e tudo.


Sentámo-nos pacientemente n’uma cadeira, que alguma vez teria tido a côr primitiva do pinho, sem tinta; dennunciando aqui e ali a qualidade da madeira de que era feita em uma ou outra clareira que o cebo ainda não havia invadido.


Estavamos no banco dos condemnados.


Ali, sentados n’aquella celebre poltrona, mais se nos afigurava estarmos perto do apparelho da guilhotina, do que nas mãos d’um inoffensivo barbeiro com uns vicios intoleráveis de aldeia.


De vez em quando, o nosso Alexandre, que demorava perto, em casa do tio João Movilha, ia espreitar da porta se effectivamente já estaria consumado o supplicio. E nós, com uma paciencia de martyr, assistimos á collocação, sobre o peito, de uma toalha, que em tempos poderia ser alva de neve, mas n’aquella ocasião tinha um todo acinzentado, semelhando um d’esses fórros nevoentos que se desdobram no ar em tempo nevoento.


A breve trecho tinhamos pelos queixos uma velha bacia de louça, com um recorte semi-circular onde entrava o pescoço, e um naco de sabão já gasto, com que, á mão, o mestre nos ia enchendo a cara de espuma. Após ella a navalha; uma serra, a deixar sulcos na nossa pobre epiderme como uma charrua n’um terreno. Para suavisarmos taes angustias olhavamos de vez em quando para um infeliz canario, pardacento do fumo, que o malvado Figaro tinha engaiolado n’uma gaiola - ainda mais negra do que todo o interior do estabelecimento.


- Alguma reliquia de familia deixada pelo avô, e cuidadosamente conservada com os mesmos tons de antiguidade.


A espaços admiravamos tambem o magnifico arsenal que ali existia de chapeus de sol de differentes épocas, uns cobertos a panninho vermelho, outros a panno azulado, alguns a seda, mas esta a despedir-se do serviço por inutil.


A esta abstracção eramos roubados a par e passo pela voz do nosso... carrasco a perguntar-nos: “A navalha está boa?” - “Sim, senhor”, lhe respondia-mos; o que queriamos era furtar-nos ao tempo de mais alguns momentos estar sob o supplicio que o nosso Alexandre nos havia inflingido.


Quando o homensinho deu por acabada a faina, depois de nos escovar o fato com uma escova que alguma vez teria dado lustro em calçado, sentimo-nos feliz de poder livremente vadear Lisboa, com barba feita a dois patacos, que foi quanto nos pediram por tal desastre.

Saimos d’aquella caverna mal humorado, exquisito, amaldiçoando Lisboa, que ainda conservava em seu sêio umas taes espeluncas de lavar a cara a saloios. Conservavamos ainda no nariz o cheiro nauseabundo d’aquelle (Gazeta da Figueira - 28.11.1896)

Teatro da S.I.T. . Nortas e Críticas - 22

1951

FREI LUIS DE SOUSA

A Sociedade de Instrução Tavaredense abriu no último sábado a sua época teatral: e fê-lo brilhantemente, tanto pelo valor e significado da peça escolhida – Frei Luis de Sousa – como pela grandeza e dignidade com que a apresentou.


Poucas vezes se terão ouvido no pequeno teatro de Tavarede tão calorosas e demoradas ovações, repetidas vibrantemente no final de todos os actos. O público, dominado pela beleza do drama e pelo desempenho, admirou os esplêndidos cenários, o guarda-roupa luxuoso, toda a montagem cénica, que é mais um título honroso a juntar aos vários com que a Sociedade de Instrução Tavaredense ilustra a sua notável actividade em prol do verdadeiro Teatro e da cultura do povo. Nem faltou, a completar o ambiente, uma pequena e harmoniosa orquestra de arco que nos intervalos tocou música apropriada.


Os aplausos de sábado passado vão repetir-se hoje à noite em Tavarede.


Na próxima quarta-feira, 5, o grupo tavaredense apresentará Frei Luis de Sousa nesta cidade, no Teatro do Peninsular. Como já é tradicional nas récitas dos tavaredenses, o espectáculo começará à hora marcada, 21,30 horas. O inscrição, aberta na Tabacaria Africana, está concorridíssima.


No dia 10 do corrente será a peça representada no Teatro Avenida, em Coimbra, a favor do “Enxoval do Recém-nascido na Maternidade de Coimbra”. (Notícias da Figueira – 12.01)

FREI LUIS DE SOUSA

Ainda não tinhamos visto a obra-prima do teatro português Frei Luis de Sousa, de Almeida Garrett, representada pelos Amadores de Tavarede.


Confessamo-nos por não ter ido à encantadora e simpática aldeia do limonete assistir à estreia daquela magistral obra na magnífica criação de que os tavaredenses a revestiram.


Esta nossa falta se deve ao facto de estarmos plenamente confiados de que esse maravilhoso espectáculo nos seria apresentado num ambiente adequado à transcendência da Obra.


Na passada quarta-feira, 5, quando entrámos no Teatro Peninsular para assistir à representação de “Frei Luis de Sousa”, e vimos a sala literalmente repleta de público apreciador, sentimos a imediata sensação de que iamos apreciar um invulgar trabalho.


De facto, esta nossa impressão não foi traída.


A excelência dos cenários de Manuel de Oliveira; do guarda-roupa de Alberto Anahory; do mobiliário desenhado pelo pintor Alberto de Lacerda e cenógrafo Manuel de Oliveira, teve como complemento o maravilhoso desempenho dos Amadores de Tavarede.


O público soube premiar com justiça em calorosos aplausos o belo espectáculo de Arte que lhe foi oferecido.


O nosso “bouquet” de admiração a todos os Artistas Amadores de Tavarede, que de maneira superior se desempenharam da sua missão, o entregamos com o maior carinho nas mãos da gentil menina Maria Alice da Silva Mendes, que no seu papel da jovem D. Maria de Noronha ultrapassou toda a nossa espectativa.


Maria Alice simbolisa bem aquela Escola da Arte de Talma, que a singela aldeia tavaredense, na pessoa do sr. José da Silva Ribeiro mantém com justificado orgulho.


Para todos, sem distinção, os nossos Parabéns. (Notícias da Figueira – 12.08)

1952

JORNAL MAGAZINE DA MULHER

No nº. 15 do “Jornal Magazine da Mulher”, formosa publicação cujos sumários são sempre excelentemente confeccionados, dando-lhe um cunho de beleza e distinção, vem uma honrosa referência aos amadores de Tavarede, a propósito da representação da fantasia “Chá de Limonete”, dizendo:


“UMA OBRA QUE DIGNIFICA.
EM TAVAREDE, MODESTA ALDEIA DA BEIRA, ENSINA-SE TEATRO.


Para quem descreia da existência dum fogo sagrado, constante e generoso que lute através de todas as contigências e de todas as dificuldades por uma ideia digna e firme do verdadeiro sentido da Arte teatral, ponha os olhos e o cérebro em Tavarede, terra pobre, perdida na Beira pobre.


Esse agregado beirão tem uma associação cultural e receativa, a Sociedade de Instrução Tavaredense, fundada em 1904 e desde essa data lançada na maravilhosa missão de cultivar e difundir a cultura dos seus próprios associados.


Chega a pasmar como é possível manter-se uma obra duma projecção tão elevada e tão nobre num meio insuficiente, cheio de asperezas da sua condição geográfica e humana.


Desde há trinta anos que um homem de tenacidade e têmpera fora do vulgar, José da Silva Ribeiro, mantém um grupo cénico, na referida Sociedade. Esse grupo, com um reportório vastíssimo do qual indicamos, como representativos exemplos do critério de selecção “A Nossa Casa” de George Mitchel, “Recompensa” e “Três Gerações” de Ramada Curto, “Envelhecer” de Marcelino Mesquita, os Autos de “Mofina Mendes”, da “Barca do Inferno”, “Pastoril Português” e “Todo o Mundo e Ninguém” de Gil Vicente, “Horizonte” de Manuel Frederico Pressler, “A Herança” de Henrique Lopes de Mendonça, esse Grupo, repetimos, vem cumprindo tenazmente e com sacrifícios de vária ordem o programa do seu entusiástico orientador. Como a aldeia é pequena bem poucas são as famílias que não têm representação no agrupamento de amadores. E assim a ideia nascida num momento inspirado de amor pelos outros foi-se inveterando no espírito daqueles trabalhadores do campo e das oficinas, aqueles rapazes e raparigas, operários e cavadores, modistas e empregados de escritório, carpinteiros, serralheiros e pedreiros que ao cair da noite, de corpo cansado pelo trabalho, vão alimentar o espírito nos ensaios deste admirável núcleo teatral. E dizemos alimentar o espírito porque eles não se limitam a decorar as deixas dos seus “papéis” e recitá-los no momento oportuno com maior ou menor ênfase. Procura José da Silva Ribeiro que eles não sejam “fantoches para divertir o público”, como tão bem nos transmite no prefácio duma sua peça ali já representada, mas que “tomem a consciência das respectivas personagens dos sentimentos que lhe vão na alma, das ideias que as determinam, da época em que viveu, do ambiente em que se movem”. E assim, o grupo cénico tem uma actividade misturada de disciplina escolar e de prazer de passatempo. Suponhamos que foi escolhido para uma próxima apresentação o “Auto da Barca do Inferno”. À assembleia de actores amadores, ávida de conhecimentos, será exposta a obra vicentina, a época em que viveu o fundador do teatro português, a paisagem humana e social da corte de D. Manuel e de D. João III. Procurar-se-á na bibliografia correspondente o auxílio para uma melhor compreensão. E durante os ensaios os comparsas do auto não terão unicamente a preocupação de assimilar o contexto. Há sim uma posição inteligente e culta perante o problema que os seus lábios, os seus gestos e a sua expressão irão desenrolar no palco da aldeia.


Tudo isto é conseguido em tom de palestra, à medida que as peças vão sendo ensaiadas, sem ar de lição que decerto se tornaria insuportável para aqueles homens e mulheres de corpo cansado pelo trabalho mas de alma iluminada pela luz duma arte bem compreendida e ainda melhor ensinada.


De vez em quando são organizados programas de carácter acentuadamente cultural. Como exemplo, um programa já realizado com muito êxito e denominado “Noite do Teatro Português”: I Parte – teatro hierático – Auto da Barca do Inferno; II Parte – teatro romântico – 2º. acto da Morgadinha de Valflor; III Parte – teatro realista – 3º. acto de “Entre Giestas”.


Estas peças quando representadas no teatrinho da Sede obtêm receitas insignificantes que raramente pagam as despesas. E o Grupo, depois de apresentadas aos sócios, leva-as à Figueira da Foz procurando assim obter receitas que cubram as despesas de montagem.


É uma luta constante, uma luta nobre e velha de trinta anos.

A aldeia de Tavarede tem uma obra que dignifica não só os seus conterrâneos como o mundo teatral português. Uma Obra que se traduz só em representações conscientes de verdadeiro Teatro como em palestras culturais e educativas feitas pelo director cénico.


Já foram abordados assuntos de interesse fundamental na cultura da arte de representar. As origens e evolução do Teatro (o teatro grego, em Roma, o drama religioso da Idade Média, a Renascença), o Teatro Português, as Trilogias Dramáticas (a trilogia ligada de Ésquilo – Oréstia, a Trilogia das Barcas de Gil Vicente, a Trilogia de O’Neill “Electra e os Fantasmas”) a Imortalidade do Teatro, tudo foi descrito em dissertações simples, acessíveis ao meio e sempre acolhidas com entusiasmo que dá vontade de continuar, feliz e convicto de que quando se quer Teatro não é necessário muito dinheiro, muito público e muita cultura. É necessário, sim, defender e criar nos outros a convicção de que o espírito precisa de Teatro como alimento e não como pura distracção. E só assim se pode conseguir esse maravilhoso milagre teatral de Tavarede, lição puríssima e desassombrada da Arte pela Cultura dos povos.


Ainda há pouco no teatrinho da SIT subiu à cena uma fantasia em três actos e 24 quadros de José da Silva Ribeiro, com música de António Simões, denominada “Chá de Limonete”. Essa fantasia que é a história singela da aldeia desde a sua fundação até aos nossos dias, foi montada a preceito, com cenários e guarda-roupa inteiramente novos; num esforço gigantesco que testemunha a vontade indómita e o admirável caminho seguido pelos amadores de Tavarede. Num livro de excelente apresentação gráfica e fotográfica do acontecimento, tivemos o prazer de constatar até que ponto o amor pelas coisas teatrais está espalhado naquele rincão da Beira. E comparando com o que por cá se passa, fazendo a proporção entre as centenas de Tavarede e os muitos milhares de Lisboa fica-nos no cérebro o clarão duma Obra que dignifica, reconhecida não só pelo seu público como por diversas associações humanitárias por ela protegidas em diversas representações de beneficência.


E nós, como verdadeiros amantes do verdadeiro Teatro, daqui dizemos, orgulhosos em ajudar a transmitir a sua mensagem: operários e modistas, cavadores e ceifeiras de Tavarede, homens e mulheres dessa aldeia, reduto duma Arte Eterna, obrigado! (Notícias da Figueira – 01.12)

OS AMADORES DE TAVAREDE, EM LEIRIA

Transcrevemos do nosso estimado colega “Região de Leiria” algumas passagens da narrativa do espectáculo, excelente crítica ao trabalho dos amadores de Tavarede, que na linda cidade do Liz obtiveram mais um ponto para a sua gloriosa classificação:


“Assistiu Leiria, na passada sexta-feira, 11 do corrente, a um magnífico espectáculo teatral que o Grupo de Teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense veio dar ao Teatro de D. Maria Pia, em récita promovida pelo seu congénere desta cidade (G. T. “Miguel Leitão”), cuja receita foi entregue ao Jardim-Escola João de Deus.


..................
Às 9 horas e meia (precisas, como é louvável hábito do Grupo de Tavarede) iniciou-se a representação, no palco do nosso Teatro, da peça rústica de Manuel Frederico Pressler, Horizonte, cujo desempenho foi unanimemente considerado dos mais brilhantes a que se tem assistido no nosso Teatro.


Encenada superiormente por José da Silva Ribeiro, sentem-se os efeitos da sua competência técnica, da sua extraordinária sensibilidade artística e da sua cultura teatral. É, sem dúvida, o trabalho de um mestre, servido por bons, disciplinados e maleáveis discípulos.


A peça, com um 1º. acto leve deixando que as personagens se exponham largamente, é vigorosa na construção, que atinge no 2º. acto o seu “màximum”, para voltar no 3º. a mostrar-nos o pitoresco das gentes ribatejanas, mas sem que o conflito se esbata, antes trazendo-o suspenso e presente até à inopinada “explosão” final.


É uma peça que faz vibrar intensamente o público, no seu 2º. acto, e recorta nos restantes curiosas e pitorescas figuras da nossa lezíria.


No papel de “Rita”, dramática figura de mulher voluntariosa, decidida e sonhadora, D. Violinda Medina e Silva foi inexcedível. O público, arrebatado, interrompeu-a no final da violenta cena do 2º. acto para a premiar com uma calorosa e prolongada salva de palmas. Poderíamos apontar-lhe o que, a nossos olhos, será um insignificante senão, mas que a perfeição do seu trabalho em toda a peça não pode consentir – pareceu-nos usar de excesso de sorriso na aceitação da corte que lhe faz “Chico Borrego”. Perdoar-nos-á se dissermos que ali foge um pouco para ambiente de “opereta”. Mas todo o seu esplêndido actuar ao longo da peça nos deixou, como já havia acontecido com o seu papel de “D. Madalena” de “Frei Luis de Sousa”, absolutamente encantados. É, sem dúvida, um talento dramático excepcional.


No papel de “Manuel Firmino” brilhou outra destacada figura do Grupo de Tavarede, João Cascão, que desenhou, principalmente nos 2º. e 3º. actos, um esplêndido tipo de homem do campo, característico daquela região. Deu soberba réplica a “Rita” no 2º. acto, mas foi prazer vê-lo no 3º., pitoresco, naturalíssimo, vivo e humano. Aquela pequena figura do “Manuel Firmino” encheu toda a “cena do jantar! O seu 1º. acto foi menos natural, à procura da altura a que costuma pairar... Belo actor, assim foi o julgamento do público.


Destacaremos ainda dos intérpretes: D. Maria Teresa de Oliveira, equilibrada como raros na “Ludovina”, de apreciável sobriedade e dramatismo ao longo da sua intervenção, sobretudo nas cenas do 2º. acto, com “Rita”.


Não queremos deixar de apontar a cena com João Cascão, também no 2º. acto, em que este foi primoroso, resultando num dos melhores momentos da peça.


António Jorge da Silva foi igualmente brilhante no “Zé Bicho”, mas no 3º. acto. Natural, perfeito, deu-nos um “bêbado” não diremos equilibrado (o que era difícil), mas justo. O público atentou nele e boa parte dos aplausos finais foram-lhe destinados.


“Rosa” e “Chico Borrego”, conquanto correctos, não têm inquestionavelmente nesta peça os seus melhores trabalhos.


Os amadores que desempenharam tais papéis, sabêmo-los dos mais valiosos elementos do “Tavarede”, mas a intérprete de “Rosa” não se esqueceu da sua própria pessoa, em prejuízo da sua personagem, e do “Borrego”, declamando bem, movendo-se com desenvoltura, sofreu as consequências de um papel, como soi dizer-se, ingrato, de uma personagem cuja intervenção na peça é mais “romântica” que natural.


O grupo de “velhos”, formidável de observação, de pormenor, de naturalidade – a cena de abertura do 2º. acto é magistral!


À passagem do touro tresmalhado, vacas, cavalos e campinos, tudo se adivinha por detrás do muro que nos encobre o primor de técnica que José Ribeiro usou para tal.


A suavidade daquela madrugada da abertura do 1º. acto, com a passarada e os galos a cantar, encantou-nos.


Todas as cenas estão tratadas com saber e representadas com mestria, num conjunto harmónico e sem desnível, além do que resulta da maior evidência de alguns papéis e da maior capacidade interpretativa de certos elementos, o que é notório.


Sente-se que há ali mão segura o ordenar todo aquele movimento, que atinge por vezes proporções respeitáveis, como na cena da festa de casamento, com dezenas de figuras actuando naturalmente, vibrantemente, mas sem choque, ordenadas, em resumo – bem!


Os cenários, de artista, como o é Rogério Reynaud, criando o ambiente.


Que mais havemos de dizer?


Ouvimos alguém dizer que o público de Leiria tinha acabado de receber uma “lição de teatro”! Foi sem dúvida uma esplêndida noite que oxalá as nossas companhias profissionais nos pudessem repetir mais vezes do que vem acontecendo há longos anos...”. (Notícias da Figueira – 02.09)


TEATRO, EM LEIRIA

O aplaudido grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, foi, mais uma vez, apresentar-se no teatro de Leiria representando a emocionante peça “Raça” de Ruy Correia Leite.


No nosso colega “Região de Leiria” vem a crítica teatral da acção do aplaudido grupo, que, com a devida vénia e com regosijo, passamos a subscrever:


“Assistiu Leiria, na passada 6ª. feira, 25 de Abril, a um novo espectáculo pelo reputado “Grupo de Tavarede”, tão nosso vizinho e que desconhecíamos tão completamente.


A peça representada agora foi “Raça”, de Ruy Correia Leite. Esta peça, que nos parecia apresentar maiores dificuldades de interpretação, de “creação”, aos artistas tavaredenses que a anteriormente apresentada entre nós (“Horizonte”), apesar de lhes termos visto representar “Frei Luis de Sousa”, cometimento de monta, mas em que a fixação dos tipos está definida, bastando – e não é pouco! – subir até eles, essa peça “Raça” teve um apreciável desempenho de conjunto e foi na maioria das suas personagens principais esplêndidamente representada, com uma nota de “magnífico” para o trabalho de D. Violinda Medina. De facto, artista reveste de tal personalidade, de tal verdade a sua personagem que dir-se-ia espalhar em sua volta um “fluido dramático” cuja força nos impressiona mesmo quando fica arredada dos primeiros planos da acção. Foi uma interpretação perfeita!


Depois João Cascão, cujo belíssimo trabalho foi subindo de acto para acto até nos dar um 3º. convincente, melhor que os anteriores, em que a interpretação do “Dr. Jerónimo de Castro” teve menos dignidade, com uma pincelada ou outra de “pictoresco” mesmo, embora tudo isto tão pouco perceptivelmente, que temo estar a ser injusto ou incorrecto para tão belo artista como é João Cascão.


O seu 3º. acto encantou-nos. Todos os estados de alma e os da “débacle” física nos foram dados com uma sobriedade digna e altamente emotiva. A presença dominadora de “Isabel de Fontelos” (D. Violinda Medina) sentia-se menos quando tinha em sua frente João Cascão, resultando um equilíbrio de representação sobremodo agradável. A cena de ambos no terceiro acto (2ª. cena), foi admirável de simplicidade, dando-nos toda a gama de sentimentos implícitos naquele momento dramático, em dois ou três “toques” sóbrios, num olhar, num gesto, numa atitude...


Gostámos muito também da “Vitória”, a velha criada, por D. Maria Teresa de Oliveira. Pitoresca, sem se deixar dominar pelo “fácil”, só desequilibrando a figura quando olha para o público, o que também lhe notáramos numa das peças anteriores. De resto, uma bem interpretada criada velha da nossa Província.


D. Maria Aurélia Ribeiro e Fernando Reis, desempenhando “Guidinha” e “Manuel Bernardo”, fiseram trabalho apreciável, ela, muito bem nas cenas amorosas, muito natural, muito convincente, mas estridente por vezes (poucas) noutras cenas de menos relevo teatral; ele, menos à vontade nas cenas de amor, bom nas cenas com “Zecas”, mas perdendo noutras cenas ao longo da peça, pelo tom declamatório de algumas suas falas, a linha característica da sua personagem: o homem que se fez por si, tenaz, seguro e “em guarda” (estes homens, quando falam, mesmo muito, não declamam em verso...). No entanto, sentimos bem quanto trabalho não representou o que nós vimos para F. Reis (ele perdoará as nossas observações!). No conjunto dos 3 actos teve uma presença correcta, marcando um “Manuel Bernardo” aceitável, o que a muitíssimos está vedado, teatro profissional, inclusivé.


A D. Maria Aurélia Ribeiro felicitamo-la: a sua “Guidinha” existiu no palco do “Maria Pia”, o que igualmente a tantas está vedado: dar vida, tornar reais, palpáveis, dar verdade às suas personagens.


D. Vitalina Lontro, curiosa na “Viscondessa”: duma comicidade, às vezes hesitante, mas sempre sóbria, elegante até. Merece felicitações especiais por ter conseguido dominar o quantas vezes indomável: o “fácil” da figura, e ainda por outros motivos que se prendem com a estrutura da sua personagem e a maneira como foi compreendida, quando teria sido tão natural interpretá-la de modo diverso.


“Zecas”, teve em João de Oliveira Júnior um intérprete forçado.


Não é papel para o seu temperamento e daí resultaram momentos menos bons no conjunto da peça. Trata-se, entretanto, dum belíssimo artista (e Leiria terá ocasião dentro em pouco de o verificar), mas não conseguiu dar-nos não só os elementos estruturais da psicologia da personagem, como ainda não pôde imprimir toda a respectiva personalidade aos momentos em que interveio. Dentro do que a sua voz, de doce modulação, lhe permitiu fazer, defendeu bem o encargo, mas foi vencido por vezes.


António Santos, no “Dr. Magalhães”, foi sem intenção levemente “caricato” mais do que a personagem podia admitir, mas aceitou-se e o conjunto permaneceu. Ajudou até certas cenas, com uma utilidade evidente.


António Paula Santos, muito correcto no pequeno papel de “Vilela”. Certíssimo.


Os restantes elementos: D. Maria da Conceição Santos e José Maria Cordeiro, bem, correctos, conscientes.


Bom cenário de Rogério Reynaud, nada ficando a dever a qualquer realização cenográfica dos palcos nacionais bem como a encenação, no tocante a arranjo de cena, mobiliário, etc.. Falam-nos da disparidade nos móveis: três estilos ao mesmo tempo ou coisa que o valha, mas é assunto que nos interessou somenos: não percebemos de móveis, nem percebemos porque interessarão a tal ponto numa sala que pelas suas condições especiais podia ter de tudo, desde, por herança, algumas arcas visigóticas até um maple com Dunlopillo!


A equipa de colaboradores de cena de José Ribeiro (o mestre de boas obras): ponto, contra-regra e maquinista, foi eficiente como sempre, mas anotamos uma menção especial para o primeiro. Os “cães” do início da peça estavam humanos, note o segundo.


E agora – José da Silva Ribeiro, cujo trabalho exaustivo de encenação lhe dá jus às mais vibrantes palavras de admiração, não tão brilhantes e expressivas certamente como as que proferiu no intervalo do 2º. para o 3º. acto”. (Miguel Franco).”


Também o jornal “A Voz do Domingo”, semanário de Leiria, se referiu ao espectáculo com a seguinte apreciação:


“......................
Nunca tinhamos tido ocasião de apreciar este conhecido grupo dramático, e à curiosidade natural dos que apreciam teatro, juntava-se a de ver “como se portaria” um grupo de amadores, numa peça já nossa conhecida através do palco de maior responsabilidade no país, o do Teatro Nacional de D. Maria II.


Confessamos gostosamente que excedeu toda a nossa espectativa!


A maneira como se apresentou, o à vontade de todos estes actores-amadores, fazem-nos esquecer esse “amadorismo” tão vulgar, e até desculpável, em realizações desta natureza.


A representação foi impecável, da parte de todos, mas não podemos deixar de destacar D. Violinda Medina e Silva, no papel de “D. Isabel Fontelos”, João Cascão no de “Doutor Jerónimo” e João de Oliveira Júnior no de “Zecas”, que nos parecem ter realizado interpretação dificilmente excedíveis.


Deve-se este êxito, em primeiro lugar ao requintado gosto do seu director, senhor José da Silva Ribeiro, cujo temperamento de artista consegue com segurança e rigorosa disciplina, um conjunto primoroso e harmónico, no qual nada é deixado ao acaso, e cada um ocupa o seu lugar plenamente, sem falsa timidez, e sem prejuizo dos outros.


Como público que somos, damos os parabens, e em nome dos pobrezinhos agradecemos aos dirigentes da L. I. C. de Leiria, e felicitamo-los pelo êxito da sua iniciativa que proporcionou à cidade uma representação de tão alto valor dramático”. (Notícias da Figueira – 05.17)

TEATRO PARA O POVO

A Sociedade de Instrução Tavaredense inicia uma digressão pelas diversas freguesias rurais do nosso concelho que é mais uma eloquente manifestação da sua actividade e uma afirmação brilhante da fidelidade ao seu programa de cultura pelo Teatro.


O Grupo de amadores tavaredense vai mostrar Gil Vicente ao povo do concelho da Figueira, representando-o nas sedes das diversas agremiações de recreio, mesmo daquelas situadas nas mais pequenas e humildes localidades – que a todas elas irá o grupo tavaredense.


Ao elaborar o seu programa de Teatro Português, a Sociedade de Instrução Tavaredense teve em consideração o facto de Gil Vicente ser inteiramente desconhecido, com talvez uma outra rara excepção, das populações a que se dirige. O espectáculo abre com uma palestra a preceder a representação de dois autos vicentinos, e fecha com uma peça de teatro contemporâneo.


Damos em seguida a programação:
I – 15 minutos de palestra sobre Gil Vicente – o seu tempo e a sua obra.
II – Representação do Auto da Barca do Inferno.
III – Representação do Auto da Mofina Mendes.
IV – A peça em 1 acto, de Ramada Curto, Três Gerações.


Esta digressão tem início amanhã, pelas Alhadas, seguindo-se nos domingos imediatos as outras povoações. Estão já marcados os dias para Brenha, Caceira e Quiaios. Depois, no mês de Julho. Serão visitadas as povoações de Vila Verde, Maiorca, Santana, etc..


Admirável exemplo que merece registo especial, o desta actividade da benemérita Sociedade de Instrução Tavaredense. (Notícias da Figueira – 05.31)

GIL VICENTE

Prossegue a tão simpática como invulgar actividade da Sociedade de Instrução Tavaredense, no propósito de apresentar o seu programa de Teatro Português às populações rurais do concelho da Figueira.


Esta digressão começou no passado domingo, pelas Alhadas, e prossegue amanhã com a 2ª representação em Brenha, na sede da Troupe Recreativa Brenhense. Estão já marcados os dias para as visitas a Caceira, Quiaios e Vila Verde, continuando depois a digressão por outras freguesias.


O produto líquido de cada representação reverte integralmente a favor das colectividades em cuja sede se realize o espectáculo. Trata-se, porém, dum programa que obriga a despesas relativamente avultadas, visto que, além dos transportes do grupo cénico (34 pessoas) e do material de cena, há ainda o aluguer do guarda-roupa para os dois autos vicentinos, cabeleiras, etc., sendo de admitir que numa ou noutra localidade a visitar dada a sua pequena população e a pobreza do meio, a receita não chegará para as despesas: mas nem mesmo esta circunstância impedirá a visita dos tavaredenses, pois o “deficit” que se verificar será coberto pela Sociedade de Instrução Tavaredense.


Eis uma iniciativa digna de especial louvor. (Notícias da Figueira – 06.07)

1952.06.07 - ESPECTÁCULO NAS ALHADAS

Alhadas – Conforme demos notícia, teve lugar no domingo, 1 do corrente, um espectáculo em benefício do nosso Jardim-Escola, pelo grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense.


A Direcção da Boa União cedeu do melhor agrado a sua casa, que se encheu de uma assistência selecta que sinceramente aplaudiu o magnífico Grupo que se exibiu de uma forma admirável.


O espectáculo abriu com a apresentação das crianças do Jardim-Escola, que se exibiram em danças e canto, acompanhadas a orgão pela digníssima Regente e auxiliada pela professora sua colega. A exibição das crianças agradou bastante e foram sempre muito aplaudidas pela assistência.


Seguiu-se uma magistral lição sobre o teatro de Gil Vicente, dada pelo Director do Grupo de Tavarede, nosso querido amigo José Ribeiro, que historiou a vida daquele grande poeta desde a apresentação das suas peças na côrte da excelsa Rainha D. Leonor até ao ponto em que elas foram proibidas de serem apresentadas em público.


A lição, que foi escutada em religioso silêncio, preparou a assistência menos culta a poder apreciar e perceber a representação dos autos que iam seguir-se. José Ribeiro foi, no final, delirantemente ovacionado, muito justamente, pois produziu uma lição daquelas que só ele sabe dar em conversa amena com o público que o escuta.


Seguiu-se a representação do “Auto da Barca do Inferno”, que teve por parte dos amadores-actores desempenho digno dos maiores aplausos, que de facto ouviram no final.


Vem, seguidamente, depois de curto intervalo, a representação do “Auto da Mofina Mendes”, um dos melhores que o iniciador do teatro português escreveu.


Este Auto, que tem alguma semelhança com os “Autos Pastoris” (Presépio), muito divulgados no nosso concelho, e que quase não há ninguém que não tenha visto representar, é de uma naturalidade, de uma singeleza, de uma ruralidade que impressiona.


Que beleza de teatro! O que de realidade encerra este Auto do Mestre Gil! Neste, como no da “Barca do Inferno”, o desempenho foi correctíssimo.


Fechou este inolvidável espectáculo com a representação da lindíssima e comovedora comédia do grande escritor teatral Ramada Curto – “Três Gerações” – que teve desempenho admirável por parte dos seus intérpretes, D. Violinda Medina e Silva, D. Maria Tereza de Oliveira, João Cascão, (da velha guarda) e as meninas Maria Aurélia Ribeiro e Lucídia Santos, estas quase estreantes, que representam como se fossem já velhas na arte de representar.


Que belo desempenho! Que magnífica lição! Que apresentação tão distinta! Que naturalidade! Muito bem. Assim é que se faz teatro!


Descido o pano, a assistência vibrando de entusiasmo, aclamou os distintos actores, fazendo chamada especial a José Ribeiro, o impulsionador do Teatro no nosso concelho, que, com certa comoção, agradeceu.


Subido, novamente, o pano, foi, por uma das crianças do Jardim-Escola, oferecido a José Ribeiro um lindo ramo de cravos, tendo, nesta altura, o Presidente da Comissão de Assistência do Jardim-Escola, agradecido, em breves palavras, o contributo material dado ao Jardim-Escola e ao prazer espiritual dado a quantos tiveram a felicidade de assistir a tão grandioso espectáculo.


Parabéns ao querido amigo José Ribeiro, e ao excelente grupo que dirige, pelo brilhantismo da sua representação.


Parabéns à Comissão de Assistência do Jardim-Escola pelo êxito obtido materialmente e pela sua acção no sentido de nos proporcionar uma tão agradável noite de Arte.


A Comissão de Assistência do Jardim-Escola das Alhadas, agradece, com muito reconhecimento, ao distinto grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense e ao seu digníssimo director, exmo. sr. José da Silva Ribeiro, o inolvidável espectáculo que aqui vieram dar, em benefício desta Instituição, e que além do bom resultado material, constituiu um serão de bom Teatro e uma noite de Arte, que perdurará para sempre. (O Figueirense)

O GRUPO DE TAVAREDE EM LAVOS

No salão de festas do Sport Club de Lavos, teve lugar no passado domingo um explêndido espectáculo a que prestou o seu concurso a Sociedade de Instrução Tavaredense.


Foram representados o “Auto da Barca do Inferno” e o “Auto de Mofina Mendes”, de Gil Vicente e a comédia “Três Gerações”, de Ramada Curto.


Antes de começar o espectáculo, mestre José Ribeiro deu-nos, - como só ele sabe fazer, - e a título de breve explicação sobre o que se iria representar, uma magnífica lição sobre Gil Vicente e a sua obra.


Recebeu fartos aplausos.


Seguiu-se a representação das 3 peças que agradou em absoluto, como não podia deixar de ser.
No final foi feita uma chamada especial a José Ribeiro, a quem os associados do Sport, que enchiam completamente o salão, tributaram uma prolongada salva de palmas.


O presidente da colectividade, que se fazia acompanhar do 2º secretário da Direcção e de duas gentis meninas, subiram então ao palco para felicitar José Ribeiro, a quem ofertaram ramos de flores, bem como à grande amadora D. Violinda Medina e Silva.


Foi o que se pode chamar uma noite em cheio. E só é pena que espectáculos desta natureza se não possam repetir muitas vezes.


Que bom seria para todos nós se, periodicamente e em prasos curtos, nos fosse dada oportunidade de receber a visita do Grupo de Tavarede.


Iamo-nos cultivando quase sem dar por isso. Aprenderíamos melhor a conhecer a Arte, a Literatura e em resumo tudo o que existe de bom e que é genuinamente português. Mas, infelizmente, não acontece assim. Às aldeias só chega a voz do cinema ambulante que nos impinge, a maior parte das vezes, muitos abortos estrangeiros que nada nos cultivam e que apenas têm a virtude de nos ajudar a esquecer aquilo que nos pertence. (Notícias da Figueira – 08.02)

sexta-feira, 23 de março de 2012

Teatro da S.I.T. - Notas e Críticas - 21


1948


UM BELO SERÃO DRAMÁTICO

A Sociedade de Instrução Tavaredense organizou, para recreio espiritual dos seus associados e pessoas de família, um interessantíssimo serão de arte dramática ao qual foi dado o título genérico de “O Natal no Teatro”, sendo levados à cena “Os Mistérios da Virgem” ou “Auto da Mofina Mendes”, de Gil Vicente; “O Presépio”, o tradicional “Presépio” também conhecido na nossa região por “Autos Pastoris”, e a peça bíblica “O Nascimento do Messias”.


Pode considerar-se ocioso dizer que o teatrinho da Sociedade de Instrução Tavaredense regorgitava de sócios e pessoas de suas famílias, tendo-se todos deliciado com o interessante serão de arte que o grupo cénico da SIT lhes dedicou e que se repetirá no próximo dia 3 de Janeiro, visto que a lotação do teatro, como era de esperar, se esgotou.


O mais interessante de “O Natal no Teatro”, e da interpretação e da montagem das três pequeninas peças – que, como poderá supor-se, visto tratar-se do grupo cénico da SIT, foi impecável – na indumentária, nas caracterizações, nos belos cenários expressamente feitos pelo artista Rogério Reynaud e na boa música do distinto amador António Simões, na montagem, em suma – é que cada uma das peças mereceu especial encenação, visto tratar-se, embora com o mesmo tema, de épocas de teatro e “maneiras” consideravelmente distanciadas. E todos se houveram bem, como, aliás, era de esperar e de harmonia com o que explicou à assistência o Director do Grupo Cénico, José Ribeiro, numa espécie de prólogo ou introdução ao que ia ver-se e ouvir-se, e no qual em breve escorço, se referiu ao Teatro e à sua evolução, através dos tempos.

Assim os “Mistérios”, escritos por Gil Vicente para serem “representados ao Principe D. João III endereçado às matinas do Natal, na era do Senhor de 1534”, são incluídos no Teatro hierático, embora interessados com o entremez da “Mofina”; o “Presépio” foi representado, conforme a tradição local (afinal mais antiga em Tavarede do que na Figueira), em perfeita liberdade de movimentos dos intérpretes, com os consabidos anacronismos de guarda-roupa, de referências de época, de situação geográfica, etc., tal qual o temos visto durante gerações e gerações, que lhe têm imprimido “coisas de sua casa” e chalaças de ocasião, nos conhecidos quadros dos “Pastores Brutos”, de “As Cinco Pastoras”, de “O Cego e o Moço”, da “Romagem do Diabo” (nesta particularidade está o segredo de janais ter sido “retirado do cartaz”, em anos e mais anos, atravez de gerações e gerações, deliciando a assistência e tornando-se motivo de... orgulho de tantos conterrâneos nossos que têm cultuvado a chamada arte de Talma (sic). Finalmente subiu o pano e abriram-se as cortinas para a representação da peça bíblica em 1 acto e 4 cenas “O Nascimento do Messias”, com acção desenrolada em Nazaré e em Belém de Judá, no ano de 752 de Roma, peça sem indicação do nome do autor, mas que sabemos expressamente estudada e escrita para esta interessante e curiosa festa e que, muito justamente, agradou a todos! (Notícias da Figueira – 01.03)

1949

RAÇA

Está de parabéns a Sociedade de Instrução tavaredense pelo triunfo alcançado pelo seu grupo cénico com a representação da excelente peça em 3 actos, de Rui Correia Leite – “Raça”.


O espectáculo de sábado, em Tavarede, deixou uma impressão de agrado que bem se revelou nos calorosos aplausos da assistência que enchia o teatro. A par do bom desempenho, notou-se uma cuidada montagem cénica, com um explêndido cenário do distinto artista Reynaud.

“Raça” repete-se hoje à noite e, pela última vez, amanhã, em “matinée”, às 16 e meia horas. E como esta peça não será representada na Figueira pelo grupo tavaredense, ao muitas as pessoas desta cidade que iao a Tavarede hoje e amanhã.


Trata-se, na verdade, dum bom espectáculo teatral, que honra as tradições da Sociedade de Instrução Tavaredense. (Noticias da Figueira – 04.23)

ESPECTÁCULO A FAVOR DO JARDIM-ESCOLA

Quem não conhece o Jardim-escola João de Deus, esse modelar instituto de educação infantil que faz honra à nossa terra? Frequentam-no presentemente 91 crianças, dos 4 aos 7 anos de idade, vindas de todas as classes sociais e que ali recebem esmerada educação integral, com duas refeições diárias. Algumas são filhas de pessoas que podem pagar, e pagam, a quota total atribuida a cada criança; a maioria, porém, é oriunda de gente de poucos meios e extremamente pobre, que não pode pagar. Para que o Jardim-escola continue a ser frequentado por crianças de todas as classes sociais e não apenas pelas que estão em condições de satisfazer a quota total, procura a Comissão de Assistência angarias fundos.


A obre é meritória e a Figueira dedica-lhe provada simpatia. Por isso se prevê lotação esgotada no espectáculo do dia 10 do corrente, no Teatro Peninsular. O programa é excelente e valioso em todos os aspectos.


A 1ª parte é preenchida pelas 91 crianças, do Jardim-Escola, com coros e danças e a fábula “A Cigarra e a Formiga”, para a qual o distinto Artista Reynaud pintou expressivos apontamentos cenográficos. E na 2ª parte, a cargo do grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, temos o “Auto da Barca do Inferno”, a famosa obra vicentina que o grupo de Tavarede apresenta com notável brilho, belos cenários de Reynaud e guarda-roupa a rigor; e, a fechar o espectáculo, a graciosa comédia, agora pela primeira vez apresentada nesta cidade – “Uma Teima”. (Notícias da Figueira 06.04)

TEATRO

O grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense apresenta hoje pela última vez, no teatro da sua sede, em Tavarede, este valioso programa:


A Herança, peça em 1 acto, em verso, de Henrique Lopes de Mendonmça; Noite de Natal, peça em 1 acto; Não Mentirás, comédia em 3 quadros, de Chagas Roquete; e O Lençol de Noivado, peça em 1 acto, de Alice Ogando.


As quatro peças estão postas em cena com o rigor de cenários, mobiliário e indumentária que é timbre do grupo tavaredense.


Pela diversidade dos géneros e dos assuntos, pela categoria dos autores das obras representadas e pela excelente interpretação dos amadores tavaredenses, este programa é de muito interesse teatral e honra a Sociedade de Instrução Tavaredense, que se mostra firma na sua acção meritória de cultura pelo teatro.


O espectáculo começa pontualmente às 21 horas e meia e estará terminado antes da meia noite. (Notícias da Figueira – 12.31)

1950

A ACTIVIDADE DA SIT

Veio à nossa redacção o sr. Benjamim Gaspar Lontro, presidente da direcção da Sociedade de Instrução Tavaredense, a fim de esclarecer o nosso distinto colaborador Jorge de Bombarral e os leitores do “Notícias da Figueira” acerca da actividade do grupo cénico daquela colectividade.


Disse-nos o sr. Benjamim Lontro que, podendo depreender-se do que escreveu Jorge de Bombarral, que o grupo cénico tavaredense esteve inactivo, lhe parecia conveniente deixar-nos uma nota das peças representadas pelo grupo durante o ano findo e já no ano corrente, a qual é como segue:


Em 1949: Todo o Mundo e Ninguém, Auto Pastoril Português e Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente; A Herança, 1 acto em verso de Henrique Lopes de Mendonça; As Três Gerações e Uma Teima, comédias em 1 acto, respectivamente de Ramada Curto e Álvaro Cabral; a peça em 3 actos de Rui Correia Leite Raça; e para o Natal as peças em 1 acto: Noite de Natal, Não Mentirás, de Chagas Roquete e O Lençol de Noivado, de Alice Ogando. Destas peças representou na Figueira, a favor do Jardim-Escola João de Deus, o Auto da Barca do Inferno e Uma Teima, e a peça Raça foi representada no verão duas vezes na Figueira e duas vezes em Buarcos.


No ano corrente, além da repetição pelo Ano Novo do programa do Natal, o grupo já ensaiou e representou duas vezes a comédia em 3 actos de Aristides Abranches O Cão e o Gato.


O presidente da direcção da S. I. Tavaredense acrescentou: mesmo nos períodos em que, por motivo de luto e de doença, esteve privado do concurso de dois dos seus principais elementos, o grupo manteve a sua actividade, que não é apenas a do ocasional agrupamento de pessoas que se reunem no inverno para matar o tempo nem tão pouco uma actividade que tenha por fim principal alcançar lucros comerciais: muito ao contrário, para dar execução ao seu programa de cultura através do Teatro, algumas vezes a Sociedade de Instrução Tavaredense ensaia peças que antecipadamente sabe não serem comerciais.


Ao terminar o seu esclarecimento, o presidente da Sociedade de Instrução Tavaredense disse-nos ainda não estranhar que Jorge de Bombarral desconheça a actividade do grupo tavaredense, o que se deve à falta de propaganda, com a qual a SIT se não tem preocupado. (Notícias da Figueira – 05.27)

OS AMADORES DE TAVAREDE EM COIMBRA

Na próxima segunda-feira, 12 do corrente, o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, que está sempre de coração aberto para praticar o Bem, vai a Coimbra realizar mais um espectáculo a favor do simpático Asilo da Infância Desvalida daquela cidade.


Coimbra conhece já muito bem os modestos amadores de Tavarede, que se tornam dignos da admiração e do apreço das plateias pela forma conscienciosa como desempenham as peças que põem em cena.


Desta vez levam ao público da Lusa-Atenas uma deliciosa comédia em 3 actos – “Pé de Vento” – original dos célebres comediógrafos espanhois irmãos Quintero, e é de esperar que o Teatro Avenida regorgite de espectadores, devido à simpática finalidade da récita, e que os prestantes amadores mais uma vez vejam coroado de êxito a sua benemérita jornada. (Notícias da Figueira – 06.10)

DE BUARCOS

No passado domingo a Sociedade de Instrução Tavaredense representou no Teatro Grupo Caras Direitas, a admirável peça Raça. A plateia, que estava quase repleta, aplaudiu nos fins de acto todos os excelentes amadores que compõem o grupo cénico da vizinha e risonha vila de Tavarede – terra de bons costumes, que honra o concelho da Figueira -, e o seu digno director, nosso amigo sr. José da Silva Ribeiro.


O desempenho foi magnífico por parte de todos, mas sem melindre para nenhum, eu quero aqui destacar os nomes dos excelentes amadores srs. João Cascão, D. Violinda Medina e Silva, D. Maria Aurélia Ribeiro e João de Oliveira Júnior.


Os nossos parabéns ao José Ribeiro pela oportunidade de mais uma vez apreciarmos o seu magnífico grupo, que ele “rege” com a autoridade já há muitos anos adquirida, ou antes amizade que tem feito do seu grupo um dos melhores grupos de amadores teatrais do país. Nos entre-actos, animou ao piano, o nosso amigo sr. José Bracourt. (Notícias da Figueira – 08.27)

JOSÉ DA SILVA RIBEIRO

O grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense vai dar-nos em breve mais uma nova peça – e desta vez uma peça bem sua. Os leitores do Notícias da Figueira já lhe conhecem o título, visto que em tempos aqui noticiámos ir entrar em ensaios a fantasia Chá de Limonete.


Certos pormenores que por acaso ouvimos referir aguçaram-nos a curiosidade de saber mais alguma coisa acerca da peça tavaredense. O Chá de Limonete seria realmente o que ouvimos? Se assim fosse, o grupo de Tavarede iria oferecer-nos uma autêntica novidade, merecedora da atenção de quantos se interessam pelo teatro de amadores.


Facilmente nos esclarecemos indo à vizinha terra do limonete, onde conversámos com o director do grupo da Sociedade de Instrução Tavaredense, sr. José Ribeiro. Acolheu-nos prontamente e francamente respondeu a quanto lhe perguntámos, sem reticências nem rodeios.

= É então certo que o Chá de Limonete vai ser servido ao público brevemente?...


= Sim. A não surgir qualquer contratempo, devemos representá-lo em Tavarede no dia 21 de Outubro próximo. Contamos vencer, até lá, as dificuldades de vária ordem que se deparam na montagem duma peça deste género.


= E nós esperamos vê-la na Figueira pouco depois.


= Não. O Chá de Limonete não sai de Tavarede. Será representado exclusivamente no teatrinho da Sociedade de Instrução Tavaredense.


= Mas sempre o seu grupo tem levado à Figueira as peças que ensaia...


= É certo, e sempre o público figueirense tem sido amável e generoso com os amadores de Tavarede, ainda que às vezes se não dê pela presença destes na Figueira, como poderá concluir-se do silêncio dos jornais sobre as representações, certamente por ficarem desertas as cadeiras dos críticos, as quais, aliás, nunca deixaram de lhes ser reservadas... Mas, como iamos dizendo, desta vez não iremos à Figueira. A peça foi escrita e está a ser montada para Tavarede, e daqui não sairá.


= É então uma peça bairrista, tavaredense 100 por cento, apenas para tavaredenses...

= Nada disso! Chá de Limonete é tavaredense de gema – 100 por cento, como Você disse – mas é uma peça para toda a gente. Os casos referidos, os episódios, as figuras vêm da tradição , da história e da crónica locais; mas as histórias que se contam e vivem (a peça poderia chamar-se – História de Tavarede) tão bem as entende o espectador tavaredense, como o figueirense, como o de qualquer outra parte.


= Já agora, se quisesse levar ao fim a sua amabilidade, podia dar-nos um resumido esquema da revista...


= Revista... Está bem, sim, pode chamar-lhe revista, por comodidade de expressão: porque se trata de uma obra teatral que é uma sucessão de quadros, agrupados em 3 actos. Mas não nos faça a injustiça de supor que vamos, incoerentemente, oferecer ao nosso público uma revista... revista!


= Se quisesse esclarecer o seu pensamento... Parece que o género não tem a sua simpatia...


= Referimo-nos à revista estilo Parque Mayer, tão inferiorizada e contra a qual se insurgem os apreciadores do bom teatro ao vê-la representada por profissionais. Ora, se são amadores que a representam, o caso ainda é mais grave, porque estes só nos podem dar o que a revista tem de mau, sendo-lhes inacessível o que nela ainda existe de bom no aspecto artístico. Levaria tempo a desenvolver aqui o que sobre o assunto pensamos.


= Podemos dar publicidade no Notícias da Figueira às opiniões que lhe acabamos de ouvir?


O nosso entrevistado encara-nos com expressão de grande franqueza, e muito singelamente diz:


= As minhas opiniões, sobre teatro ou sobre seja o que for em que posso tê-las, costumo afirmá-las em voz alta. Ponha-as em letra redonda se lhe apraz, embora eu não tenha nisso qualquer interesse.


= Mas os nossos leitores gostariam de conhecê-las...


= Dê-lhes, então, opiniões de críticos abalisados. Sempre valerão mais do que as minhas. Estas, por exemplo.


E foi buscar-nos recortes de jornais, donde copiamos:


Diário de Notícias: “O teatro de amadores de Lisboa ou de algures foi, de há tempos a esta parte, contaminado pelo vício da revista, não para exaltar o regionalismo através de quadros típicos e figuras pitorescas, mas copiando servilmente os aspectos banais das revistas em série, modelo P. M., com os mesmos defeitos e até com o mesmo guarda-roupa já bastante usado. E isso é, realmente, perigoso para a finalidade educativa das Sociedades de Instrução e Recreio.”.

A Voz: “... o mesmo compadre, as mesmas chefes de quadros, as mesmas rábulas e as mesmas canções... Seria prudente mudar de rumo e fazer alguma coisa de original...”.


Diário de Lisboa: “... De modo que é difícil deixar de ter duas maneiras de ver – uma para o Parque Mayer (mesmo quando ele mora algures), outra para a louvável e generosa iniciativa dos amadores. Mas se estes, arrastados por um poder de entusiasmo mal orientado, se deixam levar para propósitos de fazer tão bem (ou tão mal?...) como a produção terrivelmente comercializada contra qual todos se costumam insurgir e da qual todos se dizem fartos, arriscar-se-iam a que o público em geral e o comentarista em especial passassem a olhar o caso sem o benefício da benévola simpatia que irresistivelmente se usa atribuir-lhes.”.


O Século: “... A revista segue a traça comum, entremeando quadros de comédia com quadros de rua e utilizando os moldes habituais. Há o indispensável microfone, o infalível fado...”.

República: “... É pena que algumas (revistas de amadores) não mantenham mais puras características locais e sejam demasiadamente “Parque Mayer”, circunstância que, em vez de as valorizar, as desvaloriza. Com um pouco mais de orientação e de critério artístico, estas revistas seriam, além dum passatempo para os seus intérpretes, um excelente meio de divulgação de costumes, de tradições e de belezas bairristas.”.


= Aí tem. Eu entendo que revistas de amadores devem ser isso mesmo: além de saudável passatempo. “um excelente meio de divulgação de costumes, de tradições e belezas bairristas”.


Aqui objectámos:


= Mas é inegável que o público acorre precisamente a essa “produção terrivelmente comercializada”, o que significa que é disso que ele gosta.


= E... acha que não deve tentar-se nada para melhorar o gosto do público? Será então função dos grupos de amadores manter e explorar o mau gosto do público? Parece-lhe que é assim que as Sociedades de Educação e Recreio cumprem a sua missão, como se em vez de sociedades de educação e recreio fossem apenas... empresários a farejar negócio?


E, sem nos dar tempo a responder, o nosso entrevistado continuou:


= Não responda, que não é preciso. Fechemos o parêntesis e voltemos ao Chá de Limonete. Que quer saber então, concretamente?


= Diga-nos qual o assunto da peça, o esquema sobre que foi construída.


= Como lhe disse, são histórias de Tavarede. Está claro que sendo de Tavarede, o são também da Figueira, de Buarcos... Numa sucessão cronológica de 24 quadros agrupados em 3 actos, passa a história da terra do limonete. No 1º. acto – “Tavarede de Outros Tempos” – o Velho-Tavarede mostra a Frei Manuel de Santa Clara vários episódios: a doação de Tavarede à Sé de Coimbra, com o Rei D. Sancho I, a Rainha D. Dulce, os Bispos de Braga, de Viseu, do Porto e de Lisboa, o Alcaide-Mor de Coimbra, o Mordomo-Mor da Cúria, o célebre notário Julião, etc. (ano de 1191); as marinhas de Tavarede (século XVI), pois era então aqui bastante numerosa a classe dos marnoteiros; a bruxa de Buarcos Isabel Peixinha e as laranjas da China... de Tavarede (século XVII); um aspecto da luta entre o Fidalgo Fernão Lopes de Quadros e o Cabido de Coimbra (século XVIII), terminando o acto com o celebrado jantar do Deão de Coimbra na sua visita anual a Tavarede. O 2º. acto – “Couto sem Cabeça” – abre com a mudança da Câmara de Tavarede para a Figueira e mostra-nos ainda costumes dos séculos XVIII e XIX como os fornos da poia, os lombos e a língua de vaca, a colher das papas, a saia-balão e um episódio relacionado com a tomada do Forte de Santa Catarina aos franceses em 1808. No 3º. acto – “Tavarede de Hoje em Dia” – surgem números de carácter folclórico, rememoram-se tradições, põem-se a falar – e a cantar... – figuras como o velho ribeiro de Tavarede, o palácio dos Condes, a fonte, os potes enfeitados do 1º. de Maio... E a concluir, como lição moral da peça, a glorificação do trabalho.


= Mas, pela resenha que lhe ouvimos, o Chá de Limonete exige montagem dispendiosa!

= Sem dúvida. Veja a variedade e a quantidade de indumentária e cabeleiras para as várias épocas... E cenários... Para todos os quadros estão a ser pintados cenários próprios por dois grandes artistas: o nosso Reynaud e o cenógrafo do Teatro D. Maria II, Manuel de Oliveira. E oiça isto, que é curioso: os rapazes da direcção da Sociedade de Instrução Tavaredense dispuseram-se a pôr em cena o Chá de Limonete sem nenhuma esperança de que as receitas cubram as despesas! Todos os louvores lhes são devidos. Para proceder assim é preciso ter coragem e não ser dominado por estreito critério comercial de empresário. E fiquemos por aqui. Dentro de pouco estão lá em cima, no teatro, os rapazes e as raparigas à espera, para o ensaio...


= Podemos assistir?


= Se o desejar... Mas olhe que estamos apenas a ensaiar a música. A propósito: posso dizer-lhe que a música é lindíssima, toda original de António Simões. Chá de Limonete ficará sendo um dos melhores trabalhos deste distinto artista-amador.


Despedimo-nos, agradecidos pelas informações obtidas e que aqui oferecemos aos nossos leitores, por certo com muito aprazimento seu. (Notícias da Figueira – 09.06)

TEATRO DE AMADORES

Ainda a entrevista que tivemos com o director da Sociedade de Instrução Tavaredense, sr. José Ribeiro e o que disse o nosso colega “A Voz”.

“Falar da decadência do Teatro português é zangarrear em sanfona velha. A falação tem sido feita, há um ror de anos a esta parte, em todos os tons, sob todos os aspectos e a todos os propósitos.


Nunca, porém, é demais bater a tecla, enquanto não se enfiar por outro caminho. Já lá dizia o bom do Rosalino: “O Mundo não se emenda, mas eu não largarei jamais o Mundo!”. O homem não era, afinal, tão desassisado como o quiseram fazer.


Afere por este critério um jornalista que provou o seu pulso na Imprensa provinciana, espírito vivo e sensato que é um apaixonado do Teatro, tendo organizado na ridente povoação de Tavarede, a par da Figueira da Foz, um grupo teatral na Sociedade de Instrução Tavaredense, formado por figurantes buscados nas mais humildes profissões – gente do campo, mesteirais, etc. Este núcleo, sob a sua inteligente orientação, tem interpretado com geral aplauso não só peças do seu organizador, como de outros autores nacionais e estrangeiros. É uma obra de cultura e patriotismo exemplar a imitar para que justo é dirigir a atenção de quantos se interessam pelo Teatro português.


O sr. José da Silva Ribeiro, a pessoa de quem se fala, condena abertamente e corajosamente a revista género Parque Mayer, vasia como uma cabaça rachada, que nada vale como teatro, sem função construtiva nem moral, nem educadora. E passando das palavras às obras, acaba de escrever uma revista – se assim se lhe pode chamar – que poderá servir de padrão a adoptar pelos grupos de amadores, por ser essencialmente regional, e baseada em crónicas, episódios e costumes locais, desenvolvendo-se assim uma obra de amor ao torrão, admirável de educação e cultura, e não de deseducação e rotina. Mas ouçamo-lo numa entrevista que há dias concedeu ao “Notícias da Figueira”.


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“O distinto jornalista e homem de Teatro acaba por anunciar a representação da sua peça “Chá de Limonete” (limonete, a lúcia-lima alfacinha, é o arbusto que pela sua abundância em Tavarede dá carácter à terra), peça vasada nos moldes que ele preconiza, e que, com música de António Simões, subirá à cena interpretado pelo grupo da Sociedade a que atrás nos referimos.


Deus lhe ponha virtude e lhe não demore o saneamento teatral que ele – e nós – desejamos, são os nossos votos. (Notícias da Figueira – 10.14)

CHÁ DE LIMONETE

A Secção Dramática da Sociedade de Instrução Tavaredense conquistou mais um triunfo com a peça agora posta em cena – “Chá de Limonete”, na noite de 28 do mês passado, pela primeira vez servida aos seus sócios e convidados que, com os seus vibrantes aplausos, mostraram o seu inteiro agrado.


Pena foi que a “primeira” desta encantadora récita tivesse sido assinalada pelo lamentável acidente de que foi vítima o nosso amigo e distinto artista Rogério Reynaud, que tão valiosa colaboração lhe dera com a pintura de cenários e das caracterizações. Aqui deixamos consignados os nossos melhores votos pelo seu pronto e completo restabelecimento.


“Chá de Limonete” que o programa – também de boa feição artística – sub-intitula ou classifica como “Histórias de Tavarede – fantasia em 3 actos e 24 quadros, musicada pelo compositor amador António Simões”, toma-se com agrado, de princípio a fim. É fino, perfumado, de paladar agradável, e deixa-nos admirados de ser possível servir tanto e tão bom “chá”... em tão pequeno “bule”!


Pode afigurar-se a quem olhe o programa que aquele chá há-de ser um tanto pesado, mas a saborosa “bebida” começa a ser servida em tão delicado “decor”, com tal garridice e tão linda música, que logo verificamos o nosso erro, e, portanto, o chá de limonete... continua a ser tomado repetidamente. Ocorre-nos o dito jocoso de um velho médico: “De bom chá não se devem tomar nem menos de três, nem mais de 30 chávenas”.


Nos 24 quadros desta interessante “fantasia” se desenrolam os factos mais importantes do burgo – da História política e civil da vila que foi Concelho; da apologia do trabalho, orgulho e “brasão” dos seus habitantes; de crítica de costumes; do desejo e legítima aspiração de melhorar condições de vida – por amor dos tavaredenses à terra do Limonete. São “Histórias de Tavarede” que andam, nas mais delas, na tradição popular, mas nos alfarrábios foram agora estudadas para melhor serem trazidas à luz da ribalta e melhor “vividas” na ficção-teatral, enquadradas em lindos cenários e cortinas que Rogério Reynaud, Manuel de Oliveira e Alberto de Lacerda caprichosamente pintaram, pondo ali toda a sua alma de artistas, e no guarda-roupa de Lisboa e da própria SIT. É neste ambiente, expressamente criado, que a terra do Limonete nos oferece, desde quase os alvores da nacionalidade até aos nossos dias, interessantes aspectos do labor da sua gente a trabalhar afanosamente, sem, todavia, conseguir sensível progresso para si e mormente para a comunidade.


Este belo “Chá” que agora nos serviu o simpático Grupo de Tavarede mostrou-nos, mais uma vez, o valor dos seus elementos conhecidos doutras peças quer declamadas quer musicadas, e um número elevado de elementos novos que começam – e começam bem! Nesta peça, que movimenta tantas figuras em cena, no decorrer dos três actos, tivemos ensejo de ver as mesmas pessoas interpretar géneros bastante diferentes – com perfeita consciência daquilo de que estavam encarregadas.


Queremos dizer com isto que se quem escreveu o poema e quem escreveu a música tiveram, como de facto tiveram, consciência de estarem a preparar um bom trabalho para apresentar como Teatro, quem interpretou também teve capricho e consciência do que estava a fazer e do que tinha de apresentar – em nome da Sociedade de Instrução Tavaredense. (Notícias da Figueira – 11.04)

CHÁ DE LIMONETE

Tavarede com o seu grupo cénico e um valor a orientá-lo com aquela garra e paixão próprias de quem conhece teatro, levou à cena uma luxuosa fantasia em 3 actos e 24 quadros – “Chá de Limonete”.


E o que é este “chá” servido com as mais admiráveis porcelanas? Apenas um belíssimo espectáculo de histórias de Tavarede, concebido e realizado por um homem de elevada concepção, e desempenhada por um bloco sublime de amadores que, num esforço sem palavras soube valorizar numa interpretação sublime todas as cenas desse primoroso “chá” servido no próprio local da origem.


Desde o “Sonho do Cavador” que a Sociedade Instrução Tavaredense tem feito teatro, sem fugir à arte e à escolha. Fieis a tudo quanto de bom tem sido representado, e escolhido para si esse bom para enriquecimento do seu vasto reportório, a Sociedade não se poupa nunca a esforços para igualar tanto quanto possível as melhores companhias de profissionais. E muitas vezes a sua interpretação suplanta-os. E a confirmá-lo está a peça de Ramada Curto “Recompensa”.


Mas vamos ao “Chá de Limonete”, aliás a razão fundamental desta nossa crónica.


Logo ao subir o pano fica-se com uma sensação do agradável com o primeiro quadro “Chá de Limonete”, onde não falta o chá e o açúcar, desempenho de graciosas raparigas, e coros das chávenas do chá, conjunto de beleza visual, prejudicada, como toda a peça, pelo restrito espaço destinado a representações de categoria desta.


Segue-se o segundo quadro – O soneto de Frei Manuel de Santa Clara, quadro que serve de fio condutor durante toda a representação. João de Oliveira Júnior no Frei Manuel que desce à terra – a Tavarede – para matar saudades e saber se tudo é ainda como o havia deixado, - merece relevo especial assim como o Velho-Tavarede na figura de Fernando Reis de primoroso desempenho e firme dição; senhor absoluto do seu papel, conserva durante todo o espectáculo a mesma calma e o mesmo sentido de responsabilidade que lhe foi confiada. Logo depois o 3º. quadro – “A cidade e o campo” – onde Violinda Medina – a jovem de sempre, alegre e folgazã e o belo e firme trabalho de João Cascão, fazem o duo desta partícula da peça. O 4º. quadro é preenchido pelo “Velho Tavarede” de que acima falamos, a figura do pequeno burgo que tudo sabe como um livro aberto. Está-lhe nos olhos e no coração toda a infância tavaredense e ele a explica e apresenta a Frei Manuel de Santa Clara. Segue o 5º. quadro “A doação de Tavarede à Sé de Coimbra”, bela imagem da história local com toda a sua pompa da época, onde o rei D. Sancho e a rainha D. Dulce, desempenhado por Manuel Nogueira e Lucídia Santos, ouvem da boca do notário do rei e perante fidalgos, bispos e arcebispos, condes, mordomos, a doação de Tavarede. De belo efeito este quadro, é um verdadeiro episódio, doloroso, ligado à vida dos tavaredenses. Outro quadro, o 6º., mostra-nos com um sentido bairrista de agradável efeito cénico as “Marinhas de Tavarede” com os seus marnoteiros e as raparigas do sal que vão recebendo os cestos apenhados, cantando com afan, enquanto a embarcação de velas abaixo, deixa apenas o nu dos seus mastros vigorosos. Bom e sugestivo quadro. O 7º. quadro é preenchido com um característico onde impera uma leve comicidade – “Bruxidades e laranjas da China”. A Isabel Peixinha, figura regional confiada ao saber e experiência de Maria Teresa de Oliveira, imprimiu valor e firmeza em toda a actuação. O coro das laranjas é cheio de beleza, valorizando-o as interessantes raparigas e as indumentárias de surpreendente efeito. O quadro seguinte, o 8º. – “In Vino Veritas” presta-se a comentários dos intérpretes, fixando-se o humor do David Seco, desempenhado com grande naturalidade e perfeição por António Jorge da Silva.

A finalizar o primeiro acto, o 9º. quadro “O jantar do Deão” que nos apresenta toda a submissão do povo apresentando as suas oferendas para o lauto jantar do Deão. Muita gente, muitas dádivas, muitos comentários e coro misto do povo de Tavarede. Quadro muito bem urdido e imaginado, motiva o fecho do primeiro acto.


O segundo acto tem mais beleza, muito embora o primeiro tenha valor e grandeza cénica. Vem então o 10º. quadro – “Lamentos da vila de Tavarede”, onde Violinda Medina representando a Vila, lamenta a perda da sua câmara que passou para a Figueira da Foz. Bem observado, este quadro tem alta significação e as agruras do povo justificam-se. Depois o 11º. quadro – “Fornos da Poia e Língua de Vaca” quadro que representa um grande forno em actividade onde o forneiro, figura típica desempenhada por António Jorge da Silva, espera com fernesi e nervosismo as mulheres que vão levar o pão à cosedura. Descomposturas, ralhos, justificações e cantigas para amenizar todos os contratempos. O 12º. quadro – “A colher das papas” é preenchido por um galante coro feminino, ricamente vestido, emoldurando-o uma lindíssima música como toda, da inspirada composição do maestro António Simões. Segue o 13º. quadro – “No tempo dos franceses”. Este quadro recheado de valor patriótico e elevado sentido de amor à Pátria e à liberdade, tem garra, tem valor excepcional quando João Cascão, heróico, fervente, quase revolucionário incita o povo para marchar sem medo, juntando-se ao bravo Zagalo que marcha de Coimbra para expulsar os franceses do Forte de Santa Catarina. Belas imagens, boas máscaras, belo trabalho que entusiasma. O 14º. quadro – “Saia balão” serve apenas para passar em rápida análise essa época distante e que também teve o seu aquartelamento em Tavarede. Vão bem os seus figurantes Maria da Conceição Santos e António Paula Santos. E a terminar o 2º. acto é apresentado o 15º. quadro “Brazão de Tavarede”. Lá está a grande Violinda Medina com as suas vestes de camponeza, enxada ao ombro, exaltando o brazão da terra – o trabalho do campo, enquanto todos os companheiros dormem a sesta, uma sesta que parece real, dada a disposição dos personagens, o seu àvontade, a “certeza de que estão dormindo”. E eleva o trabalho do campo e da enxada, o valor dos camponeses, em frases vigorosas firmes... até que eles despertam, raparigas e rapazes para cantarem a glória da terra e dos campos.


O terceiro acto apresenta-nos “Tavarede de hoje em dia” com o 16º. quadro – “Manuel da Fonte”, que serve de motivo aos lamentos do Ribeiro de Tavarede (António Paula Santos) em que as suas águas beijavam com alegria as pernas das lavadeiras. O 17º. quadro intitula-se “Civilização”, onde aparecem o indireita, o futebol, o fado e o teatro. Deste quadro merece especial referência o Fado, por Maria Almira Ferrão, uma bela voz, personificando a nossa Amália Rodrigues e em lugar de fundo o Teatro, por Manuel Nogueira, que actua primorosamente mostrando poder convencional.


A história do Teatro em decadência, demonstra bem quanto é perito José da Silva Ribeiro, autor exclusivo de todo o recheio de “Chá de Limonete”. E Manuel Nogueira soube interpretar o pensamento do autor. Seguiu-se o 18º. quadro – “A Dinastia dos Toquins”, figuras típicas de Tavarede, ganhões que no carro e nos bois tiveram sempre o seu maior espelho. Bom trabalho de José Vigário, valorizado por um conjunto de carreiros num coro de bonito efeito. O 19º. quadro – “Potes Floridos”, faz a história dos ranchos da vila quando surgia o 1º. de Maio. Bom poema dito com elegância e modelação por Violinda Medina e a marcha das raparigas com seus potes barrados de lindas flores dos jardins de Tavarede. Lá está a tuna e a pandeireta dando veracidade ao quadro.


Vem então o 20º. quadro – “O Palácio de Tavarede”. Todo ele é sublime; sóbrio, como verdugo desafiando o tempo e os homens, surge o portão do Palácio. Batem. Abre-se o monstro e a figura do Palácio de Tavarede aparece, gasta alquebrada, mutilada. Voz fraca e cançada pelas injustiças dos homens. E a evocação surge – cheio de emoção e de mágua pelo mal feito. Fernando Reis foi bem escolhido para o papel, desempenhando-o com magnífico acerto.


Segue o 21º. quadro – “Nunca diz mal de ninguém”, quadro de interessante efeito, servindo-se para exaltar a água da Fonte de Tavarede, o encontro das sopeiras da Figueira com os magalas enquanto os murmúrios correm como lebres... nunca diz mal de ninguém. E as moças de Tavarede que ali se juntam, não têm namoro mas têm língua para a intriga. Quadro curioso que muito enriquece o trabalho de José Ribeiro.


Estamos quase no final do espectáculo. 22º. quadro – “Foguetes” preenchido por Tavarede-marca, desempenhado por José Maria Cordeiro e pelo fogueteiro interpretado por António Jorge da Silva.


Enquanto o primeiro exalta as qualidades da sua terra dando lugar de relevo, o fogueteiro anima-se com as festas e arraiais porque para tudo são precisos foguetes. Lá surgem belos comentários ao nosso Porto e Barra e as festas e mais festas, foguetes e mais foguetes e a barra... (não se sabe nada). O penúltimo quadro. 23º. – “Ti João da Quinta” feito por António Graça, muito bem medido, porque serve de motivo à crítica às inumeras contribuições que o lavrador tem de pagar. Por isso ele tem um filho na Universidade, estudando leis para orientar o pai nos pagamentos à Fazenda desde Janeiro a Dezembro.


E finalmente o 24º. quadro. Um belo coro de flores e jardineiros – “Jardins do Limonete” em que se encerra este belo e primoroso espectáculo.


Deixamos para o fim o primor executivo de todos os cenários de Rogério Reynaud e Manuel de Oliveira, este do Teatro Nacional D. Maria II e a partitura originalíssima e admirável devida à competência comprovada do compositor António Simões.


O guarda-roupa de admirável efeito e os coros muito iguais contribuiram para o grande êxito da representação. Uma cortina de Alberto Lacerda, original e a carácter.


Casa cheia. Ovações consecutivas. Primoroso trabalho que merece deixar a casca e, sem receio, correr outras terras, para confirmação do que me foi dito por José Ribeiro. A verdadeira função do teatro de amadores, que está como um documento sagrado na sua maneira adentro dos muros da Sociedade de Instrução Tavaredense merece, com este seu “Chá de Limonete” mostrar a outras terras e outras gentes que é isto o teatro de amadores em Portugal e cujas directrizes foram traçadas em Tavarede, uma risonha vila da Beira Litoral, e que devem servir de exemplo a todos os nossos amadores. (Notícias da Figueira – 11.18)

POSTAIS DE SINTRA – CHÁ DE LIMONETE

Palavra de honra que cada vez me sinto mais vaidoso pela minha aldeia-burgo: Tavarede. Ela, de facto, mostra “quem é” – em vários capítulos – na vida concelhia da Figueira da Foz, nome de uma das mais lindas cidades portuguesas que alguma coisa está devendo ao sistema, à índole, à tradição, aos costumes do povo tavaredense, que o mesmo é dizer – à boa gente da aldeia onde nasci e que merecida e justamente cognominada de “Terra do Limonete”.

Certamente por não haver quase nenhuma casa, com nesga de quintal, que não tenha plantada uma ou mais árvores do tão clássico e aromático limonete (ou lúcia-lima).


Assenta-lhe, pois, muito bem, o cognome.


Não é exagero dizer-se que Tavarede, por brio próprio, gostou sempre de marcar a sua posição no conceito alheio, embora houvesse sido desprezada, durante largos anos, por quem de direito.


Uma injustiça que se não compreendia. Uma maldade que muito custava a suportar e constituia vexame deprimente ferindo o coração e a própria alma daqueles que sentiam e sentem apego ao seu cantinho mater, aliás digno de melhor sorte...


As coisas tomaram últimamente outro rumo, felizmente. Em Tavarede já alguma coisa pública se tem feito. E alimenta-se a fé de que mais ainda se há-de fazer. A terra merece-o, de facto. Não só pela sua tradição, como pelo seu povo e pelas suas belezas naturais, constituindo um reduto turístico que a Figueira não deve ter acanhamento de apontar – e mostrar – a quem a visita.


Escusado será dizer porquê – e em quê.


Mas...


... o motivo da minha maior vaidade por Tavarede reside no facto de os meus conterrâneos continuarem a dedicar as suas horas de ócio ao Teatro e à Música, dois abençoados “condutos” que tão bem fazem a quem os pratica – e melhor sabem a quem os deglute. De uma maneira ou de outra, todos aproveitam de tão benigna tradição artística e cultural, que traduz um sacrifício da gente da minha terra a todos os títulos louvável e meritório, em que o maior quinhão de honrarias cabe sempre – e sempre merecidamente – ao prestígio de Tavarede e, implitamente, da Figueira.


A colectividade, nestes casos, andou e anda sempre acima do individualismo. Excepção feita a um ou outro indivíduo mais “empenachado”, que gosta de exibir-se e que falem de si, regra geral, a gente da minha aldeia quando mete ombros a uma iniciativa em que preveja maior fama e maior prestígio para Tavarede, fá-lo sempre com voluntariedade, com prazer, com alegria e desinteresse pessoal.


Esses simpáticos obreiros quase anónimos, depois de realizarem, a bem da comunidade, o que conjecturam e põem em prática, geralmente são almas humildes – mas conceituadas e valiosas – que se sentem bem compensadas nos seus esforços em prol duma obra colectiva, recolhendo-se, de seguida, às suas modéstias, aos seus lares, - e àquilo que são e o que valem.


Está nestes casos o numeroso grupo cénico da benemérita Sociedade de Instrução Tavaredense – que continua a marcar pontos na escala alta dos maiores triunfos culturais e artísticos populares no distrito de Coimbra.


O Zé Ribeiro, auto-didata muito de apreciar e respeitar, lá continua no seu posto de ilimitado sacrifício e de louvável bairrismo a orientar – sabiamente – as raparigas e os rapazes (alguns já mais “duros” na idade do que ele...), que têm propensão para o Teatro Bom – e que, guiados por ele, se vão instruindo e educando. E se vão fazendo “artistas”.


Estes os maiores de todos os proveitos ia a escrever único proveito – das minhas dedicações e sublime Causa; porque o mais, tudo o mais que possa advir de tantíssimos sacrifícios e boas vontades, isso constitue sagrado galardão e após ao glorioso pavilhão associativo à volta do qual se luta e se triunfa; à volta do qual se pratica, há largos anos, de geração em geração, durante o ano inteiro, corajoso, abençoado e humano combate ao analfabetismo.


Sabe bem ouvir – cá por fora – falar da Figueira e do seu Concelho, que é apontado, em grau de cultura popular, como exemplo dos outros concelhos do País. Ora Tavarede pertence ao concelho da Figueira e esta – afirmo-o sem receio de desmentidos – muito deve desse conceito merecido ao povo da terra do limonete.


Por sua vez, o povo de Tavarede deve muito da luz que lhe ilumina o espírito às associações locais. O Teatro e a Música são, de facto, duas preciosas “bíblias” a alagar de saúde e beleza o espírito da gente humilde do aprazível e acolhedor jardim do limonete.


Saudades infinitas tenho eu dos apartados tempos em que, após o trabalho, por lá me entregava profundamente ao amanho desse abençoado pão...


Modesto e humilde como os meus conterrâneos, todos filhos de cavadores e artífices, sem probabilidades para alpinarmos a um Liceu e muito menos a uma Universidade, a verdade manda que se diga que o muito do pouco, em grau de cultura, que hoje possuo e representa a “ferramenta” com que esgravato com honestidade a vida, isso se deve ao facto de ter sido levado, desde os 8 anos de idade, pelas mãos de meu Pai, para o Teatro, para a Música e para a leitura de livros substanciais – que tudo, em matéria de instrução e educação, já então havia, como hoje ainda há, nas associações recreativas de Tavarede.


O Zé Ribeiro, rapaz do meu tempo, por lá andou também, conduzido por seu saudoso Pai – Gentil Ribeiro – que era o mestre da afamada Tuna de Tavarede.


Infinitamente mais esperto e inteligente do que eu, o Zé Ribeiro quis ficar por Tavarede e soube, por seus méritos próprios, continuar a obra dos nossos ancestrais, elevando-a e impondo-a ao nível cultural em que presentemente se encontra.


De facto, a obra do povo de Tavarede – diga-se sem paixões e em boa justiça – constitue uma página brilhante na história das coisas úteis e construtivas do concelho da Figueira da Foz.


A peça que este meu velho amigo agora escreveu, ensaiou e fez representar na velha Sociedade de Instrução Tavaredense, e a que deu o sugestivo título de “Chá de Limonete”, constitue um inteligente e profundo trabalho de investigação, desde a remota era de 1191, e traduz, nada mais, nada menos, do que uma formidável lição de história do burgo tavaredense.


Fui vê-la na “premiére”. Gostei imenso. E uma semana depois voltei lá a tomar outra “chávena” – que me soube ainda melhor do que a primeira. Estou com apetite para mais. Prometo que voltarei a Tavarede, com esse fim – e que hei-de levar comigo outros gulotões, ainda mais refinados do que eu e que, em riba de umas saborosas queijadas de Sintra, hão-de sentir prazer numa “chávena” de tão salutar “bebida”...


Depois me pronunciarei sobre o valor das raparigas e dos rapazes que interpretam a “história de Tavarede” – a quem, pelo Zé Ribeiro, remeto um grande e afectuoso abraço de parabéns. (a) António Medina Júnior. (Notícias da Figueira – 11.25)

1950.12.30 - A REVISTA “CHÁ DE LIMONETE”

Temos há muito ideias assentes em matéria de teatro, como entretenimento espiritual e instrumento de educação. Ideias que nunca ocultámos de ninguém, mesmo quando reconheciamos que estavamos quase sós e bradavamos no deserto. Como instrumento de recreio não pode colaborar na corrupção dos costumes sem atraiçoar a sua principal função.


Por se transigir com o espectador em matéria de tal melindre é que o teatro sério se torna cada vez mais raro e até aqueles que reconhecem os inconvenientes graves da mixórdia teatral que se serve ao público nos palcos portugueses acabam por descambar nas mais condenáveis abdicações porque autores e actores também têm estomago e é necessário, por conseguinte, procurar, antes de tudo, o êxito da bilheteira.


Reconhece-se que está corrompido o gosto do público – a sua marcada propensão para o reles, para o torpe, para o inferior. E proclama-se a necessidade urgente de tentar qualquer coisa para o corrigir, para o modificar e salvar, se ainda é possível.


Confessamo-nos de pleno acôrdo. Mas quem perverteu o gosto do público? Quem contribuiu para a degradação materialista da época que atravessamos?


Que cada um examine a sua consciência e encontre a resposta acertada e justa que ela lhe sugerir. Uma certeza nos anima: na barricada em que combatemos houve sempre viva e contínua reacção contra o teatro de cordel, ou melhor, de bordel e a progressiva tendência do público para ele.


Declarações públicas feitas pelo autor da revista “Chá de Limonete” (Histórias de Tavarede) escrita por José da Silva Ribeiro para o seu grupo cénico, levaram-nos ao teatro do Casino Peninsular a assistir à representação que o conhecido e apreciado grupo tavaredense veio trazer ao público da Figueira.


A montagem da peça é sumptuosa: cenários, guarda roupa, até os mais insignificantes adereços, tudo assinala a preocupação de impressionar bem o espectador. Até na urdidura da peça o autor, evitando o clássico compère para a ligação dos respectivos números, mostrou o propósito de apresentar obra diferente das outras revistas. Tratando-se, aliás, dum trabalho composto sobre fundo histórico, esse facto lhe conferia já assinalada diferença. A fantasia só colaborou o bastante para quebrar a aridez dos factos históricos, amenizar o espectáculo e levar o espectador a recebê-lo sem enfado. Consistiu nisso o principal e grande esforço do autor.


Conseguiu os seus fins? Quanto a nós, afigura-se-nos que sim. “Chá de Limonete” está inquestionavelmente bem “cozinhado” e de acordo com as mais rigorosas exigências da técnica teatral. Agrada ao público culto. Mas como esse público é reduzido, parece-nos que não é peça para longa carreira. Ou então estamos nós muito enganados.


A maioria do público vai ao teatro em busca do nú... artístico, da graçola soez, da cena picaresca. E “Chá de Limonete”, à parte dois ou três ditos de duplo sentido que em nosso entender nenhuma falta faziam à peça, apresenta-se limpa de tudo isso. Há até a assinalar quadros e passagens em que se faz crítica salutar e construtiva, bem patente no elogio da vida rural, na condenação do vício da taberna, da psicose futebolística, do endeusamento ao Fado, em contraste com a indiferença e menospreso a que são votados os grandes valores intelectuais da Nação.


Estamos também com o autor quando pela boca do “Endireita” condena indignadamente o “mentiroso e velhaco” que anda pelas igrejas a pretender alardear princípios que não vive. O hipócrita é um ser despresível, abominável, monstruoso, onde quer que apareça e por maioria de razão quando desce a comprometer, com a doblez do seu procedimento, a causa sacratíssima de Deus. Mas para ser completo também o “Endireita” devia condenar os “mentirosos e velhacos” que, para combaterem a Igreja, empenham todo o seu afã em denegrir os próprios padres – e os seus colaboradores – como tem sucedido várias vezes na terra do limonete. Não falta até quem se tenha servido da ascendência sobre humildes crianças, industriando-as, para atingir os seus torvos e monstruosos desígnios...


O “Endireita” teria muito que reprovar se volvesse os seus olhos para o templo sagrado da família e fustigasse implacavelmente todos aqueles que atentam contra a dignidade da mesma Família, não vacilando em abandonar a mulher e os filhos para contrair novas ligações, legalizadas ou não.


E já que entrámos em matéria de reparos, seja-nos permitido mais um. É do domínio público que o personagem “Tavarede marca” pretende ser uma caricatura de alguém que pelos inestimáveis serviços prestados a Tavarede nos últimos quatro anos, é incontestàvelmente crèdor do reconhecimento e respeito de todos os seus patrícios.


O propósito de atingir a mesma pessoa é evidente noutro personagem – o homem da lanterna. A censura, nesta caso, é directa: falta uma rua com o nome de João Costa, que mandou erigir o prédio onde funciona ainda hoje o teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense.


Será isso uma omissão tão grave que mereça um número de revista? Oxalá fosse a única e a maior de todas!


Há na nova toponímia local nomes sem significado para Tavarede?


Para as individualidades que os escolheram (Cardoso Martha, João Coelho, António Vitor Guerra e António de Oliveira Lopes) todos o têm. Que não houve propósito, atesta-o o facto de ter sido dado o nome da Sociedade de Instrução Tavaredense ao largo fronteiro a esta colectividade. E quem lhe deu esse nome também lhe daria o da pessoa que mandou construir o prédio onde a referida colectividade funciona se ele tivesse ocorrido e fôsse considerado digno de tal homenagem. Afastada a ideia do propósito, julgamos improcedente o reparo, ou antes, o tom do reparo, pois, como se prova, a pessoa que se pretendeu visar, ao dar a um Largo o nome da Sociedade de Instrução Tavaredense, pondo de lado questões pessoais e políticas, procedeu com inteira isenção.


Quanto à charge de “Tavarede marca”, a confirmar-se a voz corrente, mais infeliz se nos afigura a intenção do autor.


Acode-nos à memória, neste momento, uma cena da revista “O Sonho do Cavador”, também da autoria de José Ribeiro. Foi há cerca de 20 anos. Apareciam a dialogar a antiga Rua Direita e o Caminho dos Canos. Este, todo ancho e janota, ostentando chapéu alto e trajo domingueiro, atribuia ao facto de por ele passar o sr. Vigário quando ia dizer Missa (chamava-se-lhe, por isso, irónicamente, o caminho do Céu...) a mercê de uma modesta reparação à data recebida pelo referido caminho. E a rua Direita, andrajosa, esburacada, coberta de lama, lamentava o abandono a que tinha sido votada, a-pesar.de ser a artéria principal da povoação.


Pois bem. A rua Direita (actualmente Dr. Oliveira Salazar) encontra-se radicalmente reformada. Limpa, revestida de paralelipípedos, não parece a mesma. A lama já não entra em rajadas pelas portas nem esparrinha as paredes dos prédios. E o cano de esgotos que ao mesmo tempo se mandou construir, pôs termo a certos focos de infecção que envergonhavam Tavarede.

Será justo (sejam quais forem as razões pessoais que o autor tenha para isso) expôr à irrisão pública a pessoa que, entre outros, conseguiu para a terra este importante benefício?


Cremos que não.


Que magnífico acto de justiça o autor teria praticado se em vez dos fúteis motivos que escolheu para as críticas acima, ilustrasse o seu “Tavarede de hoje em dia” com os melhoramentos que a freguesia recebeu nos últimos quatro anos, mercê do fervor bairrista da pessoa que tão injustamente pretende ridicularizar!


Se à fala da fonte de Tavarede, aformoseada com poéticos azulejos também pela actual Junta, juntasse o coro das fontes com que a mesma Junta dotou todos os lugares da freguesia, desse fala aos dois lavadouros públicos construidos, um em Tavarede, outro em Caceira, ao minúsculo mas aprazível Jardim do velho Largo do Forno, ao Chafariz do Senhor da Arieira, e respectivo Largo, etc. etc. e rematasse com uma apoteose ao homem de iniciativa, trabalhador, bairrista cem por cento, que tudo isto conseguiu!


Isso sim, seria justo, seria criterioso, seria digno de louvor.


A sua charge, lançando o ridículo, a troça, sobre a pessoa em referência, pretende minimizar os seus méritos, desviar dos corações o sentimento da gratidão, impedir que justiça seja feita a quem, incontestàvelmente, a merece.


Usando da mesma franqueza e sinceridade que nos ditaram as palavras que aí ficam, exteriorizemos também a nossa opinião acerca do desempenho.


Os papéis principais foram entregues, como era natural, a amadores já experimentados em peças anteriormente levadas à cena e em papéis de responsabilidade.


João de Oliveira Júnior compôs um “Frei Manuel de Santa Clara” mais poeta do que místico, equilibrado, sereno, como convinha à rúbrica da peça. Seguro na dicção e firme no piso do palco.


Violinda Medina – uma das maiores figuras femininas que têm pisado palcos de amadores – defendeu-se como pôde das situações que exigiam viço, frescura, mocidade.


E dizemos defendeu-se, porque se nos afigura que as suas extraordinárias faculdades entraram já em declínio. A sua voz, outrora firme e bem timbrada, já não consegue algumas vezes permanecer fiel à música. Na própria declamação atira-nos com entoações falsas, risadas convencionais que não logram convencer o espectador. Talvez noutros papéis se não notem tanto, ou mesmo nada, os estragos implacáveis do tempo.


Fernando Reis mostrou-se um “Velho Tavarede” cônscio do seu papel, mantendo o mesmo equilíbrio no desdobramento de “Palácio de Tavarede”.


Maria Teresa de Oliveira, na “Isabel Peixinha”, deu-nos uma bruxa característica, bem merecendo os aplausos da assistência. Um simples reparo: tratando-se de um papel parolado, pareceu-nos que por vezes o cantou demais.


João Cascão, seguro em todos os papéis. É um amador de provadas faculdades.


António Jorge da Silva merece referência especial. Dispõe de invulgares aptidões histriónicas e adapta-se, sem dificuldade, a qualquer personagem. No papel de ébrio é inexcedível. Consideramo-lo o amador nº 1 do elenco masculino do núcleo de Tavarede.


Os restantes, Manuel Nogueira e Silva, José Cordeiro Júnior, Vitalina Lontro, Maria Almira Ferrão, Maria da Conceição Santos, José Vigário, José Luiz do Nascimento, António Graça, Paula Santos, em papéis mais ou menos episódicos, todos contribuiram para o bom desempenho de “Chá de Limonete” que, não obstante o elevado número de figurantes que foi necessário mobilizar, pode considerar-se digno de nota.


A música, composta em boa parte para motivos de outras épocas, de ritmos diferentes, repassados de espiritualidade que não se encontra actualmente na insana barulheira jaz-bandesca, - pode parecer monótona, insípida, fria.


Assim não sucede, porém. Toda ela demonstra o fino gosto e a cultura musical do autor – mestre António Simões – a quem dirigimos os nossos parabéns. (O Figueirense)