sábado, 30 de outubro de 2010

Uma visita a Tavarede

Tavarede – terra do limonete, é uma legenda cuja origem se perde na bruma dos tempos.

Mas realmente, é ela que classifica da maneira mais exacta aquele pedacinho da Figueira, gracioso e acolhedor, um pouco além do Pinhal das Águas.

Escolhemo-lo para nossa visita, dispostos a contar os encantos e os motivos de pitoresco que lá encontrássemos.

O sol já tinha feito a sua aparição e ia aquecendo os tapetes verdejantes, que despertavam do seu letargo saudando aquela matutina fonte de calor.

Pela estrada a chiadeira dos pesados carros de bois, inibem-nos de poder escutar os acordes melodiosos da passarada, que do alto de seculares árvores, travam curioso desafio.

Ao longe, a amplidão, a serra em toda a sua magnitude. Uma vegetação cerrada, vasta e emaranhada cobre o dorso da serrania, enquanto que espalhados e como que alicerçados sobre o mundo vegetal, pontos brancos, de uma alvura divina, atestam a existência de seres humanos.

Perto de nós, nos campos vizinhos, flores de milhentos matizes e pétalas setinosas, dão-nos ideias de borrões numa tela esverdeada.

Pelo caminho passam, pressurosas mulheres com açafates à cabeça transportando os vegetais, a fruta, os animais, que lhes garantirão no mercado o pão do quotidiano.

A par delas, encontram-se dispersos pela estrada, homens simples que, ostentando orgulhosos os apetrechos da lavoura, vão sorvendo preso ao canto da boca o primeiro cigarro da manhã.

De tempos a tempos o barulho de um automóvel ou o ladrar agoirento de um cão vêm quebrar o silêncio angélico desta manhã estival.

Absortos na contemplação do mundo vegetal, quase que não damos pela entrada da povoação a dois passos, de onde nos encontramos.

O Solar dos Condes, onde páginas imorredoiras de história estão gravadas, serve de fronteira à ridente e sugestiva – Tavarede.

O ar que aqui respiramos sobressai a todos os perfumes, dominando um cheiro activo de invulgar sedução.

Visitámos a fonte, quadro que nos magnetiza, “écran” que a nossa retina contempla extasiada.

O barulhar das águas a cair na lage inferior produz um incomensurável número de notas da mais estranha musicalidade, assim como o falar vivo das moçoilas, que enchem pressurosas os seus potes para se encontrarem com o seu namorado.

A “Fonte dos Encontros” como é conhecida pela fala ingénua e pura do povo, traduz com verdade toda a magia desse ponto de reunião.

“Ó mãe eu vou à fonte” – é a frase esteriotipada, para um encontro furtivo com o conversado.

E então abafadas pelo ruído cadenciado das águas surgem promessas de amor, espiadas por olhos indiscretos, para conhecerem o par.

Tão enlevados ficámos que fixámos as quadras estampadas nas paredes humedecidas da fonte.

Tu sequioso que vens
À Fonte de Tavarede
Cuida na água e seus bens
Enquanto matas a sede.

É casta, límpida e pura
E assim deves ser também
É calada, e se murmura
Nunca diz mal de ninguém.

Continuamos a passeata.

Os nossos olhos enxergam gora na verdura veludosa do pasto, vacas muito pretas malhadas de branco, marchando pachorrentamente, enquanto que um pouco mais distante um rebanho de ovelhas fuscas e muito negras apascentam-se irrequietas, nas ervas abundantes.

O toque bronzeo, dos sinos da velha Igreja, despertou-nos do êxtase em que nos encontramos.

Passámos pelo Grupo Musical, onde em dias de festa, moças e rapazes, numa atracção encandeante, bailam sentindo o arfar dos peitos apaixonados.

Na outra colectividade onde a arte de Apolo tem soberana interpretação, tudo é sossêgo.

Mais tarde, ao mirarmos de alto a baixo a velha Sé, veio-nos à ideia o fervor religioso do povo de Tavarede, onde nos dias santificados e muito especialmente no do Sagrado Coração de Jesus, marcham respeitosamente com os olhos no céu, pedindo graças ao Criador.

Continuamos a encontrar calcurriando os paralelípedos os sers que já atrás fizemos referência.

No entanto agora predomina o ambiente feminino e muito principalmente as simpáticas e sorridentes costureirinhas que desfilam descontraídas, sem notarem que são observadas pelos olhos do repórter, disfarçado através de duas lentes esverdeadas.

Tudo trabalha, nesta terra. Todos mourejam nos campos, na cidade ou em qualquer outro mister para garantirem o sustento.

Estamos a chegar o fim da nossa visita, e agora percorrido o rincão retomamos o caminho que até lá nos conduziu passando a admirar os mesmos panoramas.

Somente o sol tem menos brilho, os seus reflexos já são menos nítidos, a fauna já não se enxerga, o mundo vegetal entrega-se ao recolhimento.

As aves dormem no cimo das árvores, o cenário vai perdendo luz e animação – é noite.

E só a brisa tosando o característico limonete, se faz ouvir em silvos agudos como que a soletrar T A V A R E D E .
Publicada em 'O Figueirense'

Silvestre Monteiro da Cunha

Faleceu em 25 de Fevereiro de 1914. Antigo capitão da marinha mercante, residia em Tavarede e exercia o cargo de piloto da barra da Figueira.

“Relativamente novo, o seu passamento foi muito sentido pelos seus muitos amigos que lhe apreciavam as excelentes qualidades de carácter. Muito trabalhador, passara toda a vida na labuta rude do mar.

Iniciando-se na costa, bem depressa se lançou em carreiras mais longínquas, percorrendo muitos portos do Brasil e fazendo ali estações demoradas.

Adquirindo alguns meios de fortuna e resolvendo fixar definitivamente residência na sua casa de Tavarede, não quer ainda deixar de empregar a sua actividade, ocupando assim o lugar de piloto da nossa barra, que desempenhou com energia, revelando sempre conhecimentos técnicos que inspiravam confiança aos que têm interesses ligados à navegação que demanda o nosso porto”.
Viúvo de Belmira Jorge Lé da Cunha, falecida em Março de 1913, deixou uma filha, Palmira Lé da Cunha, que veio a casar com Arménio dos Santos, da Quinta dos Condados.

Fez parte dos corpos directivos da Sociedade de Instrução Tavaredense.

Por ocasião da morte de sua esposa, encontrámos a seguinte nota: “… apesar de esperado o triste desenlace, foi imenso o sentimento que se apossou de todas as pessoas que conheciam as belas qualidades da extinta. Sofrendo há anos da doença que dia a dia lhe minava a existência, ela compadecia-se mais ainda das dores alheias e a ocultas, sem alardes, sabia exercer actos de verdadeira caridade. É por isso que hoje muitos infelizes, a quem valeu em momentos aflitivos, pranteiam sinceramente o seu desaparecimento”.
Foto: Rua Direita ao Largo do Paço - A primeira casa à esquerda foi a residência de Silvestre Monteiro da Cunha
Caderno: Tavaredenses com História

João dos Santos Júnior

Nasceu no ano de 1877, filho de João dos Santos.

Profissionalmente foi funcionário público, estando, durante bastantes anos, colocado na Câmara Municipal de Condeixa, com a categoria de chefe da secretaria.

No campo associativo, foi dedicado colaborador de seu pai, sendo eleito como primeiro presidente da direcção do Grupo de Instrução Tavaredense, em 1900, colectividade esta que foi a antecessora da Sociedade de Instrução.

Na escola nocturna desta colectividade foi o professor da aula de ginástica “prática então pouco comum, mesmo no sistema da instrução primária”. Nos saraus organizados pelos alunos, apresentava sempre uma classe de ginástica. “… os alunos da escola nocturna, que desempenharam com muita precisão, alguns exercícios de ginástica sueca, pelo que o seu instrutor, sr. João dos Santos Júnior, foi delirantemente aplaudido”.

A colectividade homenageou-o em 1914, nomeando-o seu sócio honorário e descerrando o seu retrato, que se encontra exposto no salão nobre.

Faleceu no ano de 1965.
Caderno: Tavaredenses com História

Fernão Gomes de Melo Quadros e Sousa

Morgado, 6º. Senhor de Tavarede.

Filho de Pedro Lopes de Quadros e de D. Maria Teles. Nasceu e viveu em Tavarede.

Casou com D. Brites Maria de Albuquerque e tiveram a seguinte descendência:

Pedro Lopes de Quadros e Sousa, herdeiro do morgado; D. António Coutinho de Quadros, Cónego Regrante de Santo Agostinho e depois Prior de S. Martinho de Salréu; Frei José, frade Bernardo; Manuel de Melo Pereira de Quadros, a quem chamaram “o moço”, que foi capitão e morreu na defesa de Castelo Rodrigo; Francisco de Meneses Teles, Freire de Avis, em Palmela; D. Mariana Coutinho, D. Inês Soares e D. Leonor Coutinho, freiras no Convento de Lorvão; e António Fernandes de Quadros.

Há registo, ainda, de dois filhos bastardos: João e António de Quadros.

Quando enviuvou entrou para o Seminário do Varatojo, onde tomou o hábito de leigo e “viveu em grande edificação”.

“… quando faleceu sua esposa, sofreu tal abalo moral que, vendo seus filhos criados, saiu furtivamente, noite alta, dos seus Paços e sem comunicar a pessoa alguma a resolução que tomara, dirigiu-se a pé ao Convento do Varatojo, onde se meteu frade leigo, com o nome de Frei José da Santa Maria, e onde viveu alguns anos, sem ser reconhecido, praticando os mais humildes serviços na Cerca e na Igreja do Convento, vindo a falecer após uma longa vida de sacrifício e santidade.

Um aspecto do Convento do Varatojo (Internet)

Assim desprezou as pompas do mundo, num raro gesto de renúncia, este nobre Senhor de Tavarede, fidalgo da Casa de El-Rei, Cavaleiro de Cristo e Comendador Hereditário de São Pedro das Alhadas, da mesma Ordem, brilhante homem da Corte, soldado ilustre das guerras do Ultramar e homem de muito e discreto saber”.

Caderno: Tavaredenses com História

Abílio Alves Fernandes Águas

Natural de Tavarede, onde nasceu a 17 de Outubro de 1841, faleceu na Figueira da Foz, no dia 20 de Janeiro de 1892. Contava, portanto, 82 anos de idade e era filho de Joaquim Alves Fernandes Águas e de Ana Ribeiro da Silva. Casou com Rosa Emília da Conceição.

Abastado proprietário e conceituado negociante, desenvolveu importante actividade comercial como exportador, principalmente de vinhos. Como armador, foi proprietário, só ou em sociedade, dos brigues Figueirense e Baía e da escuna Feiticeira, durante muitos anos matriculados na Capitania da Figueira.

Figurava nos primeiros lugares da lista dos 40 maiores contribuintes deste concelho.

Quinta da Borlateira (Ao Senhor da Arieira)

Militou, activamente, no Partido Regenerador que, pela sua morte, “lamentou a perda irreparável de um dos seus mais valiosos soldados”.

Foi venerável da Ordem Terceira de S. Francisco e mesário da Santa Casa da Misericórdia.

Em sua memória, a família, no dia 31 de Janeiro de 1892, fez a distribuição de esmolas aos pobres da Freguesia de Tavarede, “na sua Quinta da Borlateira”, aos Quatro Caminhos do Senhor da Arieira.

Caderno: Tavaredenses com História

Sociedade de Instrução Tavaredense - 62

Terminadas as festas comemorativas das ‘Bodas de Diamante’, que tanto êxito alcançaram, continuou a actividade teatral com a apresentação da peça ‘Ontem, Hoje e Amanhã’. Em Março, no jornal ‘A Voz da Figueira’, foi publicada a seguinte nota:

“Com o pé no estribo para uma curta viagem que não sei se será o prólogo de outra maior – a maior de todas as viagens – transmito ao teclado máquina de escrever o breve apontamento que se segue acerca do espectáculo a que há poucas horas assisti no bem reputado teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense, com a revista “Ontem, Hoje e Amanhã” desse excepcional homem de teatro e apóstolo da cultura popular, que é José da Silva Ribeiro. Dizer que nos surpreendeu a boa confecção do espectáculo, não seria exprimir a verdade. Mas que nos surpreende como um homem com a provecta idade de 84 anos foi capaz, não dizemos de ensaiar mas de escrever o texto, boa parte do qual em verso – género difícil em teatro – verso bem construído, vigoroso, com rimas naturais, sem artifício de martelo, que nos lembram os grandes clássico das nossas letras, isso, sim, isso surpreendeu-nos e levou-nos, no final, a exclamar: abençoados 84 anos!

Doseando a fantasia com a história de forma a que o espectador aceite a mistura sem enfado – eis outra vitória do autor. A música, parte da qual transportada de números antigos que foram êxito e consagraram compositores como António Simões e Anselmo Cardoso – valoriza sem dúvida o espectáculo. João Cascão Filho dá também com a sua intervenção musical, uma nota de ternura muito grata aos que conheceram seu saudoso pai em incontestáveis êxitos que o impuseram como amador teatral de excepcional craveira.

Dessa fornada notável de amadores, dá gosto ver actuar ainda José Luiz do Nascimento, Fernando Reis, João de Oliveira Júnior e João e José Medina. São os grandes trunfos de ontem. Os de hoje seguem as suas pisadas. E os de amanhã não desmerecerão certamente os créditos dos antecessores, se o espírito de José Ribeiro continuar a presidir à caminhada teatral da SIT. Tavarede foi sempre um alfobre de grandes amadores teatrais!’.



Embora já o tenhamos referido, não queremos deixar de publicar a pequena notícia que ‘Barca Nova’ publicou em Maio de 1979, a propósito do regresso ao palco de Violinda Medina. Deu-lhe o título: ‘Uma legenda do teatro de Tavarede regressa ao palco’: “Já lá vai, talvez, uma trintena de anos, era eu ainda uma criança de calção e bibe. Em Tavarede, onde fora ao teatro pela mão de meu pai, recordo que pouco faltou para a casa vir abaixo, tamanha foi a trovoada de aplausos que culminou a representação da peça então em cena. Uma amadora era especialmente distinguida: Violinda Medina e Silva.

Passaram os anos, tudo naturalmente envelheceu. Se D. Violinda levar hoje os dias agarrada a recordações, não me admiro. Eu próprio, bem mais novo, me tenho visto já a debruçar nos terraços do tempo, buscando na memória pessoas e coisas que a emoção gravou. Violinda Medina e Silva é, por exemplo, uma delas. Recordo o seu porte majestoso no papel de Madalena de Vilhena; a sua naturalidade exemplar em Os Velhos, de João da Câmara; o seu admirável desempenho em As Árvores Morrem de Pé, de Alejandro Casona. Recordo tudo isso. Mas poderia lembrar muitas outras representações em que interveio o seu talento invulgar.

Pois Violinda Medina e Silva – essa extraordinária mulher da cena portuguesa – vai regressar ao palco. Em Tavarede, pois onde havia de ser? É ali que ela tem levado toda uma vida de devoção pelo teatro; foi ali que ela conheceu os maiores êxitos da sua carreira; é ainda ali que, religiosamente arrecadadas, velhinhas tábuas de um antigo palco aguardam, sem pressas, o dia de serem a mortalha da actriz.

NOTA: Talvez que o leitor se surpreenda com o último parágrafo, ou melhor, não compreenda bem… Se estiver nesse caso é porque não sabe que Violinda Medina e Silva deseja ter por caixão… as tábuas do antigo palco do Teatro de Tavarede. As tábuas estão arrecadadas, e a sua vontade cumprir-se-á. Oxalá que daqui por muitos, muitos anos…”

Fotos - 1 e 2 - Ontem, Hoje e Amanhã; 3 - Violinda Medina e Silva

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

S. MARTINHO DE DUME

Bispo de Dume e arcebispo de Braga. Era natural de Panónia, como S. Martinho de Tours, e dirigia-se da Palestina em peregrinação ao túmulo do seu homónimo quando encontrou os delegados do rei suevo Charrarico, que invocara o santo bispo de Tours numa doença de seu filho Teodomiro e agora enviava os seus emissários à Gália em busca das relíquias do santo. S. Martinho encaminou-se para a Península com as relíquias e desembarcou num dos portos da costa ocidental, talvez Portucale.

Iniciou S. Martinho a sua evangelização e fundou em Dume um mosteiro. Em 556 Dume era elevada à dignidade episcopal e S. Martinho escolhido para seu primeiro bispo.

Em 569 vagou a sé de Braga por morte do arcebispo Lucrécio e S. Martinho foi elevado a prelado, da metrópole bracarense, sem todavia deixar de ser bispo de Dume. E, 569 Teodomiro criou a nova metrópole de Lugo. Os prelados das duas dioceses reuniram em Braga o II Concílio (572) e como complemento da obra deste concílio, S. Martinho encarregou-se de ordenar uma Colecção dos Cânones dos Concílios Orientais. Publicou ainda outros muitos, como Fórmula honestae e De correctione rusticorum. Atribuem-se-lhe também várias composições poéticas.

S. Martinho de Dume faleceu em 2o.111.579 e foi sepultado na catedral de Dume. Em 1606 foram as suas relíquias depositadas na Sé de Braga, onde se celebra e sua festa a 20 de Março
.
OBRAS: Podem dividir-se em ascético-morais, vanónico-litúrgicas e poéticas. A) A Formula vitae honestae, dedicada ao rei Teodomiro, a cujo pedido foi escrita, é um excelente tratado de moral natural sobre as quatro virtudes cardeais, destinado à formação do rei e seus cortesãos. Esta espécie de “Espelho de príncipes” divulgou-se muito na Idade Média, mas atribuída, em geral, a Séneca, por ser muito influenciada pelo filósofo cordovês, denominando-se frequentemente De ( ou Liber de) quattuor virtutibus. De ira, obra de filos, moral, escrita a pedido de Vitimiro, bispo de Orense, é uma adaptação do livro homónimo de Séneca. Pro repellenda iactantia, De superbia e Exhortatio humilitatis, agrupados às vezes com o nome de Opus tripartitum, são três pequenos tratdos de inspiração evangélica sobre a moral cristã, a servir de remate à doutrina dos dois primeiros opúsculos. Sententiae patrum Aegyptiorum, colecção de apotegmas traduzida do grego para leitura espiritual e edificação dos monges. De correctione rusticorum, exortação pastoral, escrita a pedido de Polémio, bispo de Astorga, destinava-se a extirpar as práticas pagãs e superstições ainda vigentes sobretudo entre gente cristã dos campos, procurando levar os fiéis a cumprir as promessas feitas no baptismo. Um dos abusos condenados é a denominação pagã dos dias da semana. Esta obra é muito importante para conhecer os usos e costumes então vigentes entre nós. B) Além da epístola De trina mersione, enviada ao bispo Bonifácio, talvez de Itália, a defender o baptismo por tríplice imersão, temos no 2º. grupo os Capitula Martini ou Canones ex orientalium patrum synodis, colecção sistemática de 84 cânones em que Martinho de Dume adaptou a legislação de diversos concílios orientais e do I de Toledo às necessidades e circunstâncias peculiares da Igreja sueva, acrescentado-lhe algumas novas disposições. Por ter participado nos dois primeiros Concílios Bracarenses, atribui-se-lhe a redacção das respectivas actas. C) Restam dele três poesias, com um total de 38 exâmetros de sabor clássico: In basilica, na Igreja de S. Martinho de Tours, em Dume; In refectorio, gravada no refeitório do mosteiro, e o seu Epitaphium. Perdeu-se um Volumen Epistolarum de formação religiosa, que Santo Izidoro chegou a ler e também a correspondência trocada com Venâncio Fortunato, com a rainha Santa Radegundes e a superiora e religiosas do mosteiro de Santa Cruz de Poitiers, que poderia estar incluído no citado Volumen. Santo Isidoro atribui a Martinho de Dume outras obras, hoje desconhecidas: regulam fidei et sanctae religionis constituit (...) copiosaque praecepta piae institutionis composuit. A. Lambert atribui a Martinho de Dume o ofício da festa da ordenação de S. Martinho de Tours. Martinho de Dume escreveu um tratado de cômputo pascal, que se desconhece, não podendo aceitar-se como dele o De Pascha, que alguns lhe atribuem, porque este tratado defende doutrina priscilianista enèrgicamente combatida pelo nosso santo. São de autenticidade muito duvidosa os tratados senequistas De moribus e De paupertate. Martinho de Dume teve também influência na versão latina dos Aposphthegmata Patrum, feita a seu pedido por Pascásio de Dume, que, no prefácio, lhe pede para polir esta versão do grego: ut tuo polire sermone digneris exposco.

S. MARTINHO

Bispo de Tours (actual Szambatkely, Hungria, 316 ou 317 - Candes, França, 8.11.397). Filho de um oficial do exército romano e nascido num posto militar fronteiriço, após estudos humanísticos, em Pavia, aos 15 anos entrou para o exército quando já a sua vontade o inclinava a fazer-se monge (aos 10 anos inscrevera-se como catecúmeno).

Em Amiens, provavelmente em 338, durante uma ronda nocturna no rigor do inverno encontrou um pobre seminu: não tendo à mão dinheiro para lhe valer, com a espada dividiu ao meio a sua clâmide que repartiu com o desconhecido. Na noite seguinte, em sonhos, viu Jesus, que disse: “Martinho, apesar de somente catecúmeno, cobriu-me com a sua capa”.

Recebeu a baptismo na Páscoa de 339, continuando como oficial da guarda imperial até aos 40 anos. Abandonando a vida castrense, foi ter com Santo Hilário de Poitiers, que lhe conferiu ordens sacras e lhe deu possibilidade de levar vida monacal: nasceu, assim, o famoso Mosteiro de Ligugé. Em breve ganhou fama de taumaturgo. Eleiro, por aclamação, bispo de Tours, foi sagrado provavelmente a 4.7.371.

Ardente propragador de fé, fundou, em Marmoutier, um mosteiro donde saíram notáveis missionários e reformadores. Demoliu templos pagãos e levantou mosteiros como sustentáculos da evangelização. Humilde e pacífico, manteve a sua independência perante o abuso da autoridade civil.

O fascínio das suas virtudes radicadas na generosidade do seu zelo, na nobreza do ser carácter e, sobretudo, na bondade ilimitada mantida para além da morte na prodigalidade dos seus milagres, magnificamente descritas pelo seu discípulo Sulpício Severo, fez com que São Martinho de Tours fosse durante muitos séculos o santo mais popular da Europa Ocidental.

A sua memória litúrgica é a 11 de Novembro.
UM MILAGRE DE S. MARTINHO
Caminhava um dia o virtuoso santo em direcção á sua cidade de Tours, e tinha já dado aos pobres todo o dinheiro que levava consigo. Apparece lhe no caminho um mendigo andrajoso e faminto, supplicando uma esmola.

Martinho, que não tinha mais que dar, rasgou a meio a capa em que se embrulhava e deu metade ao pobre.

Este, cheio de fome, entro n’uma locanda e pediu alguma coisa para comer, mas como não tinha com que pagar, deixou em penhor a parte da capa que o santo lhe tinha dado, promettendo vir resgatal-a quando podesse.

O taberneiro atirou desdenhosamente com ella para cima d’uma das pipas d’onde tirava vinho para os freguezes, e passados dias notou com espanto que o vinho não diminuia no casco. Tirando a capa de cima da vasilha, acabava logo o vinho; tornava a collocal-a, e o divino licor jorrava logo espumante da torneira.

Eis porque os amantes do sumo da uva, escolheram para seu patrono o santo e caridoso bispo.
A lenda do verão de São Martinho

Reza assim a lenda:

No alto de uma montanha agreste, despovoada e nua, vivia um monge miseravelmente... Alimentava-se de raizes, mortificava-se de jejuns e só de raro em raro descia às aldeias a mendigar... Um ano, porém, o inverno veio cedo, e os primeiros dias de Novembro foram de temporaes pegados, bramiam ventos uivando pelas penedias, rugiam coleras de raios as tempestades, urravam medonhamente os temporaes!...

Chuvas cantarejavam ás enxurradas, e a neve, como um lençol imenso de linho purissimo cobria tudo...

Entrou então a fome e o frio na choupana humilde de Martinho, e o pobre monge, acoçado pela inverneira, resignou-se a vir ao povoado pedir uma codea de pão que o alimentasse e uma acha de lenha que o aquecesse...

E embrulhando-se n’um farrapo esburacado, que era o seu unico manto, arrimou-se ao bordão, e pôz pés ao caminho...

Entresilhado de frio, tiritando, atravessava o bom do monge uma leiva em poisio, quando topou, desmaiado na nece, um caminhante velho, rôto e descalço como ele...

Condoeu-se, e tirando das costas o migalho de pano, todo de remendos, embrulhou n’ele o desgraçado...

Dos ceus, Deus, que tudo mira c’o seu olhar onipotente, sorriu...: e chamando o sol que beijava a lua sob a protéção das nuvens, mandou aproximar o Destino e escreveu no seu livro azul com letras d’oiro: -”Que todos os anos, por estes dias, o sol aqueça os que teem frio...”

O sol doirou a terra, nos roseiraes abriram-se botões de rosas, cravos exangues mostraram a chaga rubra da sua côr, trinaram rouxinoes, cantaram cotovias, assobiaram melros, voltaram andorinhas...

... E foi assim que nasceu o verão de S. Martinho!...
S. Martinho

Viva S. Martinho...

Reine a santa frescata... e chova vinho...

Ajoelhemos, tirando a barretina,

Ante o Santo que a todos nós domina.

Juremos, pondo a mão sobre o barril,

De fazer das guelas um funil

Quando o vinho corra... Viva! Viva

S. Martinho qu’os bebedores captiva!...

sábado, 23 de outubro de 2010

A FESTA DO 1º. DE MAIO NA VÁRZEA DE TAVAREDE

Já os remotos druídas celebravam o “Bé-il-Tin”, - o começo do ano, - quando dealbava Maio.

É festa que vem de longe e, passeando em torno das idades, o seu guisalhar alegre e ruidoso.

O nome céltico de Maio, era “Cenduin”, - o primeiro mês, o primeiro tempo, - visto que era em Maio, que por êsses recuados e apartados dias, se dava comêço ao ano.

Na clara Grécia, na velha Galia, na soberana e olimpica Roma, - as “Floralias”, as “Palilias”, - os enormes fogareus lucilando e crepitando nos altos môrros, recordavam segundo a tradição de uma festa solar, vestígios de qualquer antiga comunidade pastoral.

Por todo o lado, no dôce e suave mês de Maio-Moço, em que a Natureza inteira veste galas em honra e louvor da Deusa Primavera, - o entrar de Maio, foi motivo e razão de bailos e folgares, - ou à luz radiosa do Sol, ou sob o manto rútilo das estrêlas!

A Igreja, festeja em Maio-Florido, - Nossa Senhora. É o Mês-de-Maria, - com os altares cheios de rosas claras. O cristianismo, repudiou em seu começo as rosas, - dado o culto pagão votado à aromática flôr, pelos adoradores de Vénus, - a Deusa do Amor e da Fecundidade!

Bem cedo porém as rosas regressaram a encher os templos cristãos, a cobrir de seu oloroso perfume as naves altas, a atapetar com as suas finas pétalas de sêda, os pés da Virgem Nossa Senhora. E por todo o Portugal formoso e crente, por capelas alpendradas no tôpo cinzento dos montes, por ermidas quietas e calmas, aninhadas no fundo das encostas ou erguidas ao remate das veigas tranquilas, se cantam e rezam, na doirada doçura das tardes macias dêste mês de Maio-Lindo, ladaínhas e litanias, erguendo aos Altos, - graças e louvores à Mãe-de-Deus!

Quando os Afonsos e os Sanchos, no alvorecer da nacionalidade, talavam a cortes de montante o solo da Nação, era em Maio que se organisavam as algaradas e se partia à reconquista cristã. Então se clamava: - “Vamos ao Maio!” – E o mesmo era que dizer que abalavam por vales e cêrros, ao encontro das hostes infieis, - gentes d’Algo, infanções, cavaleiros temíveis e bravia peonagem.

“Ir ao Maio”, - marcava a largada das mesnadas heróicas, que iam bater-se gloriosamente para cimentar a Pátria, que nascia e se firmava entre os golpes de uma espada e o erguer de uma cruz! As giestas, flôres d’oiro que cobrem em Maio-Formoso, tôda a faixa da Península, que vai do verde Minho ao moreno Algarve, simbolisam na sua arisca e rebelde graça, o mês mais contente de todo o ano.

Na manhã do primeiro dia de Maio, devem colher-se as giestas, e enramalhar com elas, as portas dos casais, os janelos, os currais do gado, a arca do pão e a talha do azeite.

... Para que Deus sempre dê fartura ao lar, e arrede maleitas e quartãs, - das gentes e do bicho vivo...

A giesta simbolisa o período da Primavera plena, e traduz o fino cantar do arroio calmo, o abrir da flôr no brotoejo dos ramos tenros, o chilreio dos ninhos e a vibração ligeira das azas que varam sem estôrvo o tranquilo e lavado azul!

Beber no alvôr da madrugada do 1º de Maio, água pura, gostosa e fresca, na Fonte milagreira da Varzea de Tavarede, - dá saúde, felicidade, alegria e sorte, para o ano inteiro! Por isso, tôda a gente das terras ao derredor da linda e risonha aldeia, se agrupa e junta na praxista manhã, no largo onde a bica rumoreja num fio cristalino. Não há moça de trabalho, que não consuma e môa a derradeira noite de Abril, a florir seu pote de barro vermelho, - que é grande o despique em apresentar caprichosamente enfeitadas, as cantaras airosas.

Urdem-se entre folhas de hera, os tenras ramagens de buxo ou loiro, círculos de rosas e cravos em coloridos e bizarros tons, que enastram o bôjo da vasilha, caem em aneis pelo talhe grêgo dos bocais, e pelo jeito em ânfora à roda das azas perfeitas. E grandes laçadas de fitas de sêda, descem pelos pucaros bem torneados, humidos e apetitosos, que matam sêdes de água e amor, a beiços de namorados...

Ainda o céu é um crivo de estrêlas e mal se laiva o nascente de uma ténue e branda claridade, já descem dos píncaros do Cruzeiro, das azinhagas do Robim, da estrada de Mira, - seguindo no caminho fácil e geitoso da Várzea-de-Tavarede – ranchadas de gente môça e garrula, cantando e bailando, entre risos e folgares. Em roda da Fonte, com seu arco moirisco, é bem uma romaria. Os toques, são às duzias. E andam pelo ar cantigas d’oiro, com résteas de Sol!

Chegou agora o grupo dos “Amorosos”. São de Brenha. A tuna, é de apetite. Os rapazes trazem bonés forrados de fustão branco. E as raparigas ramos de limonete e pandeiretas de onde pendem tiras vistosas de mil côres. Cantam, com acompanhamento de côro, a velha moda popular “Margarida-vai-à-Fonte”. Que linda voz tem a cantadeira...

Fui à Fonte-dos-Amores,
Fui à Fonte-dos-Amores,
P’ra ter um Amor também!
Puz na cantarinha flôres
E na Fonte-dos-Amores,
Fui encontrar o meu bem!

A água da cantarinha,
A água da cantarinha,
Mata a sêde dos desejos!
Junta a tua bôca à minha,
E à sombra da cantarinha,
Dá-me a água dos teus beijos...

Puz ao ombro a cantarinha,
Puz ao ombro a cantarinha,
Tôda florida a preceito!
Não há sorte como a minha,
Trago ao ombro a cantarinha,
Trago o teu Amor no peito!

Na Fonte-de-Tavarede,
Na Fonte-de-Tavarede,
Sabe a água a alecrim!
Meu Amor mata-me a sêde
Com água de Tavarede,
Que fôste buscar p’ra mim!

Este rancho que entra agora no largo, e tudo domina com o restôlho da pancadaria acêsa no bombo, marcando o compasso rubro e ardente duma chula nervosa, é do Saltadoiro. O tilintar dos ferrinhos vibra como um repique de sineta aguda em baptisado. A voz do rapaz é macia como um veludo. E a da rapariga, fina e ductil, lembra um doce trilo de rouxinol...

Trazes junto ao coração,
Um Senhor, no teu rosário...
= Quem me dera ter a sorte
De morrer nesse calvário...

Não sei se te hei-de amar,
Se fugir ao teu encanto!
Não sei se devo gostar,
De quem me faz sofrer tanto!

O nome que te puzeram,
= Maria! – não acho bem!
Maria, foi Mãe de Deus,
Nunca fez mal a ninguém...

O Sol rompeu, abriu, cobre tudo com a sua aza d’oiro. O ceu, é um esmalte puro, - dum azul sem nódoa ou ruga. E todo o claro espaço, cheira a madre-silva, a mangerico, a rosmaninho em flor! Da bica, tomba a linfa fresca, onde bocas gorgolejam. Uma cachopa, a fugir dum moço atrevido, deixou cair o vistoso pote, - catrapuz! – e foi um coro límpido de gargalhadas em redor...

A meio do largo, dança-se um “Malhão” barulhento – entre o zangarreio de guitarras, estridores de violões, ganidos de harmónicos, saltitares de chinelas, farfalheiros de oiros nos peitos das mulheres, nuvens de pó do sapateado acêso dos rapazes, estalidos dos dedos, e a voz rude e forte do marcador: = Volta” E vira! Uma cantiga... Uma voz sàdia de moço, atira ao fino ar:

“Vai à fonte quem têm sêde”...
= Este dito é impostôr!
Vim à fonte, sem ter sêde,
E morro à sêde de Amor...

Uma rapariga, morena como um bago de centeio, retruca de grimpa alta:

A Fonte-de-Tavarede,
Mata a sêde a quem a tem!
= Mata a sêde a quem tem sêde,
Não dá juizo a ninguém!

Há risos e palmas! O rapaz, nem toma folego, larga com desembaraço:

Oh mandador do “Malhão”
Mande-a cá! – Peço-lho eu...

= Três pares à frente! Agarradinhos! Voltinha ao par...

E mal a pulha nos braços, jungindo-a ao peito largo, enovelando-se com ela em duas voltas quentes e lestas:

Já lhe sinto o coração
Às marradinhas ao meu!

(Raimundo Esteves – Jogos Florais da Primavera de 1941, organizados pela Emissora Nacional. Menção honrosa em palestra radiofónica)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Sociedade de Instrução Tavaredense - 61



100 ANOS – AO SERVIÇO DO POVO… E CAMINHANDO…

“Ontem, Hoje e Amanhã é o título da peçazita que se ensaia para a comemoração das “Bodas-de-Diamante”.
Ontem – a obra realizada; a certeza do Hoje fizemo-la com o Ontem; com a consciência de Hoje construir-se-á o Amanhã.
Uma nova jornada de 25 anos vai iniciar-se – para o Centenário. Aos rapazes e raparigas que são a seiva renovada e renovadora do Teatro de Tavarede, aos homens e mulheres a quem os anos não cansaram e aos que entraram na velhice e são ainda vigorosos de corpo e de espírito e na Sociedade de Instrução Tavaredense são força e guia, este livro pretende ser incentivo, encorajamento a prosseguir no rumo dos 75 anos, conscientes da utilidade social – ao Serviço do Povo – da nossa Colectividade. Para o autor, este livro das “Bodas-de-Diamante” tem o sabor doce-amargo da despedida, sentado na estrada a ver passar a marcha para o Centenário, com a mala pronta, como antes, para seguir a doce “Irmã-Morte” que já se avista e serenamente se aguarda”.

Foi desta forma que, em 1979, quando se iniciavam as comemorações festivas das “Bodas-de-Diamante” da Sociedade de Instrução Tavaredense, Mestre José da Silva Ribeiro terminou o seu segundo livro sobre a história da nossa Colectividade. Deu-lhe, então, o título de “75 Anos... e Caminhando”.

Já antes, por ocasião das “Bodas-de-Ouro”, em Janeiro de 1965, havia publicado o primeiro volume, que intitulou, muito apropriadamente, “50 Anos ao Serviço do Povo”. Com estes dois trabalhos, a história da Sociedade de Instrução Tavaredense está perpetuada para todo o sempre. Havia, portanto, que dar-lhe a merecida continuidade.

E nada mais justo, parece-nos, que com os títulos que o Mestre deu aos seus livros, uni-los e dar o nome ao livro publicado pelo Centenário. Foi isso que foi feito. E agora continuemos a nossa história.

E porque julgamos muito interessante, ainda, e relativamente às comemorações das ‘Bodas de Diamante’, aqui transcrevemos as palavras pronunciadas na sessão solene pelo nosso Padre António Matos Fernandes: “Eu estou aqui como Pároco de Tavarede, mas não para falar da Igreja, daquilo que a Igreja realiza com os erros dos homens certamente, mas com a Igreja com a actualidade no presente também, que recordamos até esta campanha em que andamos metidos do Ano Internacional da Criança em que temos a honra de a Igreja de Tavarede ter avançado primeiramente aqui no nosso concelho. Ainda ontem a Igreja de Tavarede esteve presente com a sua Catequese na Figueira.

Mas não venho aqui falar de Igreja. Também queria pedir muita desculpa de hoje eu não vir aqui falar de vós que sois de Tavarede, embora possa falar de vós que sois de Tavarede. Mas não vos venho falar directamente. Eu queria sobretudo que as minhas palavras fossem para o Senhor Secretário de Estado da Cultura, Dr. David Mourão Ferreira. A V.Exª eu quero dirigir-me de uma maneira especial. Em primeiro lugar para o saudar como ilustre membro do IV Governo Constitucional. Para lhe dizer que nós respeitamos a autoridade legitimamente constituida e que no Mundo em que depois de tantas mudanças, de tantas ilusões e de tantas desilusões, nós acreditamos neste punhado de homens competentes que além de muitos outros méritos têm o mérito de não ter medo. Eu penso que é muito importante. Por tudo isto eu saúdo V.Exª e queria lembrar à maneira de uma vivência pessoal deste pouco tempo em que estou aqui em Tavarede, queria lembrar alguma coisa desta gente. Queria lembrar que é gente simples, trabalhadora, que não vem aqui para o palco tecer um hino ao trabalho apenas de uma maneira teórica, mas porque o sente bem nas suas mãos, nos seus campos, na sua casa, nas oficinas, nos escritórios, sente o peso do trabalho, mas porque não encara o trabalho como um peso, tece um hino ao trabalho, esse trabalho que pode transformar o Mundo e que tem de ser, ele, o único a transformar este Portugal em que nós estamos. É gente bem educada, gente correcta, gente delicada, atenciosa. E eu digo isto tudo, não é para que eles depois digam que eu estive a dizer bem deles, não é por uma questão de emulação, mas é numa atitude de sinceridade, porque no convívio com eles em cada um tenho um amigo, por isso posso testemunhar todos estes predicados da boa gente de Tavarede.

Gente com um certo nível de cultura. Que ultrapassou um pouco aquele tempo da instrução primária, nós já sabemos porquê e já diremos porquê. Gente polida nas suas maneiras, é gente que sabe viver em grupo, em comunidade. Eu considero este ponto importantíssimo para uma comunidade em que as pessoas se isolam, em que cada uma não pensa única e simplesmente nas suas coisas, na sua casa. Tantas vezes à noite eu os vejo passar para esta casa, deixando as suas coisas. Mas é uma sociedade, é um grupo, é uma comunidade, é uma família. E até ainda neste aspecto de família, eu queria dar um testemunho muito grande. Quando há trabalho na Igreja, e independentemente das suas profissões religiosas, independentemente dos seus credos políticos, damo-nos as mãos mutuamente e tantas vezes eu tenho vindo aqui e eles me perguntam: - Então, Senhor Padre, quando é trabalho, tal coisa? Veja lá, marquemos com tempo, para depois podermos ser todos a trabalhar. Isto é importantíssimo numa terra, e é consolador para mim que sou o Pároco desta terra que é a minha.

Gente que trabalha em comum. Eu não tenho dúvidas nenhumas em dizer que todos estes valores humanos se devem a uma espécie de pequena Universidade que temos cá na terra, e a um magnífico Reitor. Eu refiro-me à Sociedade de Instrução Tavaredense e ao meu grande amigo José Ribeiro. Sociedade colocada aqui num alto, no cimo de Tavarede, como que a indicar uma espécie de Santuário para onde se dirige, para onde se congrega toda esta gente de Tavarede. Fica no alto para indicar que a vida tem de ser uma caminhada constante e que temos de sair daqueles individualismos, daquela mediania, duma vida lá em baixo. Sociedade colocada cá no alto, como que a servir de apelo para que vida possa ser mais alguma coisa do que fecharmo-nos em nós próprios. Esta Sociedade, este centro de encontro, colocado aqui no alto, à maneira da lareira onde as famílias se reunem para se aquecerem em comum, para falarem, para conversarem, para saberem dialogar, para falarem das suas coisas e aprenderem também as suas coisas, com os mestres e com o mestre. Esta casa importante, importante pelo que já ouvimos aqui dizer, pelas letras que começou a ensinar, a cultura do espírito, porque um povo sem cultura é um povo sem valor. Sociedade importante pelos seus teatros, pela Cultura que vai dando a esta gente, e eu dizia que ultrapassou a instrução primária precisamente devido a este trabalho aqui, neste palco de Tavarede. Está a dar os seus passos também no Desporto e é local de convívio desde que devidamente orientado e desde que as coisas sejam levadas com a devida correcção. O Desporto pode ser educação desde que não seja levado com paixão.

Tem esta casa, portanto, prestado altos serviços ao povo de Tavarede, ao povo da nossa terra. Por isso ela é digna da nossa admiração, do nosso respeito. Por isso mesmo esta casa merece e tem todo o direito de exigir os bons olhos e uma atenção especial da parte dos departamentos governamentais. E eu acredito, Senhor Secretário de Estado, que V.Exª certamente terá tudo isto muito em conta. Esta Casa merece a atenção da parte do Governo. Não foram eles que me pediram nada disto. Mas sou eu que na minha maneira de ver as coisas como homem que sou do tempo de hoje, empenhado nos problemas do tempo de hoje, entendo que esta Casa também merece a atenção do Governo. 75 anos ao serviço do povo. 75 anos repassados de trabalho numa educação constante do trabalho. 75 anos celebrados com uma peça que foi, ela também, um hino ao trabalho. Um hino à união de todos, naquela imagem do trabalho e do campo. Um hino à esperança, na mensagem de esperança na criança que aparece, a alegria da família. E a vida sem esperança é uma vida sem sentido. A esperança que dá sentido, a esperança que é o sol que ilumina, a esperança que é um apelo à energia, porque quando há esperança há sempre um pouco mais de força para ir mais além, a esperança que tem de ser o indicativo dum caminho. Esta peça indica. E a Sociedade de Instrução Tavaredense vai continuar. Esta peça indica que este bom povo de Tavarede vai continuar a contar com o bom trabalho desta Casa. Por isso eu hoje como Pároco, como amigo desta terra, saúdo esta Casa que é também a minha Casa. Para o senhor Secretário de Estado e juntamente também para esta nossa Sociedade de Instrução Tavaredense, que está a celebrar os seus 75 anos, eu pedia uma salva de palmas.

Festejos ao S. João

Novenas, illuminações, musicas, fogos do ar, exposição d’egreja, danças populares, missa a grande instrumental, cavalhadas, corridas de gericos, corridas de peões em saccos e de velocidade, e corridas de mulheres com potes, todas premiadas, tal foi o programma da festa que no sabbado, domingo e hontem, segunda feira, se realisou aqui em honra de S. João.

Passaram estes dias, passaram com elles os festejos annunciados, sem que houvesse o menor incidente perturbador da alegria e do socego do nosso povo, que teve ensejo para mostrar mais uma vez o genio pacato e ordeiro de que é dotado.

A commissão que promoveu os festejos desempenhou-se cabalmente da sua missão. Nada mais se poderia exigir do bello effeito que produzia a illuminação de sabbado, da boa ordem em que ia a numerosa cavallaria da bandeira, da animação que reinou nas corridas de hontem, e, emfim, de toda a série de distracções que realisou em proveito do povo que procura esquecer no meio das suas alegres festas as rprivações que soffre no labutar constante de cada dia.

Ainda assim, hoje, para a mocidade, nada ha mais querido do que a dança, esse divertimento em cujo rodopiar se trocam olhares fascinantes e em que os rapazes e raparigas sentem, quasi unidos, o palpitar amoroso dos seus apaixonados corações. Que importa dizerem medicos abalisados que a tysica é muitas vezes originaria da dança e que a ella se devem muitos dos cqsos succedidos por esse paiz fora? Todas essas tenebrosas affirmações pouco preocupam a mocidade, e era ver como ella, na noite de sabbado e tarde de domingo, se entregou ardentemente á expansão d’essa folia, ao som da Estudantina e formando um explendido rancho - Alegria - em que aqui e ali predominavam pares de salerosas niñas, que d’essa praia vieram associar-se garbosamente ao tributo d’homenagem que as raparigas de Tavarede dispensaram ao festejado S. João.

Uma infinidade de fieis assistiu á missa de domingo, em que foi celebrante o nosso vigário sr. J. da Costa e Silva e acolytos os revdºs. Emygdio Ramos Pinto, da Figueira, e J. N. Forte de Campos, de Villa Verde. Ouviram-se varias musicas sacras, executadas por musicos da philarmonica das Alhadas, que tomou parte nos festejos de sabbado e domingo.

Seguiu-se a formatura do cortejo da bandeira, poz-se em marcha para essa cidade e Buarcos, e regressou pelas 5 horas da tarde, quando o transito na rua Direita era enorme, acotovelando-se os forasteiros em passeio aprazivel, e quando á sombra de arvores proximas se manducavam em desprendido convivio grande numero de apetitosas merendas.

Duas horas depois, ao festivo estralejar de foguetes e ao som do hymno da Carta, vimos uma commissão composta dos srs. João Motta, João Jorge Paschoa, Antonio Marques Junior, Joaquim Miguens Fadigas, João Lopes Moço, José Maria Jorge Paschoa, Manuel Rocha e Augusto Marques, que, seguida de muito povileu, conduzia a bandeira de S. João, annunciando por isso a realisação dos festejos no proximo anno.

Porem, a tarde de hontem foi, a nosso vêr, a que mais agradou, porque todas as corridas que houve foram verdadeiramente engraçadas, principalmente as de burro, saccos e potes. Os espectadores conservaram-se sempre em perfeita hilaridade, provocada pelas continuas scenas de graça que se desenrolavam a cada instante.

Todos os vencedores eram enthusiasticamente saudados pela lendaria philarmonica Zé P’reira, essa genuina musica portugueza que é a alma das festas populares.

E assim acabaram pelas 8 horas e meia, quando a noite nos cobria com o seu azullado manto de estrellas, as festas que uma briosa commissão levou a effeito, embora tardiamente, mas que tem em sua defeza o velho rifão que nos diz que: O S. João a todo o tempo tem vez.

A toda essa commissão, ása pessoas que valiosamente a coadjuvaram, ás raparigas que organisaram o Alegria e á Estudantina, cumpre-nos enviar muitos parabens pelo exito brilhante que alcançaram os festejos, por cuja realisação algumas vezes pugnámos n’este logar.

O sr. regedor d’esta freguezia não deve por fórma alguma deixar de castigar os cocheiros que no domingo desobedeceram ás suas ordens, transitando com os carros pela rua Direita, entre grande agglomeração de povo, de quem ouvimos muitos protestos contra tal serviço.

(Gazeta da Figueira - 2.Agosto.1899)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

CANTIGAS DE TAVAREDE


Sob o título 'CANTARES DE TAVAREDE ESTÃO CADA VEZ MELHOR' o Diário de Coimbra de 20 do mês corrente, noticiando mais uma edição dos 'Serões do Mondego', que, numa feliz iniciativa do Casino e da Associação das Colectividades do Concelho, têm sido efectuados no Salão Café do Casino da Figueira.
Estes 'serões' têm a colaboração das colectividades concelhias, que têm a oportunidade de apresentar naquela sala o melhor das suas actividades. Sempre fui colaborador e adepto do Associativismo. E o nosso concelho, nesse campo, dá cartas a qualquer outro. Felizmente.
Mas voltando àquela notícia, ficámos imensamente satisfeitos com a referência feita ao grupo coral da Sociedade de Instrução Tavaredense. E vamos aqui transcrevê-la: '... Se o concerto da Filarmónica Verridense, dirigido pelo maestro Duarte Garcia, constituíu uma surpresa agradável, a presença em palco dos "Cantares de Tavarede" sob a mestria de João Cascão, encantaram e encheram o público de alegria com temas teatrais conhecidos de muitos, com destaque para o guarda-roupa vistoso de todo o grupo. É bem visível que de espectáculo para espectáculo, o grupo está cada vez melhor".


Como tavaredense, sempre orgulhoso da Terra do Limonete, saúdo todos e todas os/as participantes no Grupo e o seu maestro, o nosso amigo João Cascão. E desejo, como certamente todos os meus conterrâneos, que continuem com o melhor ânimo.


domingo, 17 de outubro de 2010

CAPELA DO S. PAIO

Constou, há dias, que tinham assaltado a casa dos Monteiros, no Prazo, e vandalizado a capela do S. Paio. Teria sido um acto de puro vandalismo.

Esta semana, para esclarecer o caso, desci o caminho que desce da rua dos Pejeiros até ao vale, onde tem ligação com a estrada do Saltadouro. É um caminho impossível, diga-se desde já. Só de tractor ou à pé, que foi o que fiz. Mas a idade não perdoa e as 'dobradiças' queixaram-se bastante durante a subida que tive de fazer no regresso.
Mas, felizmente, tive uma boa compensação. A capela está intacta, pelo que parece ter sido rebate falso. Para confirmar publico fotos que tirei. A propósito, também publico mais duas fotos que vão destinadas ao Brasil, a quem peço o favor de as identificar.



































sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Em louvor de Tavarede


Quem seria o Fr. Manuel de Santa Clara que subscreve o soneto adiante transcrito?

Pertenceria ao convento figueirense de Santo António? Ou algum religioso de outro mosteiro, estranho à terra, que por aqui passasse a recrear-se ou aqui viesse em uso de banhos (talvez até hóspede do convento) e nalguma digressão à risonha Tavarede ali se deixasse prender nos encantos da sua paisagem?

Ignoro-o. Poucas, que se nenhumas, infelizmente, são as notívias àcerca dos nossos franciscanos, uma vez sumido, creio que para todo o sempre, o arquivo da casa conventual.

Seja como for, é curioso o soneto desse frade, descritivo da “terra do Limonete”. Nele encontramos referências ao vale e outeiros circunvizinhos; ao regatito humilde que atravessa a povoação e que há perto de 170 anos (o soneto é datado de 1779) era, como se vê, ribeiro, portador, por certo, de mais água e menos lixo; ao palácio quinhentista dos Quadros, hoje mìseramente degradado com vergonhosas mutilações e reparações imbecis; e, finalmente, à abastança de frutos e verduras, do seu fecundo vale, por onde o frade-poeta o avantaja nada menos que ao de Tempe, aos pés do Olimpo, na Grécia de Píndaro e de Anacreonte.

Do manuscrito setecentista donde transcrevi o soneto constam duas versões, se assim apreciarmos umas alterações de pouca monta lançadas à margem dele: no 1º. verso, colinas cheias, em vez de outeiros vestidos; no penúltimo, assim ganhando em vez de assim levando. Escolhi a primeira, quando há anos tive nas mãos o manuscrito; a outra, agora, se me afigura preferível. Vejamos:

Descripção do sítio de Tavarede

Entre outeiros vestidos de verdura,
Um vale gracioso à vista ocorre
Onde um claro ribeiro em giros corre,
Banhando-o de eternal, grata frescura;

Quanto nele se avista, obrou Natura;
Só um nobre Palácio ali concorre
A mostrar que, subtil, o engenho acorre
À simétrica mão da Arquitectura.

Junto às casas e muros bracejando,
Verdes parreiras vão, entre a folhagem,
Seu roxo ou loiro fruto entremostrando.

E a Ceres e a Pomona vassalagem
Rende este vale ameno, assim levando
Ao de Tempe famoso alta vantagem!

1779 De Frei Manuel de Santa Clara

Rejubile a fidalga Tavarede com a notícia deste peça literária, e tome-a como uma jóia mais a engastar na sua coroa condal.

Cardoso Marta
(Boletim C.M.Turismo - 31.Julho.1947 - nº. 18)

Pedro Nunes Medina

Nasceu em Tavarede, em 16 de Maio de 1906, filho de António Medina e de Otília Nunes. Casou com Maria Alves Garcia, tendo dois filhos: Violinda e Vítor Manuel.

Sapateiro de profissão, tentou seguir a carreira militar como músico, na banda do Regimento de Infantaria 20. Antevendo, no entanto, dificuldades em conseguir atingir uma breve promoção, deixou a tropa e empregou-se nas oficinas dos caminhos de ferro.

Seguindo o exemplo familiar, desde muito novo se integrou no Grupo Musical, fundado por seu pai, como amador teatral e músico. Tinha especial vocação para a opereta e para a comédia, havendo várias referências elogiosas a actuações suas.

Na Tuna, tocou bandolim, banjo e viola. Quando o Grupo Musical acabou com a secção dramática, foi um dos elementos que passaram a colaborar na Sociedade de Instrução. Iniciou-se, nesta colectividade, na opereta As pupilas do Senhor Reitor, participando, entre outras, em Entre Giestas e Recompensa. Em 1940 e 1941, foi um dos mais entusiasmados com a reposição que o Grupo Musical fez, no teatro da Sociedade, do “velho” Presépio.


Em 1940 foi um dos elementos iniciais do conjunto “Lúcia Lima Jazz”, organizado por seu irmão José, tocando trombone, instrumento que havia tocado na banda militar. Por motivo de saúde passou a tocar rabecão, mantendo-se no conjunto cerca de quinze anos.


Conjuntamente com seus primos Jorge e João e alguns amigos, fundou o grupo “Os Inseparáveis” que, todos os dias 1 de Maio, se reuniam em alegre confraternização. Com a aderência de muitos amigos, este grupo era bastante acarinhado, pois, esses dias, eram sempre dias de festa na terra, que eles acordavam bem cedo com a alvorada que faziam pelas ruas da aldeia, em alegre arruada.


Internado nos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde foi operado ao estômago, devido ao tormento que passou com a sede e conhecendo bem a frescura deliciosa da fonte do Prazo, fez a promessa de ir com a família, no primeiro domingo de Julho de cada ano, passar o dia junto da capela de S. Paio. Com o passar dos anos, além da família e amigos mais próximos, esta reunião tornou-se verdadeira romaria, com muita gente atraída pela dança e jogos de cartas e malhas que ali se realizavam. Uma desordem entre pessoas estranhas, levou a que esta romaria acabasse, passando unicamente, enquanto a saúde lho permitiu, a ali ir almoçar e passar um bocado da tarde com a família mais chegada.


De espírito alegre e divertido, sempre aparentando boa disposição, apesar da doença que o minava interiormente e o levou muito cedo, pois faleceu em 3 de Setembro de 1959, com 53 anos, tinha sempre uma anedota ou uma historieta para contar, algumas das quais um pouco picantes, mas que eram as mais desejadas de ouvir.

Abriu uma oficina de sapataria em Tavarede, primeiro na Rua Direita e depois em sua casa, no Largo do Terreiro, para consertos e obra nova, onde tinha bastante clientela, principalmente de companheiros seus no trabalho. Também fazia parte do grupo de caçadores que, na época própria, calcorreavam montes e vales vizinhos, em busca de um ou dois coelhos que, normalmente, eram comidos depois da caçada, na loja do Guerreiro.


Em 1953 foi nomeado regedor mas, devido à precária saúde, pediu escusa do cargo pouco tempo depois de tomar posse.


São muitas as histórias que ele “pregava” aos amigos. Algumas delas já estão contadas noutros trabalhos. Amanhava uma pequena leira na fazenda da Chã, que era de seus pais. Batatas e vinho eram a principal produção, assim como no pequeno quintal de sua casa. Mas, tanto isto como outros produtos, as chamadas novidades, eram sempre semeados e colhidos em pequeníssimas quantidades. O vinho, então, dos corrimões plantados à volta da terra, para chegar aos 100 litros era sempre necessário juntar alguns canecos de água da fonte. Um dia, querendo confraternizar com os amigos com uma merenda farta e para provarem a “colheita” desse ano, lembrou-se de ir perguntar ao Guerreiro, que explorava a loja que fora de Francisco Cordeiro e de sua filha Emília, se estava disposto a comprar vinho novo, de qualidade especial e que certamente chamaria farta clientela.


Há pouco tempo na terra, não desconfiou e interessado em vinho bom, do lavrador, isso nem se perguntava. Combinaram de imediato ir fazer a prova nessa tarde, para o que lhe disse para levar uma boa merenda. À hora marcada, lá apareceu o Guerreiro, com uma farta omeleta de chouriço e carne, bem como as indispensáveis azeitonas e o pão. A loja da casa era bastante escura, pois só uma pequenina janela permitia a entrada da luz. Num pequeno quarto que havia à entrada, já estava preparada a mesa e respectivos copos. Logo assentaram arraiais e vá de começar a petiscar para fazer o peito à pinga.


O Guerreiro bem procurava ver a adega e os tonéis, mas a escuridão era total. Quando o petisco estava quase no final, agarra numa picheira e aí vão todos à adega para espichar a pipa principal. Qual foi o espanto do Guerreiro quando se depara com um pequeno barril de 100 litros… Claro que tudo acabou com uma valente gargalhada e sem qualquer ressentimento.

Caderno: Tavaredenses com História

Anibal Nunes Cruz

Natural de Tavarede, onde nasceu no ano de 1891, filho de Romana Gomes Cruz e de Joaquim Nunes.

Exerceu a função de tipógrafo, na Figueira da Foz. Fundou e dirigiu, conjuntamente com outros companheiros de profissão, entre os quais o seu conterrâneo José da Silva Ribeiro, os jornais “O Rapaz”, “O Poeta”, “A Redenção” e “O Grito”, este no ano de 1920 e que foi um “verdadeiro porta-voz do operariado figueirense”.

Foi, também, um dos fundadores do Grupo da Juventude Republicana Dr. Bernardino Machado, de cujo grupo cénico foi amador, e do Grupo da Mocidade Operária Figueirense, do qual foi o primeiro presidente da direcção.

Até ao ano de 1912 foi correspondente em Tavarede do jornal “Gazeta da Figueira”, assinando as suas notícias sob o pseudónimo de “Ladina” e de “Labina”, este último anagrama do seu nome, Aníbal.

Fez parte do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense como secretário da assembleia geral e serviu de ponto ao seu grupo dramático.

Em 1912, foi trabalhar para a Anadia, para a Tipografia “Bairrada Livre” e, posteriormente, mudou-se para Lisboa, onde exerceu o cargo de “chefe dos serviços gráficos” numa importante tipografia, até à idade da reforma. Foi, também, chefe da redacção do jornal “Ecos de Cacia”.

Após ter atingido a reforma, esteve em Tavarede numa curta estadia, fixando residência em Anta, Maiorca, onde morreu a 28 de Dezembro de 1964.

Casou com Ester Duarte Mota Cruz e teve um descendente: Joaquim Nunes Cruz.

Colaborou ainda em outros jornais locais, como “A Voz da Justiça”, “O Figueirense” e “A Voz da Figueira”.

Foi ele que deixou a informação de que sua avó lhe contava que, no tempo das pequenas sociedades dramáticas, chegou a haver cinco presépios, ao mesmo tempo, em Tavarede.
Grande apaixonado pela sua terra natal, foi acérrimo defensor das velhas tradições tavaredenses. Entre outras, é de sua autoria a seguinte quadra:

A fonte de Tavarede,
Dia e noite a correr,
Dá frescura e prazer
A todos que tenham sede.

Caderno: Tavaredenses com História

Alberto Anahory


Nasceu no ano de 1906 e faleceu, em Lisboa, em 2000. Foi uma das mais dedicadas e valiosas colaborações que a Sociedade de Instrução Tavaredense recebeu. “Graças a ele, pelo seu sempre luxuoso e apropriado guarda-roupa com que vestiu grande número de peças representadas, alcançou o grupo cénico extraordinários êxitos”.

Em 1961, foi-lhe promovida uma festa de homenagem, tendo-lhe sido atribuído o diploma de sócio honorário. “Além de vestir a peça Terra do Limonete com a riqueza e gosto que nos foi dado observar, o que muito contribuiu para o êxito

alcançado, e em condições de aluguer excepcionalmente favoráveis, levou a sua generosidade ao ponto de tomar a seu cargo a resolução de muitos assuntos relacionados com o apetrechamento do palco, e ainda de toda a confecção e montagem do novo pano de boca, bambolinas e reguladores, que exigiram a sua permanência entre nós de vários dias, assim como de duas costureiras suas durante 20 dias a trabalhar na nossa sede, sem dispêndio algum para os cofres da colectividade”.

Só com a sua colaboração foi possível a montagem de muitas peças, pois, graças à sua amizade e generosidade, cobrava um preço verdadeiramente simbólico pelo aluguer do seu guarda-roupa, pois as receitas obtidas na bilheteira não conseguiriam suportar, nem de perto nem de longe, o seu custo real.

O seu retrato encontra-se no salão nobre da colectividade.

Caderno: Tavaredenses com História

Sociedade de Instrução Tavaredense - 60


Se as “Bodas de Ouro” haviam sido comemoradas com enorme brilhantismo, pode dizer-se que em nada desmereceram as comemorações das “Bodas de Diamante”.

Em Outubro de 1978 foi feita a apresentação do programa. “… Com um passado inteiramente dedicado à divulgação da Cultura, o nome da colectividade é conhecido em bastantes cidades, vilas e aldeias do País, principalmente através do seu grupo cénico, o qual, desde a sua fundação, sempre tem colaborado com as mais diversas associações de assistência e colectividades populares. Aproximando-se essa comemoração, a Direcção resolveu juntar a si um grupo de sócios com o fim de elaborar um programa comemorativo, de acordo com o passado de que Tavarede tanto se orgulha…”. Os principais actos então anunciados foram: início das comemorações, em 1 de Dezembro de 1978, com uma exposição evocativa; publicação de um livro em continuação ao “50 Anos ao Serviço do Povo”; estreia, em Janeiro, de uma nova peça escrita pelo director cénico, na linha das anteriormente dedicadas à história de Tavarede; espectáculos culturais e desportivos; confraternização de sócios e amigos, etc.

Com uma notícia em que largamente descreve a actividade da Sociedade de Instrução Tavaredense, o jornal “A Voz da Figueira”, comentando o programa apresentado e depois de recordar alguns dos principais acontecimentos do passado, escreve: “… Quem ousará, portanto, pôr em dúvida de que são, na verdade, notáveis as Bodas de Diamante da SIT? Ou negar que elas constituem a concludente e irrefutável prova do invulgar amor ao teatro, do bairrismo e da perseverança no esforço colectivo, mesmo dirigido apenas às coisas do espírito, da gente da terra do limonete?”.
Bodas de Diamante - A Mesa que presidiu à Sessão Solene

Foram, efectivamente, notáveis, as Bodas de Diamante. Salientemos, no entanto, somente três eventos: o lançamento do livro “75 Anos… e Caminhando”; o espectáculo de gala, com a fantasia “Ontem, Hoje e Amanhã”; e a sessão solene.

O livro, no seguimento de “50 Anos ao Serviço do Povo”, dá-nos, como só José Ribeiro o sabia fazer, a panorâmica completa da vida da colectividade ao longo dos seus 75 anos. “Um acto profundamente transcendente o trabalho executado pelo nosso querido Mestre José da Silva Ribeiro”, escreveu-se no relatório da Direcção.

Mestre José Ribeiro recebe das mão do Dr. David Mourão-Ferreira a Medalha de Ouro da Cidade da Figueira da Foz

“… com todos os elementos de agrado – variedade de assuntos, numa sucessão de cenas diferentes da história local de ontem e de hoje, de comentário alegre, de fantasia, que decorrem num conjunto de alegria, graça e beleza, com cenários sugestivos, música bonita, belo guarda-roupa, e numa interpretação excelente em que se admira um conjunto de 40 figuras em cena…”. Este foi um dos comentários então publicados na imprensa figueirense sobre o espectáculo apresentado.


A sessão solene, “o número mais brilhante do programa”, foi presidida pelo Secretário de Estado da Cultura, Professor Doutor David Mourão-Ferreira. Além da efeméride que se comemorava, outro acontecimento dominou esta sessão. Mestre José Ribeiro acedera a receber publicamente a “Medalha de Ouro da Cidade”, que a Câmara Municipal lhe atribuíra “numa justa homenagem ao Homem que de alma e coração se tem devotado, especialmente através do Teatro, à grande causa educativa que tanto enobrece a Sociedade de Instrução Tavaredense”.


“… Não é a minha presença que confere qualquer espécie de honra a este acto. Pelo contrário, eu é que me sinto particularmente honrado de ter vindo aqui a Tavarede, de ter ontem assistido à peça “Ontem, Hoje e Amanhã” e de ter tido ocasião de contactar com o povo de Tavarede e de ver não só o seu grau de cultura e educação cívica que esse povo tem – e isso já eu o sabia – mas de ver também os tesouros de sensibilidade que esse mesmo povo guarda dentro de si. E devo acrescentar que me emocionou particularmente ver ainda há pouco, quando o sr. José Ribeiro era alvo desta homenagem, que havia lágrimas em muitos olhos.


Seja como for, desempenhasse ou não as funções que desempenho agora, seria sempre meu dever, como simples cidadão interessado nos problemas da Cultura do nosso País, associar-me de qualquer modo que fosse à pública celebração da data de hoje…”. Estas citações são pequena parte do discurso proferido pelo Dr. Mourão-Ferreira ao encerrar a sessão solene das Bodas de Diamante.

Termina, aqui, a nossa tarefa de recordar um pouco do passado da Sociedade de Instrução Tavaredense. Muito, mesmo muito mais, haveria a recordar. Mas aquilo que ao longo destes 69 capítulos recordámos, chega, de sobejo, para se aquilatar o glorioso passado desta colectividade e, também, tudo quanto, no decorrer de mais de dois séculos, se tem feito em prol da cultura do povo da terra do limonete e, simultaneamente, da acção educativa e beneficente desta gloriosa Sociedade, afinal, uma extraordinária e digna continuadora das tradições culturais em Tavarede.

(Felizmente, a Sociedade de Instrução Tavaredense continua viva e activa. As historietas que tenho contado foram até às Bodas de Diamante. Há mais. Já ultrapassámos o Centenário. As nossas histórias vão continuar, pois ainda há muito que contar)

Sociedade de Instrução Tavaredense - 59

Aproximamo-nos do fim da nossa tarefa. Estamos, finalmente, a chegar às “Bodas de Diamante”. Antes de darmos nota destas comemorações, ainda vamos relatar três apontamentos que reputamos de interesse para estas historietas.

Numa entrevista dada pelo Professor Dr. Paulo Quintela, ao jornal “Diário de Notícias” acerca da divulgação do teatro de Gil Vicente pelo Grupo de Teatro dos Estudantes de Coimbra, aquele Mestre de Teatro, aliás bem conhecedor da nossa actividade, omitiu o nome da nossa Sociedade e a nossa prestação ao Teatro Amador Português.

“…. Ora a verdade é que a velhinha Sociedade de Instrução Tavaredense, fundada ali da vizinha e ridente povoação de Tavarede, a “Terra do Limonete”, em 1904 e desde então ininterruptamente dedicada, sem quebras nem desfalecimentos, a uma louvável obra de educação e cultura do povo, desfruta também de inteiro e inegável direito a figurar entre os agrupamentos cénicos que, de forma efectiva e permanente, têm dado notável contributo à divulgação do teatro de Gil Vicente, fazendo-o com elevado nível artístico e invulgar persistência e dedicação.
O Bailarico

Há 62 anos sob a orientação do mesmo director artístico, José da Silva Ribeiro, um verdadeiro mestre de teatro e que o serve com uma devoção e uma competência inexcedíveis, bem pode afirmar-se, sem receio de contestação, que o grupo de amadores da Sociedade de Instrução Tavaredense, se conta hoje entre os melhores do país.
Mas este homem, dominado pela profunda convicção de que, perante os incapacitados para a leitura, a arte dramática deve ser, tem de ser, precioso elemento da grande obra de difusão da cultura, não podia deixar de dedicar particular atenção à escolha do respectivo reportório. E assim é que, para além de ter levado à cena, mais de uma dúzia de originais da sua autoria (só ou em colaboração) e mais de meia dúzia de traduções e adaptações por ele efectuadas, fez representar pelo menos quatro peças de Shakespeare, outras tantas de Molière e também dos Irmãos Quintero, além de teatro de Almeida Garrett, D. João da Câmara, Marcelino Mesquita, Pinheiro Chagas, Chagas Roquette e uma infinidade de outros mais, tanto portugueses como estrangeiros, mas sujeitos todos a criteriosa escolha e selecção. E toda essa vasta, vastíssima, galeria de obras, autores e personagens, encenada com rigorosa subordinação ao princípio de que, sobre as tábuas dum palco, os defeitos da representação atingem tal relevância, que chegam a perverter as próprias virtudes dos textos.

Cântico da Aldeia

Do que fica dito já será fácil prever que um homem de teatro como José da Silva Ribeiro dificilmente poderia deixar de dar no seu teatro, a Gil Vicente, o lugar de relevo que ele merece e toda a dimensão que estivesse ao seu alcance.
Assim, portanto, nenhuma admiração nos deve causar que ele tenha feito representar pelos seus amadores tavaredenses nada menos de onze originais vicentinos. A começar no “Auto da Mofina Mendes”, seguido do “Auto da Barca do Inferno”, de “Todo o Mundo e Ninguém” (do “Auto da Lusitânia”), do “Auto Pastoril Português, da “Farsa do Velho da Horta”, do “Pranto da Maria Parda”, do “Dom Duardos”, de fragmentos do “Auto Pastoril Português”, “Romagem dos Agravados” e “Breve Sumário da História de Deus” e a acabar no “Auto da Feira”.
Extraordinária sim, temos de considerar a divulgação desse reportório para além de Tavarede, através da famosa “campanha vicentina” em redor do concelho e visando as suas aldeias rurais. De deslocação a Coimbra, ao Teatro Avenida, com “Noite de Teatro Português”. De comemoração do “Dia Mundial do Teatro”. E de comemoração do “V Centenário do Nascimento de Gil Vicente”. Em qualquer dos casos em espectáculos realizados nesta cidade e promovidos pelos Serviços Culturais da Biblioteca Municipal da Figueira. Um repertório que havia também de dar lugar a uma admirável, inesquecível e verdadeira criação artística de Violinda Medina, no “Pranto da Maria Parda” e numa interpretação com a qual, sem o mínimo de exagero se pode dizer, poucas e destacadas profissionais seriam capazes de ombrear.
Para além do que fica referido, quanto não poderia e deveria ainda escrever-se sobre o assunto, se para tanto houvesse maior jeito e o espaço o permitisse.
Cremos, no entanto, que mais não será preciso para comprovar que houve lapso do Prof. Doutor Paulo Quintela quando não incluiu os amadores tavaredenses, de José da Silva Ribeiro, entre os que muito se empenharam em dar o seu contributo à divulgação do teatro de Gil Vicente”.
O segundo apontamento diz respeito a mais uma palestra de Mestre José Ribeiro. No Porto havia sido levada à cena a peça “Frei Luís de Sousa”, totalmente adulterada. “José Ribeiro, o homem de espírito e incontestável mestre de teatro de que justamente os seus patrícios se orgulham, efectuou na Sociedade de Instrução Tavaredense, subordinado ao tema “Liberdade e Abusos do Encenador”, uma conferência-protesto contra o vil desacato de que acaba de ser alvo a imortal obra-prima teatral “Frei Luís de Sousa”, de Almeida Garrett, que um grupo cénico do Porto acaba de levar à cena, totalmente adulterada, a ponto de proporcionar um espectáculo indecoroso, aviltante, intragável, que nem o actual estado dos nossos costumes recebeu passivamente.

Violinda Medina - O Processo de Jesus - Última vez que pisou o palco

Aqui deixamos a José Ribeiro os aplausos pela sua viril e oportuna reacção contra o oportunismo torpe dos audaciosos envenenadores da sociedade portuguesa, que tudo fazem para a ver cada vez mais degradada, na certeza de que assim a podem mais facilmente tomar de assalto”.
Finalmente, a terceira nota diz respeito à reposição, no dia 30 de Setembro de 1978, da peça “O Processo de Jesus”. A nossa amadora Violinda Medina e Silva havia abandonado o palco, em 1975, depois do falecimento prematuro de sua única filha, Maria Luísa. Mas o seu amor ao teatro acabou por superar a sua imensa dor. Doente, alquebrada e quase cega, ainda arranjou forças para participar na reposição daquela peça. O seu papel, o de “A Velhinha”, personagem a quem haviam assassinado o filho por questões políticas, viveu-o ela intensamente nesta reposição. Transportou-o para si própria e para a sua triste realidade. Quem assistiu a estas representações, dificilmente esquecerá os momentos, verdadeiramente dramáticos, então vividos, quando Violinda Medina e Silva desempenhou este papel.
Foram dados quatro espectáculos com a reposição. No dia 2 de Junho de 1979, numa récita em benefício dos Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz, pisou, pela última vez, as tábuas do nosso palco…

domingo, 10 de outubro de 2010

Mais um pouco de história

Lancemos a vista sobre a bacia em que assenta Tavarede, povoação que é hoje objecto de infundamentadas questões sobre a conveniencia de trazer por dentro d’ella a estrada districtal que ha de ligar-nos a Aveiro.

Analysemos primeiramente os montes que a rodeiam, as vias de communicação que encerra, as producções da agricultura do terreno que a forma, e com esse conjuncto de apreciações poderemos mais uma vez avaliar a razão de obrigar a um desvio o traçado ja estudado.

Tavarede está situada nu fundo da bacia em um vale profundo, apenas a quatro metros acima do nivel do mar, na direcção do poente ao nascente até á Cumieira, a serra da Boa-viagem.

Duas ramificações d’esta serra partem - uma do ponto da povoação da Serra, prolongando-se pelos Condados para o sul, até chegar ao logar do Senhor do Areeiro a 600 metros ao poente de Tavarede, onde termina limitando o horizonte d’essa povoação por este lado; - outra - partindo da mesma serra e na direcção de Cabanas, estende-se pelo Saltadouro, Prazo, Araujo, Cazal da Robala, e principiando a deprimir-se n’este ultimo ponto acaba na margem do Mondego, junto dos Estaleiros.

Um outro monte principia a elevar-se junto do logar do Senhor do Areeiro, continuando a ramificação da serra perdida n’aquelle ponto. A partir d’alli, o monte continúa por alguma distancia e divide-se depois em trez partes: uma que segue para o Sudoeste, e é aquella em que assenta a nossa egreja matriz; a outra, parallela a esta, é a base da rua da Lomba; a terceira, crescendo do Pinhal para a Sueste, assenta n’ella o casal da Lapa, indo depois perder o nome junto dos estaleiros.

A bacia em que assenta Tavarede, emmoldurada do norte, nascente e poente, pelos montes que designei, é aberta ao sul do lado onde passa o Mondego, a dois kilometros abaixo d’aquella povoação. Tem de comprimento, do norte a sul 2:500 metros, e de largura 700, sendo atravessada longitudinalmente por um ribeiro que recebe as aguas das vertentes da Serra da Boa-viagem, e do Saltadouro, e, passado á extremidade do lado do nascente de Tavarede, deslisando pela planicie abaixo, vae pela fonte da Varzea a desaguar no Mondego. No decurso do trajecto do ribeiro estão montadas trez azenhas. A bacia, é em grande parte destituida de terreno proprio para ser agricultado, a parte mais prozxima do rio é ocupada por marinhas de sal, cujas propriedades pertencem a individuos d’esta villa, e terá uma area de 150:000 m.q. Segue-se-lhe para o norte quasi outro tanto de superficie de terreno em parte apaúlado, e abandonado a pousio e á espontanea vegetação de juncaes. Mais para acima, - talvez não erre a estima - um terço da superficie total da bacia que envolve Tavarede serve ao cultivo de cereaes e productos hortenses, mas em tão pequena quantidade, que mal compensam o trabalho do lavrador, tanto que, os proprietários, na maior parte da Figueira, têm preferido trazer arrendadas essas terras a cultival-as por sua conta. Os rendeiros, não obstante correr por suas mãos todo o serviço do cultivo, tiram bem magros recursos d’esse trabalho, e tanto que uma grande parte d’elles, não podendo viver unicamente d’estes proventos, vem aqui empregar-se quasi todo o anno, prestando os seus serviços braçaes nos armazens de vinhos, como carreiros, ou em outros misteres.

Quasi toda aquella planicie possue para esta villa um magnifico caminho a mac-adam, que, partindo da proximidade da quinta do sr. dr. Borges, a quatro centos metros abaixo de Tavarede, vem para o sul, em volta, a encontrar a fonte da Varzea, e para diante d’aqui sobe a um alto onde se bifurca para o sul a encontrar a extremidade d’esta villa pelo lado do Matto, e para o poente vem encostado ao cemitério, a sahir do Pinhal.

A extremidade norte da bacia tem a boa estrada a mac-adam que de Tavarede vem á Figueira.

Além d’essas estradas existem ainda uns caminhos menos importantes; um d’elles tem origem na estrada da Varzea, apoia-se na vertente do monte que limita a bacia pelo poente, e segue áquella povoação. Esta é muito concorrida pela gente que se dirige á Figueira. Pelo lado do sul temos a estrada dos Estaleiros, por onde é feito o serviço das marinhas que há n’aquelle local.

Ahi deixo esboçada a região que deverá servir de base a qualquer argumento material, attinente a querer forçar o traçado a passar por Tavarede.
(Este apontamento foi retirado de uma extensa notícia, publicada no jornal 'Gazeta da Figueira' e da autoria de Ernesto Fernandes Tomás, sobre o projecto para a construção na nova estrada Figueira da Foz - Aveiro, a chamada Estrada de Mira)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

TEATRO - UMA OBRA QUE DIGNIFICA


Em Tavarede, modesta aldeia da beira,
ensina-se Teatro!


Para quem descreia da existência dum fogo sagrado, constante e generoso que lute através de todas as contigências e de todas as dificuldades por uma ideia digna e firme do verdadeiro sentido da Arte teatral, ponha os olhos e o cérebro em Tavarede, terra pobre, perdida na Beira pobre.
Esse agregado beirão tem uma associação cultural e recreativa, a Sociedade de Instrução Tavaredense, fundada em 1904 e desde essa data lançada na maravilhosa missão de cultivar e difundir a cultura dos seus próprios associados.
Chega a pasmar como é possível manter-se uma obra duma projecção tão elevada e tão nobre num meio insuficiente, cheio de asperezas da sua condição geográfica e humana.
Desde há trinta anos que um homem de tenacidade e têmpera fora do vulgar, José da Silva Ribeiro, mantém um grupo cénico, na referida Sociedade. Esse grupo, com um reportório vastíssimo do qual indicamos, como representativos exemplos do critério de selecção “A Nossa Casa” de George Mitchel, “Recompensa” e “Três Gerações” de Ramada Curto, “Envelhecer” de Marcelino Mesquita, os Autos de “Mofina Mendes”, da “Barca do Inferno”, “Pastoril Português” e “Todo o Mundo e Ninguém” de Gil Vicente, “Horizonte” de Manuel Frederico Pressler, “A Herança” de Henrique Lopes de Mendonça, esse Grupo, repetimos, vem cumprindo tenazmente e com sacrifícios de vária ordem o programa do seu entusiástico orientador. Como a aldeia é pequena bem poucas são as famílias que não têm representação no agrupamento de amadores. E assim a ideia nascida num momento inspirado de amor pelos outros foi-se invertendo no espírito daqueles trabalhadores do campo e das oficinas, naqueles rapazes e raparigas, operários e cavadores, modistas e empregados de escritório, carpinteiros, serralheiros e pedreiros que ao cair da noite, de corpo cansado pelo trabalho vão alimentar o espírito porque eles não se limitam a decorar as deixas dos seus “papéis” e recitá-los no momento oportuno com maior ou menor ênfase. Procura José da Silva Ribeiro que eles não sejam “fantoches para divertir o público”, como tão bem nos transmite no prefácio duma sua peça ali representada, mas que “tomem a consciência das respectivas personagens, dos sentimentos que lhes são alma, das ideias que as determinam, da época em que vivem, do ambiente em que se movem”. E assim, o grupo cénico tem uma actividade misturada de disciplina escolar e de prazer de passatempo. Suponhamos que foi escolhido para uma próxima apresentação o Auto da Barca do Inferno. À assembleia de actores amadores, ávida de conhecimentos, será exposta a obra vicentina, a época em que viveu o fundador do teatro português, a paisagem humana e social da corte de D. Manuel e de D. João III. Procurar-se-á na bibliografia correspondente o auxílio para uma melhor compreensão. E durante os ensaios os comparsas do auto não terão ùnicamente a preocupação de assimilar o contexto. Há sim uma posição inteligente e culta perante o problema que os seus lábios, os seus gestos e a sua expressão irão desenrolar no palco da aldeia.
Tudo isto é conseguido em tom de palestra, à medida que as peças vão sendo ensaiadas, sem ar de lição que decerto se tornaria insuportável para aqueles homens e mulheres de corpo cansado pelo trabalho mas de alma iluminada pela luz duma arte bem compreendida e ainda melhor ensinada.
De vez em quando são organizados programas de carácter acentuadamente cultural. Como exemplo, um programa já realizado com muito êxito e denominado “Noite do Teatro Português”: I Parte - teatro hierático - Auto da Barca do Inferno; II Parte - teatro romântico - 2º. acto da Morgadinha de Valflor; III Parte - teatro realista - 3º. acto de “Entre Giestas”.
Essas peças quando representadas no teatrinho da Sede obtêm receitas insignificantes que raramente pagam as despesas. E o Grupo, depois de apresentadas aos sócios, leva-as à Figueira da Foz procurando assim obter receitas que cubram as despesas de montagem.
É uma luta constante, uma luta nobre e velha de trinta anos.
A aldeia de Tavarede tem uma obra que dignifica não só os seus conterrâneos como o mundo teatral português. Uma Obra que se traduz não só em representações conscientes de verdadeiro Teatro como em palestras culturais e educativas feitas pelo director cénico.
Já foram abordados assuntos de interesse fundamental na cultura da arte de representar. As origens e evolução do Teatro (o teatro grego, em Roma, o drama religioso da Idade Média, a Renascença), o Teatro Português, as Trilogias Dramáticas (a trilogia ligada de Ésquilo - Oréstia, a Trilogia das Barcas de Gil Vicente, a Trilogia de O’Neill “Electra e os Fantasmas”) a Imortalidade do Teatro, tudo foi descrito em dissertações simples, acessíveis ao meio e sempre acolhidas com um entusiasmo que dá vontade de continuar, feliz e convicto de que quando se quer Teatro não é necessário muito dinheiro, muito público e muita cultura. É necessário, sim, defender e criar nos outros a convicção de que o espírito precisa de Teatro como alimento e não como pura distracção. E só assim se pode conseguir esse maravilhoso milagre teatral de Tavarede, lição puríssima e desassombrada da Arte pela Cultura dos povos.
Ainda há pouco no teatrinho da S.I.T. subiu à cena uma fantasia em três actos e 24 quadros de José da Silva Ribeiro, com música de António Simões, denominada “Chá de Limonete”. Essa fantasia que é a história singela da aldeia desde a sua fundação até aos nossos dias, foi montada a preceito, com cenários e guarda-roupa inteiramente novos, num esforço gigantesco que testemunha a vontade indómita e o admirável caminho seguido pelos amadores de Tavarede. Num livro de excelente apresentação gráfica e fotográfica do acontecimento, tivemos o prazer de constatar até que ponto o amor pelas coisas teatrais está espalhado naquele rincão da Beira. E comparando com o que por cá se passa, fazendo a proporção entre as centenas de Tavarede e os muito milhares de Lisboa fica-nos no cérebro o clarão duma Obra que dignifica, reconhecida não só pelo seu público como por diversas associações humanitárias por ela protegidas em diversas representações de beneficência.
E nós, como verdadeiros amantes do verdadeiro Teatro, daqui dizemos, orgulhosos em ajudar a transmitir a sua mensagem: operários e modistas, cavadores e ceifeiras de Tavarede, homens e mulheres dessa aldeia, reduto duma Arte Eterna, obrigado!


Jornal Magazine da Mulher - Novembro de 1951