sábado, 29 de dezembro de 2012

O Associativismo na Terra do Limonete - 4


As primeiras notas do Associativismo


 Terceiro Conde de Tavarede, fundador do Teatro Duque de Saldanha
  
         O ano de 1865 é aquele que, posteriormente, Ernesto Tomás nos descreve a visita que fez a Tavarede. É mais ou menos a data em que se iniciaram, na Figueira da Foz, publicações de jornais locais, em que começam a surgir notícias dos seus correspondentes nas diversas freguesias. Nota-se, ao longo dos anos, que, relativamente à nossa terra, ocasiões há em que abundam as notas enviadas pelos correspondentes locais, alternando com outros períodos em que escasseiam ou não há mesmo quaisquer novidades da nossa terra. Mesmo a maioria das locais publicadas, embora tenham algum interesse para a história próximo passada, pouco se referem ao assunto que estamos a tratar.

         Mas, escasseando-nos as notícias da imprensa, vamos ainda recorrer a Ernesto Tomás para mais umas notas sobre o teatro na nossa aldeia que, no período entre 1865/1868, trazia à nossa terra “uma troupe de rapazes d’aqui (Figueira), que até nas mais caliginosas noutes de inverno, tinha a coragem de ir a Tavarede, a um teatro ou a um presépio”. E aproveitemos para ler a descrição que nos deixou de um espectáculo a que assistiu:

         Estava vae não vae a levantar o panno. Os rapazes da Figueira, tendo invadido o palco, graças á bonhomia da companhia dramatica, deixem lhe chamar assim, trataram de collocar-se á primeira voz nos papeis de contra-regra, carpinteiros de urdimento, etc., etc.,. Os que haviam de entrar em scena estavam a estas horas reunidos em um telheiro que a casa do theatro tinha ligado pelo lado de traz. Estavam á beira do supplicio, de umas rugas feitas a ferro quente no rosto, que, depois, era afogueado mediante a despeza d’uma forte pintura a tinta nova. Rompia o espectaculo com uma comedia que se bem nos recorda se intitulava - Os dois rivaes - que nos dava em exhibição no principio um velho vegete, enamorado d’uma creada, fresca e rosada, que tentava a carne mais aphatica.

         O papel de velho havia sido distribuido a Jozé do Ignacio, de quem fallámos ha pouco, e que, appareceu em scena risonho a mostrar-se á rapaziada da Figueira. Ainda o panno não havia subido e na plateia o fóra, fóra, fóra, ribombava atroador soltado por dezenas de gargantas tonificadas pelo bom sol e bom ar dos campos. De subito ouviu-se uma voz: - Panno acima! A rapaziada da Figueira pespegou com o Jozé do Ignacio dentro de um caixão (cousa da peça) o qual, depois iria subindo, puxado pela creada namorada, que assim o subtrahia ás vistas dos amos que eram peticegos.

         Mettido no esconderijo e sem mais preambulos, panno acima, elle ia subindo, subindo, e o caixão dando balanços desencontrados, fazia com que o Ignacio pensasse mais do que uma vez que a comedia descambaria em tragedia. Gargalhadas e mais gargalhadas da plateia, ditos, assobios - um inferno; - e lá dentro clamava voz em grito: - panno abaixo! panno abaixo! panno abaixo! Caiu o panno. Sabidas as contas, todo este desastre scenico não foi mais do que uma partida que antes havia sido combinada entre a troupe da Figueira.

         Efectivamente, em todos os jornais figueirenses publicados e a que tivemos acesso, a primeira notícia sobre associativismo encontrada, tem a data de 21 de Outubro de 1877, no jornal “Correspondência da Figueira”, e refere que “Em Tavarede houve ontem à noite uma récita dada por alguns curiosos da localidade. Subiu à cena o “Último Acto”, do sr. Camilo Castelo Branco, e uma comédia”. Nada mais, nem sequer o local ou a associação que promoveu o espectáculo.

         Só cerca de ano e meio depois encontramos nova notícia sobre o tema. É no mesmo jornal, em Fevereiro de 1879 e diz: “No próximo sábado, dia 15, duas sociedades de curiosos da localidade tencionam dar, cada uma em seu respectivo soi-disant teatro, duas récitas. Uma das sociedades, a sociedade antiga, leva à cena o drama em 3 actos “A escravatura branca”; a outra, a sociedade nova, representa o drama em dois actos intitulado “Cravos e Rosas”, a comédia em um acto “Mulher por duas horas” e a comédia “Mulher que perde as ligas” também num acto.

         Nós aplaudimos sinceramente esta ideia dalguns rapazes daquela localidade. Sempre é melhor ouvir a declamação de uma peça de teatro por um actor gauché e o desempenho comprometido de uma actriz de aldeia, de que dizer bisbilhotices por casas alheias e a gastar a dignidade por tabernas imundas. Honra pois àquela gente de Tavarede que, apesar de não conhecerem as doces caturras da bisca-sueca e as impressões melancólicas da leitura de um romance reles, nem por isso tentam passar menos sensaboronamente estas longas e tristes noites de Inverno.

         Em todo o caso, sempre rogamos ao digníssimo administrador deste concelho para que dê as providências necessárias para se não dar, durante as representações, algum conflito desagradável entre os curiosos da plateia dos referidos teatros”.

         Esta nota sugere-nos dois comentários. Primeiro, não sabemos qual era a sociedade antiga ou a sociedade nova.  Inclinamo-nos, embora sem qualquer confirmação, para que a sociedade antiga fosse na Casa do Terreiro e a sociedade nova, no Palácio dos Condes de Tavarede. No entanto, também não excluímos a hipótese de uma delas estar instalada no velho teatrinho que Joaquim Águas construiu na sua casa na Rua Direita. Segundo, a notícia dá a entender a possibilidade de desacatos entre os assistentes. Seriam rivalidades artísticas ou associativas? Não nos podemos esquecer que, poucos anos depois, o Governador Civil do distrito mandou fechar uma “associação” em Tavarede, devido às constantes desordens que nela se verificavam.

sábado, 22 de dezembro de 2012

O Associativismo em Tavarede - 3


As Sociedades Dramáticas

 Joaquim Alves Fernandes Águas

         Estamos situados no ano de 1865. É interessante recordar que, naquela época, o Associativismo era oficialmente regulado pelo Código Penal de 1852, no qual o artigo 282º. estabelecia: “Toda a associação de mais de 20 pessoas, ainda mesmo divididas em secções de menor número, que, sem preceder autorização do governo com as condições que ele julgar convenientes, se reunir para tratar de assuntos religiosos, políticos, literários ou de qualquer outra natureza, será dissolvida; e os que a dirigirem ou administrarem serão punidos com prisão de um mês a seis meses. Os outros membros serão punidos com prisão até um mês”.

         Ora, com tais disposições em vigor, seria possível existirem, em Tavarede, “sociedades dramáticas”, legalmente constituídas e que aqui “vegetavam como tortulhos? A resposta só poderá ser negativa. Tratar-se-ia, isso sim, de pequenas “sociedades familiares”, que se reuniam nalgumas casas, especialmente nas de famílias mais abastadas, para passarem os seus serões, principalmente nas grandes noites do Outono e do Inverno e que, tendo adquirido o gosto pelo teatro e pela música, aproveitavam os seus tempos de descanso para conviverem nos ensaios, procurando, ao mesmo tempo, instruírem-se e divertirem-se, instruindo e divertindo os seus conterrâneos que assistiam aos espectáculos que apresentavam.

         Mestre José Ribeiro, no seu livro “50 Anos ao Serviço do Povo”, publicado aquando as “Bodas de Ouro” da Sociedade de Instrução Tavaredense, a páginas 22, escreve: “Pudemos apurar que funcionaram teatros, onde se representaram peças que fizeram correr rios de lágrimas e provocaram indigestões de gargalhadas, nos seguintes locais: “na Casa do Paço, do lado do caminho para a Figueira; depois, na mesma casa, no teatro ali mandado construir pelo último Conde de Tavarede; na casa que foi de Romana Cruz, na Rua Direita, à entrada da povoação; na casa onde hoje vivem, a meio da Rua Direita, os herdeiros de Martinho Correia; na casa chamada do Ferreira, logo adiante mas do lado oposto (casa que pertenceu a António Cordeiro); na de Joaquim Águas, pai do velho capitão José Joaquim Alves Fernandes Águas, em frente do anterior, prédio em que mais tarde esteve o Grupo Musical Tavaredense; na casa, também na Rua Direita, que foi de João da Silva Cascão; e na então chamada Casa de Ourão, no Largo do Terreiro, o mesmo edifício que João José da Costa mandou transformar no teatro hoje propriedade e sede da Sociedade de Instrução Tavaredense”.

         É credível que mais algumas houvessem. Recordemos que Aníbal Cruz, tavaredense estudioso da história da sua terra e jornalista, deixou escrita a informação de que sua avó lhe contava que, no tempo dela, chegaram a representar-se em Tavarede, em simultâneo e sempre com casa cheia, seis Presépios!

         Agora, é a ocasião de explicar o que eram essas associações e as salas de teatro. Vamos dar a palavra, mais uma vez, a Ernesto Tomás:
        
“… A plateia, que para aproveitamento de maior número de espectadores havia sido construída em forma de palanque, era engendrada por umas tábuas manhosamente pregadas nuns cunhos de madeira e estes, por sua vez, da mesma forma ligados a uns postes de madeira inclinados contra a parede.

         O pano de boca, qualquer colcha, de chita, de padrão em labirinto vermelho. A iluminação fazia-se por meio das clássicas velas de sebo espetadas em palmatórias de pau. Ria-se, vozeava-se e fumava-se na plateia, com a sem-cerimónia de ajuntamento numa feira.          De vez em quando, um dito picaresco, saído de alguns dos espectadores, ia provocar a hilaridade ruidosa dos mais sérios, e tudo ria desalmadamente, sem respeito pelo cabo d’ordes, o António José, que assistia àquela inferneira aprumando desmesuradamente a sua autoridade tão sobranceira como a sua figura, de pouco menos de três côvados de alto.

         Lá dentro, no palco, desenvolvia-se um vai e vem, entretido pela família dos actores, das actrizes e pelos intrusos, bem capaz de causar vertigens às constituições menos dadas à sensibilidade. Uma flauta que nos produzia nos nervos arranhos de gato, conjuntamente com um violão despertando dobre a finados, e uma viola, gemendo sob uma unha afeita à enxada, constituía por inteiro o que então se apelidava de a Roquestra…”.

         Esta casa de teatro estava instalada na acima descrita “Casa do Ferreira”, actualmente propriedade do nosso amigo Manuel Lontro, e a descrição refere-se a um espectáculo no ano de 1865. A sala de teatro, ou associação dramática, já era, no entanto, mais antiga.

         Mas nós temos também mais informações sobre aqueles anos. Por exemplo, no ano anterior, ou seja em 1864, Joaquim Alves Fernandes Águas, fundador da conhecida Casa Águas, na Figueira da Foz, ainda residia com sua família em Tavarede, pois só se mudaram da nossa terra para a Figueira dois ou três anos depois. Exerceu vários cargos administrativos e era muito respeitado por todos os seus conterrâneos. Amigo de divertir-se, um “Presépio” (costume velho em Tavarede) era o cúmulo de seus divertimentos. “Em uma das casas que já apontámos, lá instalou um teatrinho seu, cerca do ano de 1864, em que ele, filhos e filhas entravam, representando, e o que é melhor é que mulheres representavam de homens e vice-versa”. Isto confirma a nossa opinião de que as tais sociedades dramáticas eram reuniões familiares. Como curiosidade, recordemos uma nota escrita sobre um dos espectáculos ali dados naquela época.
   
“… A costumada troupe de rapazes da Figueira estava no seu posto de espectador. Alguns rapazes dela ocupavam-se em ajudar, tocando numa orquestra adrede arranjada para satisfazer às exigências do espectáculo.    Na casa velha, vestiam-se as figuras e preparava-se o mise-en-scéne; na casa nova, havia o palco e a plateia, e a comunicação duma para outra era feita por uma porta que dava para o fundo do palco. Havia-se esgotado o reportório do presepe e ia entrar em cena a comédia “O marido vítima das modas”.

A propósito do “Presépio”, tradição tão antiga em Tavarede e na Figueira, encontrámos uma notícia, sobre esta peça, no jornal ‘O Conimbricence’, de Janeiro de 1867, a propósito de representações na Figueira, referindo-se a nota especialmente a uma representação num teatro sito ao Pinhal das Águas: … Nesta época do Natal nota-se sempre nesta vila um certo bulício e entusiasmo com os presépios, que ordinariamente aqui é costume fazerem-se em número de um, dois, três ou mais, conforme os rapazes e raparigas, que para tal fim se agrupam em maior ou menos número, tendo sempre em todas as noites em que se representam as variadas cenas pastoris, alegóricas ao nascimento de Cristo, grande concorrência de espectadores; pena é que os diferentes papéis escritos em verso já completamente estropiado, sem metrificação, e com alguns até em linguagem chocarreira, e pouco decentes, não sejam substituidos por outros correctos, ou mesmo por uma prosa bem escrita, pois que o acto histórico-religioso exigia e devia tornar-se mais decente e respeitoso; tempo virá e breve, talvez, em que isso se consiga

         Os rapazes da Figueira encarregaram-se da mudança do cenário, mas, para fazerem uma partida ao velho Águas e rirem-se no fim, colocaram os bastidores em sentido inverso, isto é, de pernas para o ar.      Tudo pronto… Pano acima…

         Ninguém havia reparado no desarranjo do cenário, mas o velho Águas, que, sentado na plateia, acompanhava passo a passo as fases do espectáculo, tendo reparado gritou: - Vá o pano abaixo!... pano abaixo!... E foi.

         Dirigiu-se lá dentro à casa velha, zangado, fulo de raiva, e fez-nos uma apeporação tão apimentada que não era para rir, faltando pouco para que todos os rapazes da Figueira fossem postos no meio da rua. Mantivemo-nos, contudo, um pouco mais sérios, rectificando no nosso espírito a ideia que formávamos do nosso velho Águas: de que ele estava sempre pronto a aturar-nos rapaziadas e a rir-se delas.       Daí por diante teríamos de pensar que, dentro do seu teatrinho, nos deveríamos portar com o aprumo da seriedade, com toda a correcção de espectador gommé, aliás… rua!”.
        
Já temos, portanto, conhecimento do que eram as associações dramáticas em Tavarede, apercebendo-nos que era o teatro que tinha maior preferência da população, embora a música também tivesse o início da sua prática, com a participação de figueirenses, embora ainda muito rudimentar.

         Acompanhemos agora a evolução do associativismo em Tavarede a partir daquelas datas.

sábado, 15 de dezembro de 2012

O Associativismo na Terra do Limonete - 2



Os princípios do associativismo
  
         Vamos, agora, tentar explicar as razões que nos levam a apontar o início do associativismo na nossa terra para aqueles recuados tempos. Como todos nos recordamos, Tavarede foi palco, durante cerca de dois séculos e meio, de violentas quezílias entre o Cabido da Sé de Coimbra, a quem o Rei D. Sancho I fizera doação do Couto de S. Martinho de Tavarede, no ano de 1191, e a poderosa família Quadros, aqui radicada desde o ano de 1522, quando D. João III nomeou António Fernandes de Quadros Juiz das Sisas de Tavarede, concedendo-lhe largos privilégios, alguns dos quais bastante penosos para o nosso povo e dos quais aqueles fidalgos usaram e abusaram largamente.

         Há, também, a possibilidade dos Quadros já viverem no Couto de Tavarede, alguns anos antes, nomeadamente seus pais e irmão mais velho, Aires, pois existem registos de que este último era possuidor de algumas propriedades na nossa terra, as quais foram adquiridas por seu irmão, após a sua morte, na Índia, sem deixar descendentes.
        
Até ao ano de 1771, ano em que foi mudada a Câmara de Tavarede para a Figueira da Foz do Mondego, então elevada a vila e da qual Tavarede passou a estar dependente, não acreditamos que fosse possível haver aqui qualquer espécie de associativismo, ainda que de forma muito rudimentar, tal era o receio que os habitantes tinham dos fidalgos, a quem qualquer reunião seria suspeita de conspiração contra o seu poderio. Bastará recordar que, por exemplo, um dos privilégios dos fidalgos Quadros mais vexatórios para o povo, era o chamado da “poia”, que interditava qualquer tavaredense ou figueirense a que tivesse, dentro de sua casa, forno para cozer broa, assar carnes e, até, para assar qualquer fruta ainda verde e que o vento tivesse atirado ao chão.

No seu trabalho sobre a mudança da Câmara de Tavarede para a Figueira, o Dr. Rocha Madahil, baseado em documentos encontrados nos arquivos da Sé de Coimbra, refere “que fazendo algumas pessoas fornos para cozer pão em suas casas, lhes tem entrado pelas portas dentro acompanhado de seus criados e valentões e lhos derrubam e desfazem…”. Mas não julguemos que só os fidalgos é que tinham destes privilégios opressores. Não nos esqueçamos da visita anual do Deão da Sé de Coimbra e do célebre jantar, ou colheita, que estes povos tinham a obrigação de fornecer. Além de dinheiro, carneiros, cabritos, pão, ovos, vinho e outros géneros alimentares, lenha e temperos, tinham que fornecer “um quarteirão farto de cevada”, o que levou o Dr. Santos Rocha a dizer, ironicamente, que o Deão comia cevada! Mas não, a cevada era para as bestas de transporte.

Reforçando o que acima referimos quanto aos fidalgos tavaredenses, vamos buscar, à exposição que, nos princípios da segunda metade do século dezoito, o Cabido da Sé de Coimbra mandou ao Rei D. José I, a pedir a transferência da câmara de Tavarede para o lugar da Figueira da foz do Mondego, com o objectivo de acabar com o poderio e abusos dos morgados de Tavarede, o seguinte retalho: … e o mesmo fez em Maiorca, onde de noite foi ver uma comédia que se fazia em uma casa de Bernardo da Cunha, saindo com o seu capelão e mais pessoas de sua comitiva, segundo o uso e costume, com armas defesas, quis meter o festejo à bulha e descompôr o dito Bernardo da Cunha, que se não usara da sua prudência certamente o matariam, pois já iam com ânimo disso

Duas conclusões se podem tirar desta nota. Uma, a de que já na segunda metade do século dezoito (isto por volta de 1750) se fazia teatro em Maiorca; outra, a de que com tais ‘senhores’, de certeza que em Tavarede não se atreveriam a isso.

         Admitindo, assim, que o associativismo em Tavarede só terá sido possível depois daqueles recuados tempos, impõe-se uma pergunta: como seria esse associativismo?

         Fazendo uma breve passagem ao passado, logo ficaremos a saber que, naquela época, as associações existentes eram de classes, ou melhor dizendo, eram associações corporativas. Estas, desde tempos bem longínquos que existiam, tinham como fim a defesa de determinadas classes, profissionais ou religiosas, que se agrupavam para lutarem pelos seus interesses perante o poder estabelecido. Não eram, portanto, as associações culturais e recreativas a que nos estamos reportando. Estas, as associações de cultura popular e recreio, terão surgido no último quartel do século dezoito, quando os povos, influenciados pela célebre trilogia “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, que os ventos da Revolução Francesa e da Independência da América do Norte espalharam por toda a parte. Foi a partir de então que, apercebendo-se da necessidade da socialização e da instrução, os povos passaram a agrupar-se e a associar-se para busca duma cultura que até então lhes estava praticamente interdita.

         Regressemos à nossa terra. Em Dezembro de 1791, a décima Senhora de Tavarede, neta do célebre e famigerado Fernando Gomes de Quadros, talvez o maior opressor do povo tavaredense, casou com um ilustre e muito culto fidalgo, D. Francisco de Almada e Mendonça, que, enquanto governador da cidade do Porto e de várias províncias nortenhas, foi um grande protector das artes, nomeadamente da ópera, teatro, dança e música, mandando construir, do seu bolso, o conhecido Teatro de S. João, no Porto, onde fez representar as melhores companhias nacionais e estrangeiras, principalmente italianas.
        
Deste fidalgo, que passava largas temporadas em Tavarede, ficou a tradição de ser grande amigo e protector das nossas gentes. Acreditamos, por isso, que terá sido D. Francisco de Almada e Mendonça e sua esposa, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa, quem terão incentivado, aos nossos antepassados, o gosto pelo associativismo e pelo teatro.

         Admitamos que terá sido assim. A única certeza que existe é que, no ano de 1865, existiam em Tavarede várias sociedades dramáticas onde se fazia teatro já com muita fama. As datas até parecem coincidir. D. Francisco de Almada faleceu no ano de 1804 e D. Antónia Madalena em 1835. E para representar, com um nível aceitável, certamente que já se representava em Tavarede haveria algumas décadas. 





sábado, 8 de dezembro de 2012

O Associativismo na Terra do Limonete - 1


  
             Em Tavarede…

                … as sociedades dramáticas vegetavam como tortulhos!



 

Tavarede de outros tempos…


         “… o José do Ignácio, havia sido também, em outro tempo, uma parte obrigatória em todas as sociedades dramáticas, que vegetavam em Tavarede como tortulhos…”.
        
Ernesto Fernandes Tomás, jornalista figueirense, nascido em 1848 e falecido em 1902, escreveu e publicou no jornal “Gazeta da Figueira”, ao longo do ano de 1896, uma extensa e descritiva reportagem, recordando as visitas que ele, acompanhado de um grupo de rapazes seus amigos, fez a Tavarede no ano de 1865, para assistir a “uns teatros” que aqui se representavam.
        
É bastante curiosa a frase acima citada dizendo que “as sociedades dramáticas vegetavam em Tavarede como tortulhos”. Aliás, e para quem se interesse por conhecer como era a vida dos tavaredenses nos meados do século dezanove, aconselhamos a leitura daquela reportagem, pois, além de nos descrever o que eram, naqueles tempos, as associações e o teatro que faziam, narra-nos, de forma assaz interessante e curiosa, variadíssimos aspectos da nossa aldeia, descreve-nos figuras e famílias que aqui conheceu e com quem conviveu, bem como nos relata vários aspectos da vida de trabalho dos tavaredenses, da religião e até alguns edifícios daquela recuada época, em especial capelas que existiram em Tavarede e que nós já não conhecemos, contando-nos, também, algumas histórias antigas de pessoas e factos que fizeram parte da história da “terra do limonete”.
        
Depois de percorrermos toda a imprensa figueirense disponível na Biblioteca Municipal da Figueira da Foz, é aquela reportagem a primeira notícia encontrada que se refere ao associativismo em Tavarede, na década de 1860 / 1870. A ela recorreremos em abundância neste pequeno caderno, no qual temos a intenção de descrever, com todos os elementos disponíveis, a carreira do associativismo na nossa terra e a importância que teve no desenvolvimento cultural e educativo dos nossos antepassados.

         Bem sabemos que há muita coisa escrita sobre este tema. Nós próprios, desde sempre interessados no assunto, já o temos feito, em livros publicados, em cadernos diversos e em notícias e histórias escritas na imprensa figueirense e, ultimamente, no blogue ‘Tavarede – A terra de meus avós’, onde vamos publicando várias histórias e historietas, umas mais antigas, enquanto outras mais modernas e actuais. Natural é, portanto, que se encontrem, neste trabalho, muitíssimas notas e informações já conhecidas daqueles que leram algo do acima referido, bem como outras publicações de pessoas bem mais sabedoras e conhecedoras do que nós, nomeadamente Mestre José da Silva Ribeiro, João de Oliveira Coelho, Manuel Cardoso Martha, António dos Santos Rocha, António Vítor Guerra e alguns mais, cujos trabalhos se encontram dispersos em diversos jornais, revistas e livros.
        
A nossa ideia é elaborar mais um caderno sobre a nossa terra, no qual, por ordem, cronológica de datas, seguiremos o associativismo em Tavarede. Não temos pretensões de deixar um trabalho sem falhas. Elas surgirão naturalmente. Os elementos recolhidos na imprensa local, em diversos livros e nos arquivos tavaredenses, estão muito incompletos. O que pretendemos, porém, é reunir e descrever, com todo o material disponível, o aparecimento e o seguimento do associativismo em Tavarede.

         Ora, fazendo fé na reportagem de Ernesto Tomás, se em 1865 se representavam, na nossa terra, comédias, dramas e, até, o “Presépio”, que deixou muita fama, teremos de concluir que para se atingir o alto nível que levava muitas pessoas da Figueira a irem a Tavarede para assistir aos espectáculos, até nas noites mais invernosas, o teatro, que certamente teria boa qualidade ou, pelo menos, bastante razoável, já se praticaria na nossa terra há algumas décadas. Podemos, até, situar, sem cair em grande erro, o princípio do associativismo em Tavarede nos princípios da primeira década do século dezanove, ou, talvez com mais realismo, na última década do século dezoito.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Teatro da S.I.T. - Notas e Críticas - 56 (fim)


2003.01.30     -     ANIVERSÁRIO DA SIT (O DEVER)

                Integrada nas cmemorações do 99º aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT) iniciadas em 11 de Janeiro e que tiveram o seu momento alto na Sessão Solene realizada no passado dia 19, acto muito prejudicado pelo mau tempo que afastou muitos ds habituais frequentadores, realizou-se neste último sábado mais uma noite de teatro com a representação das peças “O Velho da Horta” (de Gil Vicente) e “Páginas Arrancadas” (de Luís Francisco Rebello), “duas peças portuguesas distantes no tempo cerca de 500 anos, que nos remetem para dois mundos diferentes, o riso e o choro, o cómico e o trágico lado a lado, o teatro nas suas duas grandes vertentes”, duas escolas de representação, numa demonstração inequívoca de que em Tavarede a arte de representar está preparada para os desafios dos mais evoluidos conceitos do novo teatro.
                Ninguém ignora que Gil Vicente se tornara “pessoa de família” no Teatro de Tavarede onde o saudoso Mestre José Ribeiro o “chamava a palco” sempre que era preciso dar uma lição, genuína, de bem o representar. Desde Violinda Medina, que na “pele” de Maria Parda ganhou jus, a nível nacional, à honrosa distinção de melhor intérprete daquela figura no nosso país, a muitos outros nomes grandes da Escola de Tavarede que serviram de modelo até a grupos profissionais.
                Com este “Velho a Horta” voltou agora ao de cima o virtuosismo herdado da escola de Mestre José Ribeiro com a interpretação superior de Rogério Neves a mostrar-nos um velho à medida de Gil Vicente, genuinamente à século XVI, até na naturalidade do uso das roupagens, gestos e salameques tão característicos da idade média, interpretação modelar só ao alcance de um amador de excepção a um nível que qualquer profissional não enjeitaria. Peça onde os restantes intervenientes mostraram a arte e o talento de emprestar ao enredo o “sal” que contribuiu para o sucesso – traduzido em muitos aplausos da assistência! – deste “O Velho da Horta”, transplantado, com mestria, do original.
                Gil Vicente não poderá estar ausente do centenário, a comemorar no próximo ano, nem a deixar de coabitar o palco centenário por muitos mais anos.
                Preenchendo a 2ª parte do espectáculo, a peça de Luiz Francisco Rebello, “Páginas Arrancadas” é um “psico drama” de outra concepção de teatro, assente num diálogo mais intelectualizado e de aproveitamento político em que os personagens se duplicam num jogo de mudanças de situação em que os meios técnicos assumem um papel fundamental – caso de mudanças de cena através de jogo de luzes, espelhos e transparências, sem necessidade do tradicional descer do pano ou mudanças de cenários, particularidade a exigir muitos conhecimentos técnicos e grande eficiência dos bastidores (palmas para os responsáveis por tão melindrosa operação!) – e sobretudo, a nível de encenação e direcção de cena, pela forma como souberam dar resposta às exigências desta nova metodologia de teatro de vanguarda, um teatro diferente a quem muitos apontam o dedo como responsável pela menor afluência de pessoas ao teatro.
                É por isso que queremos deixar aqui um aceno de muito apreço pela coragem de Ilda Simões e Fernando José Romeiro (encenadora e director de cena) pelo alto risco que correram ao apresentar uma peça de tão difícil “digestão” e a forma meritória como souberam “dar a volta ao texto”. Graças, sem dúvida, ao traquejo invulgar das “três estrelas da companhia” – os consagrados José Medina, Fernando Romeiro e António Barbosa – pela sagacidade como souberam tornear a “intelectualidade” dos textos atribuidos aos Jorge 1, Jorge 2 e Cristóvão, classe que constituíu a chave que “deu a volta” àquele complicado “registo psidodramático”, graças também à preciosa prestação de serviços dos restantes figurantes, com destaque para o “mau da fita” (Toni) a quem coube a “fava” de uma intervenção “chocante” com selo de “palavrão” tão característico do tal teatro de vanguarda mas que ele soube “adoçar” com um bom desempenho.
                Não fôra o talento destes amadores de fina água e talvez esta peça de “risco” não tivesse a aceitação que teve.

2003.01.31     -     TAVAREDE TEM T DE TEATRO (O FIGUEIRENSE)

                Desta vez os amantes de Teatro de Tavarede prepararam, laboriosamente, para apresentar aos que gostam de teatro “O Velho da Horta”, de Gil Vicente, e “Páginas Arrancadas”, de Luís Francisco Rebelo, um nosso contemporâneo. Voltámos a ver com muito gosto esta peça tipicamente vicentina em que os gestos, as momices e as carantonhas superam por vezes o português arcaico falado e agitam a assistência como aconteceu, mas não perturbou o arredondado intérprete do velho hortelão, que já quase dedilha a preceitoo “alaúde” com que a certa altura se “acompanha”, e que foi sempre muito bem secundado pelos colegas e, particularmente, pela enérgica e bem falante que “da vida” a Branca Gil.
                A peça de Luís Francisco Rebelo apresenta-nos algum vanguardismo na cena simples mas criativa, sem o cenário de aspecto tradicional e com um mínimo de adereços, apoiada em alguns efeitos sonoros e luminosos. Começa de forma inesperada e alertante ou chocante para o espectador e leva-nos a um passado não muito distante, que pode ferir algumas sensibilidades conservadoras ou frustradas, mas respeitáveis, recorrendo, uma ou outra vez, em momentos que não nos pareceram despropositados nem excessivos, ao uso de algumas expressões melindrosas, focando um tema que anda na berlinda e que aqui não desvendamos, mas achamos bem retratado e fixador da atenção dos espectadores como nos foi possível constatar.
                Embora não conheçamos o texto, achámos o psicodrama de Francisco Rebelo muito bem montado e bem representado, com mais preocupação na dicção do que nos gestos ou nas marcações, e pareceu-nos também que os artifícios usados com a luz, o sm e os painéis semi-transparentes foram soluções enriquecedoras da peça sem dificultarem a sua compreensão. A terminar, e sem nos metermos em apreciações que envolvam critérios de valor, permitam-nos expressar aqui o nosso agrado – nada mais do que isso – quanto as interpretações de Fernando Romeiro (Jorge 2 / A voz da consciência do personagem principal) e, muito especialmente, a de Valdemar Cruz num Tony muito convicente, ainda que pouco trabalhoso.

2003.04.03     -     PÁGINAS ARRANCADAS (A VOZ DA FIGUEIRA)

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                E logo aconteceu teatro. Os amadores da Sociedade de Instrução Tavaredense subiram ao palco do Testro Trindade (União Futebol de Buarcos) e representaram o psicodrama em um acto “Páginas arrancadas”, autoria de Luís Francisco Rebelo. Esta é a estória de ajuste de contas de um homem com a sua própria consciência. Aos 60 anos, Jorge é confrontado com o próprio “eu” quando tinha 20 anos. O jovem idealista e apaixonado vem pedir-lhe contas pela forma como viveu os últimos 40 anos de vida. Prova-lhe que “não é possível esquecer” o passado. Esta é, também, uma forma de levar o público a pensar no que de bom ou mau tem feito ao longo da vida. E é justamente esta uma das funções do teatro: levar as pessoas a pensar na vida, em todos os seus aspectos, positivos ou negativos.



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