terça-feira, 30 de agosto de 2011

Os Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro - 3



A ESCOLA PRIMÁRIA

É muito curioso o facto de, sendo Tavarede sede de concelho, com sua câmara e justiças, por mais de setecentos anos, tenha sido, depois de elevada a Figueira da Foz do Mondego a vila, a última freguesia deste concelho a receber a instalação de uma escola primária oficial.

No ano de 1892 encontrámos a seguinte notícia: "Sendo presente o processo da criação de uma escola mista de ensino primário na freguesia de Tavarede, concelho da Figueira da Foz, enviado a esta comissão pelo sr. governador civil, para os fins designados na portaria de 20 de Setembro de 1892(?), resolveu responder: 1º que não consta do mesmo processo estar satisfeito o disposto no nº 3º do ofício do ministério do reino de 7 de Abril de 1885; 2º que as circunstâncias financeiras daquele município não consentem por enquanto aumento de despesas (sessão da comissão executiva de 22 de Março)".

Não havia dinheiro, portanto não havia escola. Mas já havia muito tempo que se pedia a escola, pois o povo tavaredense sentia a necessidade da instrução. " Desde 1889 que por parte de alguns beneméritos vizinhos de Tavarede se fazem baldados esforços afim de alcançar para a localidade o provimento duma cadeira de instrução primária. Parece incrível que se regateiem aplausos e auxílio a tão útil tentativa. Bastará lembrar, para fazer reconhecer a urgente necessidade da criação daquela cadeira que na freguesia existem, segundo o recenseamento de 1890 e 1891, aproximadamente 600 crianças na idade escolar, e que, ou não frequentam a aula mais próxima (Figueira), ou têm de caminhar diariamente, para isso, mais dos 3 quilómetros regulamentares.

Não podemos, por isso, senão elogiar a actual junta de paróquia, como merecem todas as que, directa ou indirectamente, hão contribuído no mesmo sentido, fazendo votos porque afinal se resolvam a aceder, nas regiões superiores, a de pronto deferir o que há tanto tempo se lhes pede com inegável justiça".

Quer dizer, os tavaredenses, na sua maioria vivendo do seu árduo trabalho na agricultura, não provendo de recursos económicos que lhes permitissem mandar os seus filhos aprender a ler e a escrever na vizinha cidade, e antes necessitando deles para os trabalhos nas suas terras, eram analfabetos e analfabetos ficavam os seus filhos. Para trabalhar com a enxada não era necessário saber ler nem escrever.

Alguns, poucos, com algumas pequenas disponibilidades financeiras lá mandavam os seus filhos à Figueira. Outros, ainda, trabalhando na cidade em qualquer emprego, como trabalhadores braçais, por exemplo, aproveitavam para frequentar a escola depois do trabalho, na escola oficial ou em escolas particulares que então haviam. Eram esses, que aprendiam as primeiras letras que melhor se apercebiam da falta de uma escola em Tavarede e que mais insistiam pela sua criação.

Em Abril de 1895, paroquiava esta paróquia havia pouco tempo, o padre Joaquim da Costa e Silva, que dispunha de grande influência política, chegando a ser, posteriormente, vereador da Câmara Municipal, promoveu mais uma iniciativa para a criação de uma escola de instrução primária para a sua freguesia, "a qual é a única deste concelho que não tem uma escola oficial!". Que se saiba, naquele tempo não existia na terra do limonete nem escola oficial nem particular...

O último recenseamento das crianças em idade escolar atestara que aqui havia mais de 800 crianças "que poderiam receber a benéfica luz da instrução. Nestas condições, têm direito os povos daquela freguesia à instrução dos seus filhos, e por isso é de crer que os esforços do digno pároco de Tavarede sejam coroados do melhor êxito e que o governo atenda aos legítimos interesses daqueles povos, dando-lhes a instrução necessária, sem o que não haverá cidadãos prestantes e úteis".

Até que, em reunião camarária, foi deliberado prover e tomar a seu cargo a casa para a escola mista e de habitação do professor de Tavarede. E, em Março de 1896, "na primeira reunião do conselho superior de instrução pública deve ser aprovada a criação de uma escola mista na freguesia de Tavarede, deste concelho, há tempo requerida pela Câmara Municipal e em harmonia com o decreto de 27 de Junho de 1895", escrevia num jornal figueirense o seu correspondente na nossa terra.

Em Abril de 1896, e depois de se noticiar a próxima publicação no Diário do Governo do decreto para a criação da escola mista em Tavarede, o jornal "O Povo da Figueira" escrevia: "Com um melhoramento importante acaba de ser dotada esta povoação devendo-se a iniciativa dele em primeiro lugar ao reverendo vigário desta freguesia, sr. Joaquim da Costa e Silva, que mostrou mais uma vez o seu interesse por tudo quanto reverte em benefício da sua paróquia; e em segundo lugar ao sr. dr. José dos Santos Pereira Jardim, deputado às cortes, por tomar na devida consideração a petição que para tal fim lhe foi apresentada pelo mesmo reverendo vigário.

Refiro-me à escola mista que em breve vai ser estabelecida nesta localidade, onde as crianças podem receber gratuitamente a luz da instrução.

Os chefes de família que avaliam bem as dificuldades que lhes têm surgido até hoje para a educação intelectual de seus filhos, devem mostrar-se reconhecidos para com aqueles que desinteressadamente pugnam pelos melhoramentos desta terra. São dignos, pois, de todos os encómios o reverendo vigário pela reconhecida boa vontade com que zela os interesses dos seus paroquianos, e o sr. dr. José Jardim pelos esforços que empregou junto ao governo, para em tão pouco espaço de tempo conseguir, lutando com bastantes dificuldades, a criação da mesma escola, instituição esta de grande importância e incontestável utilidade para Tavarede.

Não é esta a nossa terra natal, mas temos aqui o nosso domicílio; por conseguinte sentimos como todos os tavaredenses verdadeiro e natural regozijo quando alguma coisa se faça em prol desta terra.

Foi na segunda-feira passada que o reverendo vigário recebeu do sr. dr. José Jardim, directamente de Lisboa, a notícia de ter sido criada a referida escola; por este motivo, foi aquele sr. cumprimentado à noite pela “Estudantina Recreio Tavaredense”. Afinal, tinha demorado, mas até meteu música...




D. Maria Amália de Carvalho, a primeira professora oficial de Tavarede. (desenho de João Nunes da Silva Proa, exposto na biblioteca da SIT)

No dia 16 de Janeiro de 1897, o corresponde local da "Gazeta da Figueira" informa que "está já funcionando a escola mista de Tavarede, para a qual tinha há tempos sido nomeada professora a srª. D. Maria Amália de Carvalho, inteligente filha do sr. Inácio Pereira de Carvalho. É já quase de 40 o número de crianças matriculadas na referida escola, e por esta frequência se vê a necessidade que havia ali da sua instituição".

Funcionava esta escola numa sala da casa que a Câmara havia alugado no chamado Largo do Forno, que, actualmente, tem o nome daquela ilustre professora. Eram mínimas as condições disponíveis para a escola. "... deliberado arrendar por 20$000 reis a casa onde se acha instalada a escola de ensino de Tavarede, pertencente a João Duarte Silva, devendo principiar a contar-se o arrendamento desta a data da instalação da mesma escola.

Em Abril de 1899, surgia a seguinte notícia: "A srª D. Maria Amália de Carvalho, digna professora da povoação de Tavarede, ofereceu na passada segunda feira – dia da merenda grande – uma soirée familiar, que decorreu animadíssima entre despretensioso convívio, até perto da uma hora da madrugada.



O sr. A. Rodrigues recitou o monólogo em verso “O Terrível”, entre francas gargalhadas, sendo também bastante palmeado o sr. A. Proa nas suas cartas de magia.
Durante o baile esteve tocando, sob a direcção do sr. João Proa, um quinteto que muito agradou. De tarde estivera ali executando algumas músicas a “Troupe Gounod”, sendo-lhe oferecido um abundante copo de água".

Em Julho daquele ano " Pela licença de 30 dias que por motivo de doença foi concedida à exma. srª D. Maria Amália de Carvalho, professora da escola primária desta localidade, fica fechada esta escola até fins de Setembro próximo, pois que ao terminar aquela licença entraremos daí a poucos dias neste mês, que geralmente é feriado para os professores oficiais. Calcule-se por isso o atraso que vão sofrer os numerosos alunos frequentadores da nossa escola, sendo de mais a mais quase todos ainda crianças, e que durante este tempo em que não há aulas vão esquecer tudo o que têm aprendido à custa dos esforços que a sua hábil professora tem empregado para os ilustrar, esforços que são atestados por muitas crianças a quem temos ouvido ler desenvolvidamente. Nada mais justo do que ter-se atendido ao pedido da srª D. Amália de Carvalho, mas também nada mais justo se faria do que nomear-se outra pessoa para a substituir no seu impedimento, obstando-se assim a uma falta que todos são unânimes em apontar. A quem competir rogamos se digne interessar pelo caso".

Mas a escola ficou fechada durante o impedimento da professora. Entretanto, na sociedade recreativa instalada na casa do Terreiro, onde o sr. João José da Costa, da Quinta dos Condados, havia mandado fazer um teatro, o seu herdeiro, João dos Santos, e o dr. Manuel Gomes Cruz, ainda estudante de Direito, em Coimbra, haviam





Dr. Manuel Gomes Cruz – fundador da escola nocturna da Sociedade de Instrução Tavaredense

instalado uma escola nocturna, que passou a ser frequentada por grande número de alunos, tanto adultos como crianças. Enquanto a escola oficial esteve encerrada por quaisquer motivos, muitas das crianças recorriam à escola nocturna. A escola do Terreiro funcionou até ao ano de 1942 e, além dela, também as outras colectividades locais e a Igreja mantiveram, por vários anos, aulas nocturnas de instrução, que retiraram da ignorância muitos analfabetos que, doutra forma, não teriam possibilidades de aprenderem os princípios básicos da instrução primária. Há notícias, também, de alguns particulares que em suas casas e nos tempos disponíveis prestavam, graciosamente, ensinamento aos seus conterrâneos.
No ano seguinte (1930), e no dia da merenda grande, novamente houve festa das crianças. Eis a notícia. " Ontem, ao início da tarde, quis-nos parecer que os nossos vizinhos figueirenses tinham julgado ser dia de S. João cá na parvónia. Por essas estradas além viam-se ranchos e ranchos de pessoas, e aqui na povoação passavam igualmente muitos outros com cestos enfeitados de verdura e flores e recheados de saborosos petiscos, que iam manducar à sombra de árvores dispersas por aí fora. Não era porém dia de S. João, mas sim o da festejada merenda grande, tão suspirado por todos os operários que até Setembro gozam 2 horas de sesta. Tavarede oferecia-nos mais um tom de quem estava em festa, do que a sua aparência habitual de monótona pacatez. Um grande cortejo de meninas e meninos, alunos da nossa escola elementar, conduzindo cestos caprichosamente engrinaldados de flores, percorreram muitas ruas da localidade. À noite a exma. srª. D. Maria Amália de Carvalho, sua inteligente professora, reuniu em sua casa muitas meninas suas discípulas e outras das suas relações, e ali estiveram em animado convívio até perto da meia noite".

Como se observa, nestes dias não eram só as crianças que folgavam. Bem nos recorda quando íamos para o pinhal dos Quatro Caminhos merendar ou, como acontecia com frequência, para a Sinceira, fazenda nos nossos avós, na Chã. E isto já passados muitos anos, pois a tradição manteve-se até cerca da década de 1960/1970.

Mas não era fácil, nem para as crianças nem para a professora. Além disso, a insuficiência da capacidade da escola era enorme relativamente ao número de crianças em idade escolar. É certo que, apesar da obrigatoriedade dos pais mandarem à escola os filhos com idade entre os 6 e os 12 anos, muitos os não faziam. O facto dos filhos lhes fazerem falta nos seus trabalhos de amanho das terras, levava-os a não fazerem caso do estabelecido legalmente. Vejamos, por exemplo, esta nota publicada em Outubro de 1902.

“Lá de quando em vez, de um ou outro jornal, surge-nos um grito de alma generosa implorando que seja cumprida rigorosamente a disposição do ensino obrigatório, que há dezenas de anos faz parte da lei que rege os serviços da instrucção primária em Portugal. Mas esses gritos da imprensa, como muitos outros que solta e são de índole a beneficiar o país e o povo, perdem-se sempre no espírito do leitor, sem que se veja adoptar qualquer medida tendente a melhorar a situação lastimável em que muitas terras se debatem, enxameadas como estão de um avultado número de analfabetos...

Que importa, pois, vir a Gazeta, no seu último número, pedir que a lei se cumpra, e que à sombra dela se obriguem todos os pais a mandar educar os filhos dos 6 aos 12 anos? Sim, de que lhe serve o fazer considerações gemebundas, o falar nas estatísticas que nos apontam milhares e milhares de ignorantes que vivem por esse país além, e o frisar o facto da lei ser calcada e desrespeitada por quem a devia cumprir? Isso nada preocupa os nossos dirigentes, nada abala os funcionários a quem pesa o serviço da instrução pública, e tudo há-de ir caminhando como até hoje, no meio do indiferentismo daqueles que não ouvem os protestos da imprensa e certamente não lêem a disposição da lei sobre o ensino obrigatório – a parte que, na verdade, mais lhes deveria merecer cuidadosa atenção.

Aqui mesmo, na freguesia de Tavarede, apesar de ser das terras onde, há uns anos a esta parte, mais se tem cuidado da instrucção, existem ainda muitas crianças de 6 a 12 anos, completamente analfabetas, e que têm por escola a vadiagem ou o trabalho forçado de um dia inteiro, na serventia de pedreiros, no serviço da agricultura ou em outros misteres rudes a que se dedicam durante toda a existência, sem que ao menos cheguem a conhecer os simples caracteres do Abc. E depois, há ainda pais que, quase por favor, mandam os filhos ou à escola oficial ou à nocturna – que também é gratuita – mas, talvez resultado dos seus obscuros princípios de educação, pouco lhes importa averiguar qual o seu estado de adiantamento, qual o seu comportamento, e, muito especialmente, qual a sua frequência. E, neste desleixo tão condenatório para alguns chefes de família, vão os filhos recebendo uma educação medíocre, quando tenham má frequência ou não obedeçam às imposições dos respectivos professores.

Desde que da parte dos pais não haja o natural cuidado de vigiar a educação dos filhos, e desde que por sua vez não empreguem os esforços para os levar ao bom caminho da escola, é sabido que os resultados da instrucção no nosso meio são sempre improfícuos, e infrutífero o trabalho insano de quem amorosamente se dedica a desenvolver o intelecto desses entes que amanhã serão os nossos homens. Eis porque mais necessário se torna o cumprimento da lei do ensino obrigatório. Muita gente objectará que há crianças pobres que, pelo menos, dos 10 aos 12 anos, bastante auxiliam os pais com o produto do seu labor, e que, obrigá-las a frequentar a escola durante aquele tempo, seria dificultar-lhe ainda mais as tristes condições em que vivem. Ora, se por um lado devemos ter em vista estas considerações, devemos também, acima de tudo, compreender que há o dever moral de educar as crianças convenientemente, para que elas mais tarde, quando raciocinem, não tenham que acusar os pais dessa falta, como por mais de uma vez temos visto fazer.

As escolas oficial e nocturna abriram há dias, e as suas frequências atingem já, na primeira, um número de 29 meninas e 14 rapazes, e na segunda 36 alunos menores e maiores de 12 anos. Como se vê, estes algarismos são bem elucidativos e demonstram claramente o interesse que a instrução vai tendo aqui, o que é caso para nos convencer de que há por cá muitas crianças analfabetas e alguns pais que pouco se preocupam com a educação dos filhos... Simplesmente triste!...”.

Pois, segundo um levantamento feito pelo padre Manuel Vicente e pela professora D. Maria Amália, o número de crianças de 6 a 12 anos, existentes na freguesia, era de 252.

Concluia-se, portanto, que uma escola mista e uma só professora, era insuficiente para as necessidades da freguesia. E foi baseado nos elementos acima, que a Junta da Paróquia de Tavarede resolveu enviar uma petição ao inspector de Instrução Primária do distrito de Coimbra, solicitando a criação de uma escola primária para o sexo masculino na freguesia. Os meses foram passando, o número de crianças em idade escolar aumentava, mas nem resposta receberam à petição.

Em Agosto de 1903, o sub-inspector de instrução primária no círculo da Figueira, fez distribuir, pelos presidentes das comissões recenseadoras de cada freguesia, uma circular onde se podia ler: “... combater o analfabetismo existente no nosso meio social é um dos principais fins da nova lei de instrução primária... … para consecução deste fim nobilíssimo entendeu o legislador ser necessária a obrigatoriedade do ensino primário...”. Logo se pensou que, para cumprimento da lei, Tavarede iria ver atendida a sua pretensão de mais uma escola.

Mas passados uns meses, surge, em Abril de 1904, nova notícia sobre o assunto. “A Câmara Municipal da Figueira, respondendo a um ofício em que o sub-inspector da 2ª circunscrição escolar lhe solicitava o seu parecer sobre a criação de uma escola para o sexo masculino em Tavarede e conversão da escola mista existente em escola do sexo feminino, conforme o pedido feito há tempo pela junta de paróquia desta freguesia, diz que não concorda com o pedido dessa junta. Acreditem os senhores vereadores que não nos surpreendeu a sua resolução. Dizemo-lo com sinceridade. Profetisámo-la sempre, desde que começámos a tratar do assunto, apesar de ser de todo o ponto justo um favorável deferimento.

Não está na nossa índole ferir ninguém nem levantar discussões que disponham mal os ânimos – seja contra quem for; por isso não queremos servir-nos da imprensa para dizer o muito a que o assunto se presta. A câmara não concorda com a conversão da escola mista em escola do sexo feminino e com a criação de uma escola para o sexo masculino. Está no seu direito, assim como nós estamos no direito de não concordar com a sua resolução, que achamos de um verdadeiro contrasenso...”

Foram muitas as reacções a esta posição camarária. Só transcrevemos uma para exemplo: “Numa carta da Figueira para o nosso colega de Coimbra, o Tribuno Popular, lemos o seguinte a propósito da criação da escola para Tavarede: “Um nosso amigo, de quem respeitamos a anonimato, publicou há dias num bi-semanário da terra um artigo que muito apreciámos, verberando violentamente o inqualificável procedimento da câmara, que tem a audácia de dizer que não concorda com o estabelecimento duma escola primária em Tavarede, onde há uma única professora de ensino misto, a mais das vezes doente, sem forças para os encargos que exige a educação de tantos necessitados do pão do espírito, como abundam naquele lugar. É revoltante que a câmara, tendo à sua frente um homem que se diz ilustrado, nos saia cinicamente a dizer sem justificação alguma, ex cathedra, que – não concorda com a fundação duma escola que se impõe inadiável, quando tanto dinheiro se desperdiça em inutilidades! Magister dixit!”

Os anos foram rolando, mas, a respeito de nova escola, não se falava. De vez em quanto uma ou outra notícia lembrava o facto, mas as entidades oficiais continuavam surdos a estas notícias.

Em Março de 1911, a professora D. Maria Amália de Carvalho foi promovida à 1ª. Classe. “São relevantes os serviços que esta freguesia lhe deve pela assiduidade e interesse que toma pelo desenvolvimento dos seus alunos”.

Finalmente, em Março de 1913, o Governo Civil “mandou fazer ciente à junta de paróquia de Tavarede de que, sem perda de tempo, elabore uma representação ao ministério do interior, pela direcção geral da instrução primária, indicando qual o plano do edifício escolar que pretende construir para os dois sexos, local, etc., em Tavarede”. Mas, já então, as coisas andavam muito de vagar. Passados dois anos, a Câmara resolve perguntar ao Inspector escolar se pode ser nomeado um professor para reger a cadeira mista de Tavarede e, no caso negativo, se esta escola poderá ser dividida, lecionando então um professor as crianças do sexo masculino”. Mas, quanto ao novo edifício, nada.

Entretanto, e como a professora D. Maria Amália fora transferida, a Câmara nomeou professora da escola mista de Tavarede a senhora D. Maria José Martins dos Santos. Em Agosto de 1915, um leitor interessado, escreveu a um jornal figueirense uma carta, onde, entre outros casos, apresentava este: “= É triste... A nossa terra, que é bastante populosa, tem uma escola mista que nem o maior esforço duma professora pode bem reger em vitude das circunstâncias de frequência. Entendamo-nos! Não é – saibam-no todos! – qualquer insinuação que queiramos arremessar á ilustrada professora. Pelo contrário: s.exª é bastante digna e competente, mas o trabalho é que é demasiado para uma senhora. Queremos com isto afirmar que se torna necessário o desdobramento da escola mista para satisfazer assim a aspiração dos tavaredenses. E depois há mais: temos a residência onde a professora vive e administra a instrução às crianças que é imprópria, principalmente no inverno, para habitação e em especial para casa escolar! Faça se um edifício próprio – Tavarede também paga contribuições ao Estado!”.

Até que, em Abril de 1916, a desejada notícia chegou. “ A nossa linda e querida terra, segundo nos dizem, vai ter em breve um edificio escolar, pois que o governo da República acaba de contemplá-la com um subsidio e as dignas Câmara Municipal e Junta de Paróquia auxiliarão o possível na sua construcção. Tavarede já há muitos anos vinha reclamando por este melhoramento importante, não só porque é uma freguesia onde a frequência escolar é bastante numerosa, mas também, e muito principalmente, porque a casa onde tem funcionado a escola é imprópria de servir, tanto para o ensino de crianças, que merecem todos os cuidados de higiene, como para a professora ali residente que tem estado à mercê do mau tempo e de qualquer doença grave.

A construção de um edifício escolar na nossa terra é uma necessidade e que de direito lhe pertence, porque Tavarede tem sido bastante esquecida pelos governantes que apenas desta aldeia se têm lembrado quando a máquina eleitoral principia a funcionar, e mesmo este povo laborioso – como todos os povos já beneficiados – paga contribuições (e não são tão pequenas como isso...), e cumpre fielmente os seus direitos a que as leis o obriga. O nosso regozijo é grande por ter chegado o dia de fazer-se justiça ao povo desta humilde freguesia! Foi tarde; mas nem por isso devemos deixar de nos sentir regozijados, porque pugnámos sempre desde que na Gazeta escrevemos, por este melhoramento que é sem dúvida um alto benefício para a nossa pobre terra.

Aproveitamos a ocasião de discordar em absoluto pela escolha do local onde se tenciona fazer a construção do edificio. Já uma vez, conversando com o ilustre membro da Câmara Municipal e nosso amigo sr. José da Silva Fonseca, manifestámos o nosso descontentamento, porque falava-se então já em o edificio escolar ser feito num terreno húmido junto ao pequeno largo da igreja, terreno impróprio para qualquer casa, especialmente por causa da época invernosa e dissemos a s.exª que o melhor local era os terrenos junto á estrada que vai do largo do Terreiro ao Peso, porque ali ficava bem situada, segundo opiniões autorizadas, pelas condições higiénicas, pelo terreno magnifico e suficiente para se construir uma boa escola com um vasto jardim, com todos os requisitos que a escola moderna exige, e como também, daquele ponto, se goza um panorama soberbo e deslumbrante.

Já não sucede tanto com o terreno que me dizem querer escolher para esse fim, pois que é insuficiente em tudo: - não serve, já pela sua pequenez, para construir um edificio próprio para uma escola com um jardim e parque de recreio e é bastante húmido, com um ribeiro próximo onde fazem despejos de imundícies e sem qualquer condição digna de ser recomendado. Mais uma vez apresentamos a nossa opinião como dedicado pugnador deste melhoramento e oxalá que quem a seu cargo tem a escolha do terreno pondere bem para que se faça uma obra proveitosa digna do fim a que se destina. Assim o desejamos”.

Começou nova polémica, a escolha do local para a construção. Mas logo o abastado capitalista Manuel da Silva Jordão, morador nos Carritos, ofereceu a quantia de 50$00 para a compra do terreno. E a Junta da Paróquia resolveu que a escola não seria feita no caminho do Peso, nem no Largo da Igreja. Iria, sim, para o Senhor do Arieiro. E a Câmara aprovou o orçamento de 1.030$00 para a execução da obra. Continuavam uns a insistir no caminho do Pezo como o sitio ideal. Mas a Junta da Paróquia, respondendo à Câmara, insistiu no Senhor do Arieiro, porque “os carretos estavam caros, e alí, por estar perto do forno da telha e do tijolo, ficaria mais económico o fornecimento duma e doutro para a obra!...”.

Vieram cá os responsáveis camarários pela obra para tratar da escolha do lugar. Concordaram que a escola ficava melhor situada no caminho do Pezo. O sr. João dos Santos, por sinal o proprietário deste terreno, ofereceu 100$00 (que a Câmara lhe devia) para a obra. Mas, estava decidido. A escola seria construída ao Senhor do Arieiro. E, em Março de 1917, principiaram a abrir os respectivos alicerces. Convém dizer que a Junta da Paróquia também havia ponderado fazer o edifício na Chã, nuns baldios que ali haviam. Surgiram novas reclamações, pois o local escolhido em definitivo, em vez de ficar num local mais ou menos central, ficava mais distante, o que prejudicava os alunos. “às crianças dos lugares mais distantes fica vedada a instrução durante a maior parte do inverno, pois não é com o mau tempo que elas se hão-de meter ao caminho, muitas das vezes mal agasalhadas e pior alimentadas”.

Mas, passados dois meses, as obras pararam. “Estará a Câmara já arrependida de fazer ali a escola, de cometer tão grande asneira?”. Mas as obras lá prosseguiram. Em Outubro de 1917 o correspondente local de um periódico diz “já vejo a telhagem quase completa, demais a mais de telha lá de cima, da fábrica da Pampilhosa, daquela telha amarelinha... É caro, mas... é outro asseio”. Então a fábrica do Senhor do Arieiro não era mais perto? Entretanto, mais um ano escolar começava a funcionar na velha escola do Largo do Forno.

O edifício foi aprovado em Dezembro daquele ano. Mas, em Abril seguinte, ainda faltavam os acabamentos, por falta de verba. Passado um ano o edifício começava a degradar-se, especialmente o telhado, ao qual o temporal havia arrancado algumas telhas, passando a chover dentro do edifício. Em Abril de 1919, a Câmara oficiou ao inspector escolar para que, junto do ministério respectivo, consiga o desdobramento da escola mista. E neste mesmo mês, foi criada, nos Carritos, uma escola para o sexo feminino.

A escola continuava fechada, para as crianças, mas “é tal o abandono a que foi votado o interminável edifício da nova escola que ao domingo os negociantes de gado suíno, à medida que o vão comprando na feira que ali próximo se realiza, espetam com os inocentinhos... na escola!!”. Mas, em Novembro de 1920, “Está, finalmente, funcionando no novo edifício a escola mista desta localidade. O novo edifício não está ainda completamente concluído, faltando-lhe a escadaria da entrada principal, bem como a vedação e retretes. Todavia, atendendo a que a casa onde a escola funcionava, que era alugada, precisa grande reparação, pois tem o telhado quase a abater, foi um óptimo serviço conseguir-se que no corrente ano lectivo a escola começasse funcionando no novo edifício.

Foto actual do edifício da escola primária

É justo que se diga que para isso muito contribuiu o vereador da Câmara e nosso amigo sr. João dos Santos, que não largou o assunto de mão sem o ver resolvido, sendo também para louvar a boa vontade dos membros da Junta de Freguesia, que se não pouparam a esforços. O estado do material escolar, mobilia, etc., é verdadeiramente lastimável. Não será fácil encontrar em qualquer outra escola do concelho miséria maior! Porque é uma autêntica miséria! Chamamos para o caso a atenção da digna junta escolar”. Registe-se que, em reunião da Câmara, o presidente (dr. Cerqueira da Rocha) oferece os seus vencimentos como administrador do concelho, para serem entregues ao vereador (João dos Santos) com o fim de adquirir material escolar para a escola de Tavarede.

Vai longa a história da escola primária sita aos Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro. E muito ainda haveria a contar mas já chega. A escola começou a funcionar e lá se mantém. Por quanto tempo mais é que não sei.


Mais uma foto da escola actual

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

José Ribeiro e Maurício Pinto

Bem andou a Câmara Municipal da Figueira da Foz, ao evocar na terça-feira da semana passada, dia 21 de Agosto, a passagem do 1º Centenário do Nascimento desse ilustre figueirense, que foi Maurício Pinto.


Essa evocação constou de uma exposição biblo-biográfica na Biblioteca Municipal, e de uma sessão solene no auditório do Museu, em que erfa orador oficial mestre José Ribeiro.


Na mesa de honra tomaram assento as seguintes entidades: governador civil do Distrito, de. Santana Maia; drª Maria Manuela Lacerda Pinto e drª Maria Judite Abreu Pinto, filhas do homenageado; engº Manuel Alfredo Aguiar de Carvalho, presidente da Câmara; dr. José Manuel Leite, presidente da Assembleia Municipal; dr. Abílio Bastos e dr. Armando Garrido, vereadores do Yurismo e da Cultura, respectivamente; e o orador da sessão, José Ribeiro.


A abrir a sessão, o engº Aguiar de Carvalho proferiu as seguintes palavras:
“A par dos aspectos dimensionais do País, dos tão apregoados brandos costumes e da dificuldade sentida em atravessarmos este final de século, não tem sido célere, na nossa quotiidianidade, o aparecimento de situações marcadas pela exemplaridade.


Tem-se abandonado a metodologia em detrimento da desconexidade, a Filosofia dos princípios esbate-se nos condicionalismos semânticos do discurso, o acaso tem sido a pedra angular da nossa aparente determinística evolução.


Quando a inconsciência invade o tecido Social, quando a desculturização nos é apresentada como modernidade, temos a enorme responsabilidade de evitar que as futuras gerações nos atribuam o epíteto de vítimas das circunstâncias.


Retirada à História uma causalidade que, aliás, nunca possuiu, deixemos que se crie um TEMPO para investigarmos o nosso passado colectivo na detecção das virtualidades presentes.


Mais do que a simples comemoração de uma efeméride, o nosso encontro, hoje, aqui, permite a criação de um espaço onde serão evocados alguns aspectos mais significativos da vida desse digno e grande figueirense, verdadeiro paradigma das novas gerações, que foi Maurício Augusto Águas Pinto, feito por quem com ele privatizou, Mestre José Ribeiro.


Minhas senhoras, meus senhores: é-me grato poder partilhar com todos vós, sem excepção, este momento.


Ouçamos, então, o nosso convidado”.


Mestre José Ribeiro, não obstante os seus 92 anos de idade, disse com o seu tradicional vigor, as seguintes palavras que são, ao mesmo tempo, uma bela peça literária que gostosamente arquivamos nas colunas do nosso jornal


Maurício Pinto era dotado de uma actividade infatigável, de um bairrismo esclarecido. A sua acção como Prfovedor da Santa Casa da Misericórdia da Figueira, durante anos, foi inesquecível. Grande figueirense e cidadão exemplar, Maurício Pinto oatenteou com o seu alto civismo, a sua bondade de coração e a generosidade da sua bolsa, sentimentos que foram nota dominante na sua actividade social.


O nosso espíirito exulta com a inteligência e a beleza que se associam no acto que ora relembramos: Em 1849 tinham sido abatidas na Mata da Misericórdia muitos centos de árvores para dar lugar a um campo de jogos. O Provedor Maurício Pinto tomou imediatamente a iniciativa da plantação de mais 5 497 árvores para compensar as abatidas.


Coração generoso, firme nos princípios da sai trilogia – Pátria, Liberdade, Família – Maurício Pinto foi um Homem íntegro, que sempre serviu e viveu fiel à Democracia.


Dominado por um esclarecido bairrismo, era seu pensamento e desejo que a época de verão da Figueira da Foz fosse aberta com uma “Feira da Figueira”.


Maurício Pinto foi um desportista entusiasta e prestigioso. Vimo-lo a dar prestigiosa presença às regatas no Mondego, quando antes de o nosso rio ter sido mandado “para a outra banda”, o Mondego vinha deslizar junto ao paredão arborizado da saudosa e risonha Avenida que Deus haja…


Maurício Pinto tinha um programa que o entusiasmava. Em seguida aos festejos populares do São João, deveria realizar-se uma feira moderna, com a duração de 15 dias. Entre outras atracções lembrava: uma exposição de produtos nacionais, diversões no género do Luna-Park, concursos de bandas, tunas, ranchos, cinema e representações ao ar livre pelas empresas dos teatros locais, arraial, fogos, etc..


Antes da inauguração oficial da Feira haverá um número de sensação, dos que estão agora muito em voga, por exemplo, uma reconstituição histórica que à Figueira dissesse respeito; um cortejo fluvial de pequenas fustas e galés empavezadas, descendo o Mondego, com D. Afonso Henriques e seu séquito, constituiria o maior e mais notável reclamo à Figueira.


Tornar-se-ia assim conhecido que o 1º Banhista categorizado da Figueira da Foz fora o nosso 1º Rei de Portugal – D. Afonso Henriques.


Maurício Pinto entusiasmava-se com o grandioso espectáculo do cortejo fluvial com o Rei e o seu brilhante séquito, acima de tudo com a presença do Rei D. Afonso Henriques como 1º Banhista no nosso Mar de S. Julião.


Em Coimbra, onde estava a Corte, o Rei sofria de melancolia, e então os médicos aconselharam a salutar viagem fluvial até ao mar de S. Julião. E, pois que estamos com as mãos na massa e já se avista lá em cima, na curva do rio, o real cortejo de fustas e galés empavesadas, transcrevamos da crónica respectiva o passo que segue:


“Sucedeu que estando El-Rei D. Afonso Henriques na cidade de Coimbra tão carregado de triunfos como de más disposições, se foi por conselho dos médicos ao lon go do Rio Mondego com ânimo de chegar à barra, onde se mete no Mar Oceano, que são algumas sete ou oito léguas da cidade, todas de campos e várzeas Formosíssimas; e como a visita e o alegre sítio dos campos tiraram a El-Rei parte da melancolia que levada, chegou ao Mar quase são, e detendo-se em recreação de rio e monte alguns dias, soube que perto daquele lugar estava uma ermida de Nossa Senhora desde há muitos anos perdida no meio de grandes brenhas, como está ainda hoje.
Tanto que El-Rei entrou dentro da ermida e se pôs de joelhos, logo a doença o deixou. Milagre do Mar de S. Julião, ou de Nossa Senhora de Ceiça…”


Foi enorme, ampla e em constante desenvolvimento a actividade de Maurício Pinto no capítulo TEATRO.


Como actor, pode dizer-se que não houve récita de amadores em que ele não participasse. Em todos os géneros foi intérprete de qualidade: na farsa, na comédia ligeira, na comédia dramática, na opereta… Teve, aliás, excelentes companheiros. Sempre à frente do elenco, a admirável amadora Emília Rodrigues Guilhermino, grande intérprete na opereta, poer era dotada de bem timbrada e extensa voz. Bons amadores a acompanharam: João da Encarnação Pestana Júnior, Manuel Daniel, Ferreira Pereira, etc.. Fez a sua estreia no teatro aos 17 anos. Brilhante. As suas representações para fins de beneficência foram em número muito elevado.


Maurício Pinto foi no teatro actor e também crítico compedtente. Escreveu muito sobre Teatro e no “Álbum Figueirense” admiráveis artigos e crónicas ali se publicaram. São notáveis os estudos de Maurício Pinto sobre os artistas: António Dias Guilhermino, um grande actor nascido em Maiorca, e que ali viveu; a genial actriz Ester de Carvalho, de Montemor-o-Velho e a notável amadora figueirense Emília Rodrigues Guilhermino.


A págimas 46 do muito valioso estudo “Aspectos da Figueira da Foz”, de Maurício Pinto e Raimundo Esteves, felizmente editado pela Comissão Municipal de Turismo em 1945, vêm reproduções em fotogravura dos dois brasões de armas da Figueira da Foz: o primeiro, que assentava sobre uma cruz de C risto, foi substituído pela Câmara Municipal devido a não representar devidamente a vida e a história da Figueira. O actual brasão de armas mostra um lugre de 3 mastros, de velas enfunadas, rodeado de 8 folhas de figueira. Se aquelasx 8 folhas de figueira ali estavam apenas como motivo ornamental, maior significado teriam 8 folhas de videira, até porque a videira seria de maior valor histórico. Mas… terá o nosso Pai Adão utilizado no paraíso uma folha de figueira? O caso é duvidoso.


Consultando alguma iconografia, vimos que, numa pintura de Mabuse, Adão parece realmente cobrir a sua nudez com uma folha de figueira.


Mas… Teria existido no burgo de S. Julião alguma ou algumas figueiras – das árvores que dão figos?


No valioso e pormenorizado estudo de Maurício Pinto e Raimundo Esteves há várias referências a figueiras. Citemo-las:


- Família de Coimbra que viriam veranear para a Figueira atracariam ao cais onde existiria uma figueira, e diriam: - “Vamos à Figueira da Foz! (do Mondego!);


- que, ao longo da velha estrada romana, passando pela Tocha, existiria uma estalagem famosa por ter à sua porta uma figueira colossal, com grandes ramarias que tombavam até ao solo e ofereciam às gentes e aos gados dos almocreves doces sombras para repastos calmos e sossegados descansos. A pousada praxista, a dormida, seria a “estalagem da Figueira”, a “venda” que tinha uma acolhedora figueira à porta”.


Tudo isto é… literatura… são histórias – não é História!


Segundo uns, a tal figueira teria existido no lugar das Lamas; segundo outros, no largo da praia da fonte, onde estava então a única fonte da Figueira. Ninguém afirma, ao certo, onde viu a tal figueira – dos figos… As 8 folhas de figueira em volta do navio estarão ali apenas como motivo ornamental e não para darem nome à Figueira da Foz do Mondego.


A propósito, pedimos licença para transcrever do notável estudo do Ten-coronel Strech Vasconcelos intitulado “A Figueira da Foz”, o seguinte muito elucidativo passo do estudo já publicado no “Álbum Figueirense”, vol. IV, nº 7, de Maio de 1940:


O nome geográfico “Figueira da Foz do Mondego” constitui um tríplice pleonasmo, como muitos dos que abundam na toponímia peninsular, devidos à circunstância de os muitos povos que em nossas terras viveram irem impondo aos acidentes do terreno os nomes por que na sua língua eram designados, conservando, porém, o nome que os povos anteriores lhes davam.


Assim, poer exemplo, Ria de Aveiro quer dizer duas vezes ria, em latim e em céltico, em que ave ou aue significa ria ou abundância de canais. Rio Guadiana significa rio, rio, rio, pois guad ou ouad é rio em árabe e ana o mesmo significa em língua púnica, fenícia e talvez céltica.


Ora, Figueira da Foz do Mondego, quer dizer Boca da boca da boca do rio, hoje chamado Mondego, pois figueira não vem da árvore que dá figos, mas de fagaria ou fagueira, abertura, boqueirão, golfo; foz vem do latim faux, abertura, boca, do radical grego fag, partir, quebrar, e o Mondego fracciona-se no germânico mund, boca, foz, e ac ou acqua, rio.


Se as 8 folhas de figueira que emolduram o navio do brasão da Figueira não têm outro significado para além do efeito ornamental, poderíamos então famntasiar, em volta do nosso lugre, 8 recortadas e muito ornamentais folhas de videira. Parece-nos até que sobre a folha da figueira a folha da videira nos oferece mais riqueza ornamental e também – o que é de com siderar – um valor histórico irrefragável.


O testamento do Abade Pedro não permite dúvidas quanto às vinhas que mandou plantar, cobrindo toda a encosta da Abadia de São Julião e descendo até às águas do Paul.


Quanto à folha de figueira que no Paraíso glorificou e imortalizou Adão, notemos que não se tratava apenas da nudez de Adão. A Bíblia esclarece:


“I Livro – GENESIS – Cap. 3º Verso 7º: - Então foram abertos os olhos de ambos e conheceram que estavam nus (Adão e Eva) e coseram folhas de figueira e fizeram para si aventais”.


A nudez dos dois não podia cobrir-se apenas com uma folha de figueira: cobriram-se com um peplos, manto ou fikep, palavra que foi depois traduzida por figueira (planta).


Sem pretendermos menosprezar a folha de figueira de Adão em favor da parra do Abade Pedro, seja-nos permitido lembrar o soneto de Frei Manuel de Santa Clara, cantor das parreiras de S. Martinho de Tavarede:


Descrição do sítio de Tavarede


Entre outeiros vestidos de verdura
Um vale gracioso à vista ocorre
Onde um claro ribeiro em giros corre
Banhando-o de eternal, grata frescura.

Quanto nele se avista obrou Natura;
Só um nobre palácio ali concorre
A mostrar que, subtil, o engenho acorre
À simétrica mão da Arquitectura.

Junto às casas e muros bracejando,
Verdes parreiras vão, entre a folhagem,
Seu roxo ou loiro fruto entremostrando.

E a Ceres ee a Pomona vassalagem
Rende este vale ameno, assem levando
Ao de Tempe famoso, alta vantagem.


Por alturas do S. João, de 1927, estava eu no Porto, em regime de descanso forçado. A pousada era na Rua do Heroísmo. Esqueci o número da porta, mas lembro-me de que aquela morada, em vez de número de polícia, tinha indicação de quatro letras maiúsculas: P.I.D.E. que se liam assim: PIDE.


Num exemplar da “Voz da Justiça”, que me veio ter às mãos, encontrei uma ligeira crónica assinada por António José da Silva, e era um excerto do livro que Maurício Pinto tinha em preparação – “Episódios nos Teatros e Presépios Figueirenses”. Aquele nome ocultava um pseudónimo: António José da Silva (O Judeu), o célebre comediógrafo das “Guerras do Alecrim e Mangerona”, “Esopeia”, “Encantos de Medeia”, “Anfitrião”, etc.


Certo dia bateram à porta de António José da Silva (O JudeuI): levaram-no preso com a mãe e a mulher e deixaram uma criança de 2 anos. A Inquisição queimou António José da Silva (O Judeu) em 19 de Outubro de 1739.


Àquela minha estância de repouso, em que eu continuava repousando obrigatoriamente, chegou a informação de que eu iria ter uma visita. Espantosa, surpreendente noticia! Era o meu querido amigo (O Judeu) que vinha deixar-me um presente! E que rico e admirável presente! Nem mais nem menos que os dois grossos volumes com a obra completa de MOLIÈRE (nada menos que 32 peças de teatro!).


Bem hajas, querido e genial MOLIÈRE, que com a tua companhia me ajudaste a vencer as horas longas daquele meu longo repouso forçado!”


Visivelmente emocionada, a filha de Maurício Pinto, drª Judite Mendes de Abreu, agradeceu a todas as entidades envolvidas neste acto evocativo, dizendo a certa altura que “neste mundo ain da há pessoas boas que não esquecem aqueles que em vida foram alguém”.


Na ocasião o presidente do Município fez a entrega do diploma que concede a Maurício Pinto a Medalha de Ouro de Cidadão Honorário e bem assim da medalha alusiva à efeméride, da autoria do inconfundível artista Zé Penicheiro.


(A Voz da Figueira - 30.8.1984)

Os Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro - 2



A FEIRA DOS QUATRO CAMINHOS

No jornal “Gazeta da Figueira”, de 17 de Abril de 1901, encontrámos a seguinte notícia: “Chega-nos aos ouvidos de que foi proibido fazer-se no Pinhal, dessa cidade, o antigo mercado de suínos que ali se efectuava todos os domingos, e cremos que se pensa agora em a continuar, mas aos quatro caminhos (Senhor da Arieira).

É boa a ideia, pois que, na verdade, a concorrência àquela feira, tanto de vendedores como de compradores, costuma ordinariamente ser feita por gente de Tavarede, Buarcos, Serra da Boa Viagem, Quiaios, Casal da Robala, etc, e por isso, estabelecendo-se naquele local o referido mercado, fica este decerto mais centralizado entre as povoações a que aludimos, e portanto mais comodidades se oferecem ao público.

Parece-nos que isto qualquer pessoa julga e apoia, e recomendamos o caso ao nosso pároco e vereador da câmara o sr. Costa e Silva, que com certeza tratará de conseguir que a feira ali se estabeleça, mostrando assim a sua boa vontade em promover qualquer serviço a bem dos munícipes daquelas localidades”.

Complementando a nota acima, publica dias depois, um extracto da acta da Câmara Municipal sobre a deliberação: “... deliberou a câmara, em virtude do dano que causa às árvores ultimamente plantadas no Largo do Pinhal desta cidade, a feira de gado suíno que ali costuma realizar-se, mudar o local da mesma feira um pouco mais para baixo, isto é, para os largos compreendidos entre as estradas do Casal do Mártir Santo à estrada real n° 49 e da Figueira ao Casal da Serra, mais conhecidos pelos largos do Senhor da Arieira”.

Dias depois é publicado um aviso informando que “por resolução da Câmara Municipal pode já funcionar ao Senhor da Arieira (quatro caminhos) a feira de gado suino que se costuma realizar todos os domingos ao Pinhal e que dali foi mudada para aquele local”.

A Junta de Paróquia de Tavarede, responsável pelo lugar onde estava a funcionar a feira, oficiou, entretanto, à Câmara Municipal “pedindo a vedação dum largo, ao Senhor da Arieira, para a realização das feiras de suínos, que se têm feito nas estradas que cruzam no mesmo local, impedindo o trânsito”. Esta petição, confirma o que já havia dito: naqueles tempos era um simples cruzamento de estradas.

Mesmo sem grandes condições, a comissão paroquial resolveu mandar terraplenar o local “onde aos domingos se faz o mercado de gado suíno” e arborizá-lo ao mesmo tempo. E a mesma notícia comenta que “é uma boa medida, pois evita o impedimento de trânsito nas estradas durante as horas do mercado, embelezando muito o local”.

Mas, como a Junta de Paróquia não tinha verba para a terraplenagem, solicitou à Câmara “o serviço braçal” para a terraplenagem “do terreno que lhe foi oferecido para ser apropriado à feira de gado suíno”.

Quem havia feito a oferta do terreno para a feira fôra a senhora D. Maria Duarte Costa, viúva de João José Costa, da Quinta dos Condados, quando teve conhecimento da mudança da feira para aquele local. Havia-o feito “há um ano!” Apesar da boa vontade em arranjar o local, uma notícia comenta que “dizem-nos que não será tão depressa terraplenado devido à Câmara se achar deveras atrapalhada com a organização do serviço braçal. Há um ano, senhores, há um ano que está organizado o serviço braçal das freguesias do concelho da Figueira... Que vergonha!...”.

Mas, em Agosto de 1912, já estava terraplenado metade do terreno para a feira. “Custou, mas foi...”.

Depois deste apontamento só em Janeiro de 1918 é que voltamos a ter notícia sobre o assunto. Numa descrição da freguesia de Tavarede, publicada no Anuário Figueirense, refere-se que “todos os domingos aqui se efectua um mercado de porcos”.





Feira de suínos (foto internet)

Até que, em Fevereiro de 1921, temos uma nova notícia: “Na sessão de quarta-feira da Comissão Executiva da Câmara Municipal foi lida uma representação assinada por vários indivíduos da freguesia de Tavarede, pedindo a criação de uma feira de gado bovino, suíno, caprino e azinino e cereais e géneros de várias espécies, a qual deverá realizar-se nos dias 1 de cada mês, no lugar do Senhor da Arieira. A mesma comissão pediu ainda que a feira semanal de gado suíno fôsse transferida para o dia 1 e terceiros domingos de cada mês. A Comissão Executiva deliberou criar a feira, atendendo esta petição”.


Uma feira de gado (foto internet)

Aprovada a petição, a Câmara Municipal fez publicar o seguinte edital: A Comissão Executiva da Câmara Municipal da Figueira da Foz:

“Faz público que em sua sessão de 2 do corrente mês, deliberou criar uma feira mensal no lugar da Arieira, freguesia de Tavarede, deste concelho, que terá lugar nos dias 1º de cada mês, e que constará de gado bovino, vacum, suíno e asinino, além de géneros de todas as qualidades e espécies, quinquilharias, fazendas, etc. Para constar se passou o presente e outros idênticos, que vão ser afixados nos lugares públicos do costume”.

A comissão organizadora marcou, então, o dia 1º. de Maio de 1921 para a inauguração da nova feira. “Inaugura-se no próximo dia 1º de Maio a feira mensal de gados, géneros e fazendas que ultimamente foi criada e que deve realizar-se todos os dias 1 de cada mês, no lugar do Senhor da Arieira, próximo de Tavarede.

Sabemos que a comissão organizadora desta feira está trabalhando com vontade para que no próximo dia 1º de Maio afluam ao Senhor da Arieira avultadas quantidades de géneros alimentícios, gado bovino, caprino, azinino, suíno e outros artigos, como quinquilharias, etc., tudo deixando prever a realização de vantajosas transacções. Procura ainda conseguir que a inauguração da feira seja abrilhantada por uma banda de música”.

Segundo informações obtidas, a feira estava a despertar o maior interesse, prevendo-se que os povos limítrofes iriam acorrer àquele novo mercado para efectuar transacções “sobretudo de cereais e gados”. Esperava-se, aliás, que a nova feira de Tavarede viesse a ser um valioso melhoramento para a freguesia e que muito beneficiaria os povos vizinhos, “pois é de há muito notada a falta de um mercado perto da sede do concelho, onde todos, sem dificuldades nos meios de transporte, façam as suas transacções”.

E a inauguração ocorreu no dia marcado. “Excedeu toda a expectativa a concorrência de gado de todas as espécies e géneros de todas as qualidades que no domingo inaugurou a feira do Senhor da Arieira, em Tavarede.

Além de muito povo, que afluiu dos arredores, não faltou a nota alegre, que foi dada pela filarmónica de Quiaios.


Filarmónica Quiaiense (foto internet)

As transacções, como era natural, foram importantes, tendo aqueles que ali foram negociar constatado as vantagens daquele novo mercado, que poderá vir a ser um dos melhores dos arredores da Figueira.

Felicitamos os seus promotores, que devem continuar as suas diligências para manter os créditos da feira”.

Para a feira seguinte, 1 de Junho, uma nota escreve que “vai realizar-se ao Senhor da Arieira, Tavarede, o mercado mensal inaugurado sob os melhores auspicios o mês passado e que terá lugar sempre no dia 1 de cada mês. As transacções de gado de todas as espécies, cereais, legumes, quinquilharias, etc., então efectuadas, atingiram importância elevada, animando os feirantes a continuarem a ir ali.

Por isso se espera que o mercado de amanhã continue a demonstrar a sua vantagem, dele beneficiando todos – vendedores e compradores”.

Dias depois, tivémos o comentário de que “foi concorridíssimo, sobretudo de gados de todas as espécies, o mercado anteontem realizado ao Senhor da Arieira, Tavarede, avultando as transacções. Congratulamo-nos com o facto, pois achamos vantajoso o desenvolvimento daquela feira nos aros da cidade, para isso trabalhando solicitamente os seus promotores, que continuam a ser dignos de ver bem sucedidos os seus esforços”.

Em finais de Julho surge nova notícia. “No dia 1 de Agosto, segunda-feira, realiza-se ao Senhor da Arieira, Tavarede, a feira mensal que desde Maio ali se vem efectuando com o mais lisonjeiro resultado. O mercado de segunda-feira não deixará de ser por igual concorrido, devendo por isso avultar as transacções.

Mas parece que o entusiasmo despertado estava a adormecer. Esta última feira “esteve pouco animada, fazendo-se transacções quase exclusivamente de gado suíno”.

Não havia dúvidas. O mercado ambicionado e que tanto prometera, não vingou. Vejamos o que nos diz uma notícia de Agosto de 1923:

“Realizou-se mais uma vez, no dia 1 do corrente, a feira mensal de gados, cereais, géneros alimentares, etc. (?), que funciona no Senhor da Arieira, desta localidade, a qual foi inaugurada no dia 1º. de Maio de 1921, ao som de música e foguetes, e a que acorreram todos os lavradores desta freguesia, com os seus gados, para dar mais brilhantismo à referida feira naquele primeiro dia, o que despertou algum entusiasmo nos tavaredenses, por verem naquela iniciativa um engrandecimento para a sua terra.

Mas... como o que é bom acaba depressa, como costuma dizer-se, é certo que nos meses seguintes se transformou apenas em feira de gado suíno, aliás com pouca concorrência, desaparecendo assim quase da ideia de todos a existência da mesma.

Em nossa opinião, diremos que o povo desta freguesia não sabe bem compreender quais os beneficios que advêem daqueles mercados, para o desenvolvimento do comércio e muito em especial da agricultura, pois que, podendo adquirir ao pé da porta o que lhe é necessário, tem de procurar em outras localidades onde também se realizam, o que representa, para ele, grande sacrificio com a sua deslocação; e que, a continuar assim, melhor seria que acabasse de vez a feira mensal, visto haver a semanal, que só consta de gado suino, ou então prestar o seu concurso de forma a dar-lhe um certo incremento, de futuro, para assim chamar farta concorrência que efectue algumas transacções importantes e ao mesmo tempo tornal-a conhecida, o que, decerto, só beneficiará e dará nome a Tavarede”.

Entretanto havia sido decretado o descanso semanal ao domingo. Em Maio de 1929, o correspondente em Tavarede do jornal “O Figueirense” lamentava-se: “os comerciantes de Tavarede, só porque, perto daquela povoação se realiza ao domingo uma pseudo feira de porcos, mercado esse que dura duas ou três horas da manhã, goza o privilégio de se manter aberto todo o domingo, com manifesto prejuízo dos comerciantes da cidade que são obrigados a estar encerrados”. Era sempre um dia de bom negócio, pois os copos de vinho eram muito requisitados...

E acabaram-se as notícias sobre as feiras na nossa terra, primeiro, de gado suíno, aos domingos, depois mais uma feira/mercado no dia 1 de cada mês, e para acabar, novamente semanal, só de porcos.

As Juntas de Freguesia seguintes bem tentaram a sua continuidade. Fizeram-se alguns melhoramentos, como, por exemplo, instalaram um chafariz, com uma bacia, para os animais beberem, mas não resultou. Bem sabemos que as condições não eram as ideais, especialmente higiénicas. E a forma de comercialização e industrialização
tornaram obsoletas e impróprias estas feiras. Mas eram características...

Mas não quero acabar este capítulo sem um comentário. Muitas eram as famílias tavaredenses, sempre de poucos rendimentos e de muito trabalho, que tinham ali o seu “mealheiro”. Compravam um ou dois bácoros acabados de desmamar, tratavam deles durante uns meses e, quando precisavam de realizar algum dinheiro, muitas vezes por causa de doenças, levavam o animal à feira, vendiam-no e voltavam para casa com um novo bácoro, a que se seguia o mesmo percurso. Além deste pecúlio, tinham também o proveito dos estrumes, que eram o adubo utilizado mas pequenas hortas que cultivavam.





O chafariz da feira dos Quatro Caminhos

Duas recordações aqui deixo. Uma, a de que havia então em Tavarede uma sociedade protectora de gado suino (compromisso), na qual, mediante uma quota mensal, garantiam o “seguro” do animal. A outra, é uma palavra de admiração à memória de tantas mulheres tavaredenses, pela sua luta e trabalho com a criação caseira dos porcos. Por conhecimento próprio, não posso deixar de recordar minha mãe e uma vizinha, a senhora Isaura, mulher do saudoso Manuel Lindote, que, diariamente e por vezes de manhã e à tarde, iam à Figueira, com um latão à cabeça (cerca de 20/25 quilos), a casa de famílias conhecidas, que lhes guardavam os restos e sobras de comida e que elas traziam à cabeça em prodígios de equilíbrio. Cito estas duas, como disse, por conhecimento próprio. Mas outras mais faziam o mesmo. De inverno ou de verão, chovesse ou fizesse sol, tinham mesmo de o fazer, para que aquelas sobras se não estragassem.

Que mais não fosse do que por estas singelas recordações, a feira dos Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro tinha que fazer parte destas histórias. E não me esqueceram ainda os tremoços e as camarinhas que lá se vendiam e que tão bem nos sabiam!...

(continua)

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Grémio Educativo e de Instrução Tavaredense

Conforme noticiámos, realizaram-se no último sábado, 9, e domingo, 10, as festas com que a Direcção do Grémio Educativo e Instrução Tavaredense festejou a sua inauguração.



Nunca pensámos que, numa terra tão pequenina como é Tavarede, se pudesse levar a efeito e com tanto brilho festas como aquelas que no sábado e domingo aqui se realizaram.



Tanto na Sessão Solene como no espectáculo, o salão-teatro oferecia um aspecto deslumbrante, pois estava ornamentada com verduras e flores, e para maior realce enchia a sala uma selecta como distinta assistencia



No sábado, conforme anunciava o programa, teve lugar o Espectáculo



Cêrca das 22 horas, com uma casa completamente repleta de gente, a orquestra executou o hino, que foi cantado por alguns alunos da escola nocturna dêste Grémio, que se encontravam no palco e que a assistência ouviu de pé.



Apareceu então o sr. Belarmino Pedro, que disse ir ali para fazer entrega dum estandarte oferecido pela Senhora Dona Carmo Santos ao Grémio Educativo, e que a sua Direcção, por sua vez, resolveu oferecer aos alunos da referida escola, sendo nessa altura colocadas no mesmo estandarte duas fitas oferecidas pelos alunos.



Terminada que foi esta cerimónia, representou-se a farça num acto, Uma recepção elegante, desempenhada por cinco meninas, que se portaram admiravelmente, tendo sido muito aplaudidas.



Seguiu-se o drama Amor de Pai, também num acto, desempenhado por cinco homens, tendo agradado imenso, sendo no final muito aplaudido, fazendo a assistência uma chamada especial ao sr. Raul Martins, ensaiador das mesmas peças.



Representaram-se ainda a farça num acto, Um chaufeur desastrado, desempenhada por cinco meninas, e a comédia também num acto, Medrosos e valentes, desempenhada por cinco homens, que agradaram muito.



E a terminar o espectáculo, que findou pelas 2 horas, mais uma vez a orquestra executou o hino, tendo ainda a assistência feito uma chamada especial ao sr. Raul Martins, depois do que tudo debandou com a melhor impressão.



* * *
No domingo era anciosamente esperada a Sessão Solene



Cêrca das 16 horas, apareceu no palco do Grémio Tavaredense o sr. Dr. César Freire Falcão, ilustre professor do Colégio Liceu Português e Presidente da Assembleia Geral.



Uma vez executado o hino, S. Exª., leu alguns artigos dos Estatutos do Grémio e empossou os Corpos Gerentes dos seus cargos, convidando, em seguida, para presidir áquela sessão, Mr. Cónego Dias de Andrade, mui ilustre Director do Colégio Liceu Português, e que foi um dos mais ilustres ornamentos do Senado Português.



Mr. Dias de Andrade, uma vez na presidência, convidou para o secretariarem os srs. Dr. António Sotero, Capitão Nunes de Oliveira, Fernando Mendes, Dr. Mendes Pinheiro, Dr. Valadares e Tenente-coronel Benfeito, cedendo-se à leitura do expediente, em seguida à qual usou da palavra o sr. Dr. César Falcão, que, num brilhante e bem urdido discurso, prendeu a atenção de todo o auditório, tendo sido as suas últimas palavras abafadas com uma prolongada salva de palmas.



Seguiu-se-lhe o sr. Dr. Carlos Aguiar de Loureiro, que leu um extenso e magnífico trabalho da sua auctoria, sendo muito aplaudido e felicitado.




Em seguida usou da palavra o Revº. Pároco desta freguesia e um dos principais fundadores da obra que se estava inaugurando, que, brilhantíssimamente expôs com uma clareza inalteravel, quais as misérias que assolam o mundo, devidas ao bolchevismo, que sopra do Oriente.



S.Exª. Rev.ma foi de uma eloquência admirável, pelo que foi muito felicitado e vivamente aplaudido.



Para descrever um pouco da história de Tavarede, usou em seguida da palavra o sr. Dr. Canavarro de Valadares, que brilhantíssimamente fez a narrativa da história de Tavarede, e pena é que o espaço nos não permita um largo resumo do que S. Exª. narrou, pois que, bem digno disso era. O sr. Dr. Canavarro de Valadares foi muito aplaudido.



Levantou-se depois para usar da palavra, Mr. Dias de Andrade, presidente daquela sessão. O silêncio acentuou-se, visto haver grande interêsse pelas suas palavras, e S. Exª. principiou duma maneira admiravel, tendo conduzido sempre o seu magnifico discurso de molde que todo o auditório não perdesse um instante de aproveitar os seus ensinamentos.



E depois de largas e sensatas considerações, Mr. Dias de Andrade terminou por entre uma carinhosa ovação de aplauso que todos quantos o escutavam lhe tributaram, dando, em seguida, por terminada a Sessão Solene.



* * *
Durante as festas que o Grémio Educativo e Instrução Tavaredense promoveu para festejar a sua inauguração, lembramo-nos ter visto, assistindo tanto ao espectáculo como à Sessão Solene, as ilustres Senhoras: - DD. Alice e Maria Manuela Camolino de Sousa, acompanhadas de sua mãi; Rita Juzarte Santos; Maria, Ofélia e Josefina Cruz e Costa, directoras do Colégio Luiz de Camões; Carmo Juzarte Santos; Caetana Laydlei Costa; Celeste Maria de Melo Mendes; Celeste Mendes; Gloria Soares de Oliveira; Maria de Lourdes Mendes Diniz da Fonseca; Greta Scheibe; Alda Ferreira de Almeida; Maria da Conceição Loureiro; Professora de Tavarede; Maria da Conceição Palrinhas, Ricarda Moniz, e muitas outras de cujos nomes nos não lembramos.



E os Ex.mos Senhores: - Dr. António Sotero; Dr. Canavarro de Valadares; Dr. Mendes Pinheiro; Fernando Mendes; Capitão Manuel Nunes de Oliveira e familia; António Ramos Pinto; Tenente-Coronel Bemfeito; Mr. Dias de Andrade; Dr. César Falcão; Capitão António de Aguiar Loureiro; Padre Nunes Pereira, Reitor de Montemor-o-Velho; Padre Abilio Costa; Padre Abrantes Couto; Ezequiel Leite de Coelho Fortes; António Simões; António Vitor Guerra; Raul Martins; Capitão Mourinha; Padre Palrinhas, Arcipreste da Figueira; Joaquim Gomes de Almeida, Director de O Figueirense; Agostinho Domingues, Redactor de O Dever; Francisco Martins Cardoso; Francisco Moniz, e muitos outros de cujos nomes não nos lembramos.



* * *
Ao Grémio Educativo e Instrução Tavaredense desejamos longa vida, com os nossos agradecimentos pelo convite que nos enviou.





(O Figueirense - 1932-04.14)

Os Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro






O SENHOR DO ARIEIRO


“... recorda-nos uma outra (capela), que existiu, também para o lado poente de Tavarede. Era situada no cruzamento do caminho directo desta cidade aos Condados, e que daquele que vai de Tavarede a Buarcos, próximo da quinta de Luís António de Sousa e a uns quatrocentos metros para o lado do poente de Tavarede.

Existiu sob a invocação do Senhor da Arieira ou do Arieiro, naturalmente por ser edificada em um lugar aonde o povo ia extrair areia ou saibro para construcção de alvenarias. Em 186.. só existiam dela, no local, uns restos de alicerces e algumas pedras aparelhadas, soltas. Mais nada.

Contava-se na povoação que havia sido interdita e depois demolida em virtude dum sacrilégio cometido: Um desvairado qualquer foi em uma noite pendurar um enxalavar de caranguejos sobre uma cruz que lá existia, profanando assim aquele lugar sagrado, e daí a interdição.

O povo de Tavarede atribuíu o sacrilégio a algum pescador de Buarcos.

Ao certo nada sabemos desta narrativa, contentando-nos apenas da dicção da tradição como era contada entre o povo das proximidades da capela”.

Antes de continuarmos com a história do Senhor do Arieiro (preferimos esta forma à de Arieira, mas é só uma questão nossa), também queremos referir que, respondendo ao inquérito paroquial de 1721, o então pároco de Tavarede informa que “estava antigamente um nicho com Senhor Crucificado, no fim da terra para a parte do ocidente, que representava ser muito antigo; que hoje está fechado com porta e com toda a decência; que tem obrado muitos milagres; e vai obrando – suando a sua Santa Imagem e a coluna em que está posto, como se tem visto em certos dias”.

Nas “Memórias Paroquiais de 1758”, o cura Anacleto Pinto refere a ermida do “Senhor dos Milagres ou Arieira”, contigua a Tavarede, mas fora da povoação.

Depreende-se do exposto, que o nicho com a imagem do Senhor Crucificado foi transformado numa pequena ermida onde estava devidamente resguardada e protegida, a qual, depois do “sacrilégio” do “enxalavar”, foi demolida.

Quanto à imagem, uma notícia de 1899, publicada na “Gazeta da Figueira”, diz o seguinte: “Acabamos de saber que alguns paroquianos desta freguesia se vão agregar em comissão para colher dos habitantes da mesma freguesia donativos suficientes para o acabamento interior da capela do nosso cemitério, mandada edificar pela junta de paróquia presidida pelo saudoso e benemérito cidadão sr. João José da Costa.

Foi este malogrado cavalheiro quem teve a louvável ideia de se mandar ali construir aquela capela, com o propósito de nela ser colocada a veneranda imagem do Senhor da Arieira, e de servir também para lá instalar o Santíssimo Sacramento e as imagens que se vêem na igreja, quando por qualquer motivo isso fosse necessário.







Capela do cemitério actual, mandada construir por João José da Costa, presidente da Junta de Paróquia, para lá se colocar a imagem do Senhor do Arieiro

A comissão a que nos referimos vai oficiar à junta de paróquia, a fim de esta conceder autorização para levar a cabo os seus honrosos intentos, visto ela não ter até hoje, passados que são uns poucos de anos depois da morte do iniciador da construção da capela, o sr. João José da Costa, conseguido lançar nos seus orçamentos uma pequena verba destinada a acabar tão útil obra, começada por um homem a quem se deviam acatar e respeitar as intenções.

Honra seja, portanto, àqueles que vão concluir a capela, e oxalá que todas as pessoas desta freguesia contribuam para tal fim.

Agora há uma coisa séria a resolver e de que a mesma comissão vai tratar, que é de averiguar a forma como a imagem do Senhor da Arieira, dada a Tavarede pelos proprietários da extinta capela daquele nome, foi ter à casa de depósito do cemitério ocidental dessa cidade, sem que, segundo o que ouvimos, fosse autorizado para o fazer qualquer dos membros da junta.

Eis um assunto que aqui tem levantado grande celeuma, porque não só a imagem representa para os paroquianos de Tavarede um grande valor, mas também porque estava destinada a ocupar um lugar determinado por um homem cuja memória é sempre invocada com todo o respeito.

E, francamente, também não admitimos que a junta de paróquia ou algum dos seus membros possa assim fazer, leviana e inconscientemente, oferta duma imagem daquelas, como se fôra uma coisa sem valor e que de direito não pertencesse à nossa freguesia, que é como quem diz aos tavaredenses.

Senhor dos Milagres (foto internet)

Será bom que este caso se deslinde por homens que prezam os interesses e haveres da sua terra, e que não querem deixar-se lograr por quem não tem escrúpulo em praticar actos tão melindrosos”.

No dia seguinte (19 de Novembro de 1899) e no jornal “O Povo da Figueira”, surgiu uma nova notícia sobre o assunto. Vejamos:

“Devido a várias pesquisas que tenho feito, e a informações que de fontes limpas tenho recebido, acabo de saber de mais um escândalo para não chamar dois crimes. Eil-os:

Em tempos remotos, ouve um devoto nesta freguesia que mandou fazer uma capela no lugar do Arieiro (encruzilhada das estradas que vai da Figueira a Quiaios e de Tavarede a Buarcos). Este devoto mandou fazer um crucifixo para a dita capela, a que pôs o nome de – Senhor do Arieiro.

Esta imagem é dum trabalho admirável, em pedra, que na actualidade não era feito por 70$000 reis.

Passado pouco tempo desta acção religiosa ser feita, o devoto morria não estando a capela perfeitamente acabada.

Os herdeiros do falecido tomaram conta dos bens, entre eles a citada capela e a imagem que dentro dela estava.

Nesse tempo era pároco desta freguesia, o padre Bernardo da Silva, filho desta terra. O padre Bernardo lembrou-se de a pedir aos novos donos, o que fez e do que foi bem sucedido.

O crucífixo veio pois, em procissão do Arieiro para a nossa igreja onde muito tempo esteve exposta, sendo depois retirada com destino à capela do nosso cemitério, o que se não fez, por ainda não estar acabada.

Há poucos dias fomos passear ao cemitério dessa cidade, e na casa dos depósitos deparamos com o nosso Senhor do Arieiro! Sabem os leitores quem o mandou para lá?

Foi o nosso bom pároco Joaquim da Costa e Silva!!

O facto repugnou-nos tanto, que fomos ter com o guarda do cemitério a perguntar-lhe como tinha ido para ali aquela imagem; dizendo-nos em resposta foi em troca do sino que estava nos antigos Paços do Concelho (na Praça Nova).

Ora, o sino já cá está há muito mais dum ano. E a imagem está lá há poucos dias. Mas isto não basta.

Com que autorização trocou o padre Silva a imagem pelo sino sem ao menos a Junta de paróquia ter sido consultada? E com que auctoridade desapareceu da nossa igreja a velha Senhora do Rosário, que agora está substituída por uma que custou a um devoto 120$000 reis no Porto?

A primeira foi trocada por um sino que o povo sempre dispensou e dispensará.

A outra foi… naturalmente trocada a farrapos?

Isso não creio eu.

Não comento estes factos, apenas chamo para eles a atenção dos meus patrícios e em especial dos que pugnam pelos bens da terra que lhes serviu de berço.

Soma e segue”.

Durante a missa conventual de domingo, 19, foi dito pelo pároco, Joaquim da Costa e Silva, presidente da Junta de Paróquia de Tavarede, “que da melhor vontade auxiliaria a comissão que nos dizem ir preparar-se aqui para acabar as obras da capela que está sendo edificada no cemitério desta povoação”. Depois, e referindo-se ao caso da imagem do Senhor do Arieiro, disse que “se efectivamente ela estava exposta no cemitério ocidental dessa cidade, fôra para lá por algum tempo, voltando para Tavarede logo que isso fosse exigido. E agora, visto que se vai tratar de acabar a capela do nosso cemitério, e que é para ali que o Senhor da Arieira está destinado, ele viria imediatamente da Figueira”.

Acrescentou depois “o facto que o levara a dispensar para ali a referida imagem fôra apenas por saber que ela não era aqui necessária por enquanto e tanto mais por a ver desprezadíssima numa casa contígua à igreja paroquial. Como o Senhor volta para Tavarede, fica sanada esta questão e oxalá agora que a capela do cemitério se conclua”.

E não encontrei nada mais nos jornais figueirenses, nenhuma alusão ao caso da imagem do Senhor Crucificado, também chamado Senhor do Arieiro ou Arieira.


Nicho com imagem do Senhor Crucificado ou dos Milagres. (Foto retirada da internet)

(Continua)


sábado, 13 de agosto de 2011

De Casa de Cultura a... Taberna! (15)

(conclusão)

“ O Figueirense”, em 14 de Dezembro, tencionava encerrar o debate:

“ Acudindo mais uma vez à chamada honrosa do nosso presado colega “O Dever” que, no seu último número voltou, desta vez em estilo nervoso, a ocupar-se da debatida e nada edificante questão travada em volta da creação da Casa do Povo de Tavarede, declaramos mais uma vez que vimos constrangidos e únicamente por amor à verdade e à justiça pelos quais pautamos todos os nossos actos.


É este o terceiro e último artigo em que “O Figueirense” é chamado a reconstituir a verdade dos factos, apoiado em documentos sérios, por causa das dúvidas... Temos horror especial às afirmações gratuitas. No primeiro artigo confessámos expressamente que não desejávamos fazer polémica e por isso não sentiriamos prazer em voltar ao assunto.


O nosso colega, que não nos supunha talvez tão bem municiados, entendeu que acima de tudo estava a defeza da sua verdade e das suas conveniências e não desistiu nem quiz dar o braço a torcer. Com a astúcia duma vulpe muniu-se do fino florete da sua sofística e esgrimiu de tal maneira e com tal entusiasmo que quási amarrotava os punhos de renda... Meteu os pés pelas mãos muito honradamente, truncou as nossas afirmações ao sabôr das suas necessidades e não de harmonia com os compêndios de lógica, como pretende, para vir afirmar no último número que a Comissão Organizadora da Casa do Povo de Tavarede NÃO EXISTE... porque ainda não fôra nomeada por quem de direito. Iamos morrendo esmagados ao pêso desta corajosa afirmação.


E o colega sabia isto e estava tão calado! Já é ter coragem para guardar um segrêdo! Com que então, não existe! Valha-nos Deus, colega! Isso só por troça! Não sabiamos que as Comissões Organizadoras necessitavam de ser nomeadas por alguém. Julgávamos que de harmonia com o decreto respectivo se constituiam a si próprias e depois o resto era com o Instituto Nacional do Trabalho... O colega continua aéreo e é pena. Se estava de posse de tão poderoso argumento porque não fez uso dêle nos três artigos anteriores?


Não será assim... um ponto serôdio, desenxabido... um fruto de outono, sem valôr, portanto, pois não foi produzido a tempo e horas?... Chegamos às vezes a convencer-nos de que o nosso colega fas espírito com coisas sérias, gravitando aqui e ali, entre o ridículo e o humorístico. Pois presadíssimo colega: sentimos muito dizer-lhe mais uma vez... que está enganado. A Comissão de Tavarede encontra-se há muito constituida - e muito bem constituida, por sinal -. Até já assinou os estatutos e restante documentação necessária. Quem o duvidar telefone para o Instituto Nacional do Trabalho, em Coimbra, ou pergunte ao seu representante na Figueira - sr. Paulo dos Santos Almeida. Verá a leviandade pavorosa com que se fazem certas afirmações.


Diz “O Dever” que não acredita no valôr objectivo da declaração do Académico da Universidade, Domingos Condado, católico praticante, pai de família exemplar, que não um fedelho qualquer, porque se a considerassemos boa, teriamos feito uso dela na discussão anterior. Pois então dizemos-lhe com tôda a franqueza: ainda não esgotámos o assunto. Ainda cá temos um documento mais antigo e não menos valioso de que não fizémos uso. E se o colega não tomasse a atitude que tomou, não teria vindo a público um único documento, nem isto teria chegado tão longe. Não os quizémos publicar todos juntos para que nos não atribuissem intenções reservadas... Utilizámo-los à medida que nos fôram puxando pela lingua...


Deseja conhecer este documento? Trata-se de uma carta escrita por um ornamento venerando do clero português, encarregado de préviamente parlamentar com o sr. Bispo à cêrca das pretensões da Comissão e comunicar a esta em seguida as disposições de S. Exª. Revmª. quanto aos dois pedidos que iam ser-lhe feitos: a) a cedência da Casa do Grémio para instalar a Casa do Povo; b) a nomeação de pároco para Tavarede.


Submetida ao beneplácito de S. Revª. a representação expressando ao sr. Bispo os desejos dos católicos de Tavarede, foi assinada pelas pessoas com quem os párocos da freguesia sempre contaram nos momentos, quer de luta quer de bonança. Da maneira como o sr. Bispo recebeu a pretensão deu S. Revª. conta a um dos membros da Comissão Organizadora, nêstes têrmos: “Não pude telefonar-lhe. Mas venho dizer-lhe que falei ao sr. D. António e que êle está bem disposto e se conseguirá o que se deseja. Não se mostrem exigentes. Saibam esperar as oportunidades”.


Esta recomendação final diz respeito ao pedido do padre privativo que o signatário considerava o mais difícil de atender por absoluta falta de clero. Aqui tem “O Dever” quais eram as disposições do sr. Bispo àcêrca do assunto. E só manobras de quem quer que seja, podiam levar S.Exª. Revª. a tomar outra resolução. Eis porque nos parece a pessoa menos culpada no que sucedeu. É contra os malsinadores que vão as nossas objurgatórias.


Diz “O Dever” que na carta do sr. Bispo não está formulada explícita ou implicitamente, qualquer promessa. Mas oculta, e isso é que se não admite, que essa carta é a resposta a outra que lhe foi dirigida, como acentuámos nos dois artigos anteriores - em que se PEDIA A EXECUÇÃO DAS PROMETIDAS OBRAS, A-FIM-DE A CASA DO POVO COMEÇAR A FUNCIONAR AINDA NO CORRENTE ANO. Porque esconde êste pormenor importante? O colega deseja certificar-se do conteúdo dessa carta? Nós temos aqui a minuta se não quizer dar-se ao trabalho de saltar a Coimbra. Que diz S. Exª. Revª. na resposta?


Muito simplesmente: que por sugestão do Conselho Diocesiano, que se inclinou à venda do prédio, RESOLVEU (evidentemente porque já havia resolvido outra coisa) não fazer as obras, o que muito o penalizou. Está aqui ou não, conjugando o pedido da Comissão com a resposta, claramente expressa a existência dum compromisso? “O Dever” não obstante ter mandado contra a nossa magra literatura o seu melhor guerrilheiro, padre-mestre em sofística e malabarismo, não destruíu uma única das nossas afirmações. Nem podia destruir porque a arma de que nos servimos é de boa têmpera, triunfa sempre, mais tarde ou mais cêdo! Chama-se a VERDADE.


Tudo leva a crêr que em obediência a qualquer razão ainda não esclarecida - e talvez incontestável - houve o propósito manifesto de dificultar a creação da Casa do Povo de Tavarede. Não é admissivel nem justificável que estando as coisas no pé em que já vimos, fôsse feita a venda da casa do Grémio a um segundo pretendente, sem publicidade de espécie alguma: nem à Missa dominical, nem por editais, nem na imprensa, havendo nisso a máxima vantagem para o vendedor. Se a Comissão tem conhecimento da rasteira que se preparava, faria, mesmo assim, frente a quem quer que fôsse. E não só a Comissão. Sabemos que o sr. António de Oliveira Lopes, que é de Tavarede, mas reside nesta cidade, havia prevenido há muito o seu cunhado sr. João de Oliveira para no caso de desistência da Comissão Organizadora, comprar o prédio para si até à importância de 15 000$00 (mais cinco do que aquela porque foi vendido).


Publicidade não houve. Tudo se fez à chucha calada, por artes de berliques e berloques. O actual possuidor não teve concorrentes nem podia tê-los. Comprou pelo que quiz. Ofereceu 10 000$00 e o vendedor fez logo a entrega sem mais preocupações. Os outros pretendentes sò tiveram conhecimento depois do negócio realizado. Contra isto é que se não pode argumentar... Tôda a esperteza é vã. Não se acautelaram desta forma os interêsses materiais, nem morais, nem religiosos. E dificultou-se a instalação duma Casa do Povo, numa freguesia onde se torna absolutamente necessária.


Tudo isto leva a crêr que a tal... Predial, assim a comprar prédios a 24 contos e a vendê-los, poucos anos depois, por 10, ao primeiro que lhe aparece - seja uma sociedade por cotas, diferente das outras, isto é, sem fins lucrativos -, que se contentou em levar e vender, o mobiliário, pertencente à Associação, sem dar cavaco aos associados. Ninguém tem nada com isso - dirá “O Dever”, com o seu peculiár desassombro. Podia vender por quanto e a quem o quisesse. Muito bem. Mas nesse caso, jôgo franco. Perde-se tôda a autoridade para dizer que a diocese está pobre, vive de esmolas, etc.


Mostra-se também “O Dever” muito surpreendido por termos afirmado que foi uma notícia sua que levou à Comissão a certeza do contrato, quando foi um membro da referida Comissão que determinou a publicação de tal notícia. Não há motivo para tanta espantação! O que dissémos, mantemos e corresponde à verdade. Um membro, por muito corpulento que seja, não constitui a Comissão Inteira. Nem mesmo dois ou três. Isto é óbvio, é claro, é intuitivo. Não é necessário consultar os compêndios de lógica para o compreender. Conclusão a tirar: Fica demonstrada duma forma insufismável a veracidade das nossas afirmações iniciais:


1º. - A Casa do Grémio encontra-se sob a inteira dependencia administrativa do sr. Bispo de Coimbra e a venda não podia ser, portanto, efectuada em ouvir S.Exª. Revª.; 2º. - O sr. Bispo prometeu todo o seu apoio e concordância ao solicitado na representação que lhe foi lida e entregue depois de reforçada verbalmente. Pode ler-se nessa representação que o director de “O Dever” viu dias antes de ser entregue, quais as pretensões que ali são formuladas. Não é arquitectando argumentos mais ou menos engenhosos que se vence uma causa. Os documentos é que convencem. 3º. - A venda do prédio foi feita sonegadamente, isto é às escondidas da Comissão Organizadora que se propunha obtê-lo, primeiro por arrendamento e, mais tarde, depois de nova resolução tomada por Coimbra, pretendia comprá-lo. Não se lhes deu a preferência nem sequer a honra de uma consulta, no próprio interêsse do vendedor.


E paramos por aqui. Alongámos demais estas considerações: por muito que escrevessemos seria nunca demais. Mas teve de ser assim. Não podiamos consentir que se deturpassem factos duma clareza a tôda a prova. Havia que contrapôr-lhes a verdade pura. Isso fizémos mais uma vez com o máximo respeito pela posição dos alvejados. “O Dever” consagrou quási uma página inteira do seu último número à defeza da infeliz causa que andava tão empenhado em salvar num afã e por motivos bem compreensíveis. E fala muitas vezes em ridiculo sem reparar que está enterradinho nêle até ao pescoço... Por fim, num rasgo teatral que lhe ficou a matar e um sorriso amarelo a bailar-lhe nos labios, declara abandonar o campo a depôr as armas.


Achamos acertadíssima a sua resolução. Melhor teria feito nunca ter vindo à liça e em vez de pegar nas armas que pegou se agarrasse antes aos seus compêndios de lógica... Quanto à Comissão Organizadora de Tavarede, dizem-nos que está em forma, a respeito das informações menos sérias que têm chovido nas próprias esferas oficiais. Boa noite, colega”.

Mas... o comunicado que também escreveu na mesma edição e que diz:

“ O sr. padre Couto, prior de Buarcos e colado - e bem colado - de Tavarede, simula liquidar-me no último número do seu jornal sob um sortilégio de piedosas inverosimilhanças, umas sem pés nem cabeça, outras ageitadinhas a seu talante que se me torna completamente impossível esmiuçar sem ocupar, pelo menos, uma página de “O Figueirense”, tantas são as inverdades que o ânimo verrineiro do meu abelhudo prior fêz pingar no papel.


Nesta conformidade desisto por hoje de analizar no seu jornal êsse amontoado de fantasias injuriosas engendradas pelo meu estrábico e desnorteado contraditor, reservando a autópsia para local e ocasião mais adquados, pois além de não desejar sacrificar-lhes tanto espaço não estava prevenido com luvas e mascara anti-gaz. Veremos depois quem produz enexactidões e dislates (o reverendo supõe talvez que o seu exemplo fez escola) afirmações gratuitas, com a mesma naturalidade e sangue frio com que celebra o Santo Sacrifício. Quos vult Jupiter perdera, dementat prius...


Desde já prometo esforçar-me quanto possível por não trazer à baila, como o Revº. - os pais, os sogros, a esposa, os primos e até os criados... Por hoje, limitar-me-ei a declarar ao meu padre que o tal indivíduo com quem anda de têsto e pucarinho não é o sr. José Maria de Carvalho, mas o senhor Rodrigues (a tal testemunha que não é anti-clerical mas que atribui ao sr. Bispo calunioso e gravíssimo deslize, muito comprometedor da sua dignidade episcopal. Não foi o taberneiro de Tavarede que corroborou as afirmações das duas testemunhas de acusação. Foi o sr. Rodrigues que serviu de porta voz ao taberneiro e que por sua vez arrastou a outra testemunha como demonstraremos a seu tempo.


Desejamos apenas que até lá o meu padre esclareça sôbre as responsabilidades que me cabem na ruína do Grémio. Já vimos que não tive nenhumas na queda da Conferência. Vamos agora a saber, tim-tim por tim-tim, as medidas que propuz ou deliberações que apoiei com o meu voto e assentimento, que levaram à ruína a referida colectividade. O meu padre que não tem papas nem travão na língua vai com certeza pôr tudo em pratos limpos. Agradecendo a publicação destas linhas, subscrevo-me De V.... muito grato e obrigado Belarmino Pedro”.

mereceu, ainda, uma resposta, pelo que, conforme se pode ver, o debate encerrou finalmente em 31 de Dezembro de 1938:

“ Sem pretender abusar da benevolência de V... rogo o subido favôr de publicar, no próximo número do seu conceituado jornal, a presente carta que não será uma resposta insultuosa às amabilidades do último comunicado de sua excelência o sr. Belarmino Pedro, mas apenas um esclarecimento para os leitores de “O Figueirense” que estejam de boa fé. Mantenho em absoluto o que afirmei na minha primeira carta, isto é:


1º. - sou o pároco de Tavarede desde 1 de Novembro de 1936, por vontade do meu Exmo. Prelado, cujo decreto de nomeação tenho em meu poder. Portanto, não pedi a grande honra nem tão pouco os grandes proventos de tão rica freguesia (os leitores já viram o que ela é sob o aspecto material) onde há paroquianos ilustres e humildes como o humilde paroquiano que é o sr. Belarmino Pedro - êle assim se confessa numa carta que eu tenho em meu poder datada de 30 de Setembro último, tão ridiculamente ameaçadora que não mereceu o encomodo da mais breve resposta.


2º. - de facto não dei nem podia dar o meu apoio - que nunca os pretensos organizadores da Casa do Povo pediram - a individuos que tendo responsabilidades a dentro do extinto “Grèmio” (de que fui sócio cotista) não dispuseram de influência nem arriscaram um centavo ( aqui o sr. Belarmino enterra a carapuça até às orelhas) para evitar a sua ruina, ao menos conseguindo a ligação da luz, cujo corte parece ter sido o primeiro passo para a morte daquela colectividade, e os quais estando à frente da Conferência de S. Vicente de Paulo que algum bem fizeram entre os pobresinhos a deixaram igualmente morrer; (aqui a carapuça asfixia-o).


Esta é a base da questão e o que se disser à sua volta são simples detalhes que vêm esclarecê-la. Pela exposição da minha carta última ficaram os leitores de “O Figueirense” a compreender as razões da minha atitude de indiferença para com tão leais e sinceros paroquianos. Ao sr. B.P. que desta vez se apresenta de mangas arregaçadas numa atitude muito semelhante à dos noctívagos que outrora infestavam certos bairros da Capital, não dou a mais pequenina resposta, limitando-me a fazer o acto de contrição e preparar-me para... morrer provisòriamente fuzilado pela metralha da bagagem literária de sua excelência, que à falta de argumento, se agarra sempre, em tôdas as questões ao escolhido vocabulário de seu Dicionário de Má Educação, para brindar qualquer que ouse adversar a sua prosa amável e correcta. Não, senhor Director, desceria no meu caracter e na minha dignidade se me permitisse ligar, por mais tempo, qualquer importância a quem, consciente ou inconscientemente, quere afundar-se num mar de ridiculo e de insensatez. De resto, os leitores de “O Figueirense” já conhecem os seus processos de discussão...
.......

Por isso não vale a pena “gastar cêra bôa com tão ruim defunto”. Desculpe, senhor Director, a minha importunidade, que eu não voltarei mais, e pela publicação desta lhe fico muito reconhecido. Queira aceitar os respeitosos cumprimentos do que se confessa de V.... etc. Buarcos, 26 de Dezembro de 1938 Pe. Alfredo de Matos Abrantes Couto. Prior de Buarcos encarregado de Tavarede.

* * * * *

N. da R. - Com a publicação dêste Comunicado, damos por encerrado, nestas colunas, êste debate que só forçado pelas leis da hospitalidade, que sempre respeitámos, nos vimos obrigados a dar-lhe guarida. Se os nossos desejos, sinceramente cristãos, forem tomados em benévola consideração, fazemos os melhores votos para que os dois contendores de reconciliem e passem, como já foram, a ser bons amigos. A vida, como disse Salazar, é uma coisa muito séria e em homenagem a ela devemos sacrificar despeitos, rancores, intrigas, pequeninas coisas comparadas com a grandeza do sacrifício sublime de Cristo que perdoou até àquêles que o martirizaram e fizeram morrer pregado num madeiro. Vai surgir 1939, que se nos afigura um grande ponto de interrogação perante as preocupações das chancelarias. Que todos nos esforcemos por ser bons, para que na hora derradeira nada nos atormente a consciencia” .

Se calhar, talvez todos terão tido razão. Ou talvez não. A verdade é que, com promessas ou sem promessas, a casa teve outro destino. Mas, e como se constata, a fundação do tal organismo corporativo Casa do Povo de Tavarede, prevista pela empenhadíssima comissão, que tão bravamente lutou pelos seus interesses, não terá passado de uma “vã quimera”, ou de um sonho que se esfumou.


Pelos vistos o apoio que esperava do Estado e que até estimaram em 30 ou 35 contos, que era bastante dinheiro para a época, nunca terá sido prometido, quanto mais disponibilizado. Mas, para nós, o que interessava era o contar a história daquela antiga casa. Para isso necessário era transcrever o que transcrevemos. Quer quanto à questão religiosa, quer quanto a esta última parte, com a Casa do Povo de Tavarede, nem tudo copiámos. Para ficarmos a conhecer os acontecimentos e para cada qual os ajuizar, até já nos excedemos. Transcrever mais, além de nos tornarmos ainda mais enfadonhos, não trazia achegas para o caso. Preferimos, e entendemos que com acerto, ficar por aqui.


E terminemos com um facto bastante irónico. O novo proprietário da casa, que a reconstruiu e onde montou o estabelecimento de “mercearias e vinhos”, conhecedor de toda a polémica que a sua compra desencadeou e sabendo qual era a finalidade para que queriam as antigas instalações associativas, resolveu, talvez sarcasticamente, dar um nome ao seu estabelecimento. Chamou-lhe, e mandou escrever na fachada do edifício em letras enormes: A LOJA DO POVO. Sem mais comentários.