domingo, 25 de outubro de 2015

Senhor do Aeeiro . 3

         Será bom que este caso se deslinde por homens que prezam os interesses e haveres da sua terra, e que não querem deixar-se lograr por quem não tem escrúpulo em praticar actos tão melindrosos”.

         No dia seguinte (19 de Novembro de 1899) e no jornal “O Povo da Figueira”, surgiu uma nova notícia sobre o assunto. Vejamos:

         “Devido a várias pesquisas que tenho feito, e a informações que de fontes limpas tenho recebido, acabo de saber de mais um escândalo para não chamar dois crimes. Eil-os:
        
         Em tempos remotos, ouve um devoto nesta freguesia que mandou fazer uma capela no lugar do Arieiro (encruzilhada das estradas que vai da Figueira a Quiaios e de Tavarede a Buarcos). Este devoto mandou fazer um crucifixo para a dita capela, a que pôs o nome de – Senhor do Arieiro.
                  
         Esta imagem é dum trabalho admirável, em pedra, que na actualidade não era feito por 70$000 reis.
        
         Passado pouco tempo desta acção religiosa ser feita, o devoto morria não estando a capela perfeitamente acabada.
        
         Os herdeiros do falecido tomaram conta dos bens, entre eles a citada capela e a imagem que dentro dela estava.
        
         Nesse tempo era pároco desta freguesia, o padre Bernardo da Silva, filho desta terra. O padre Bernardo lembrou-se de a pedir aos novos donos, o que fez e do que foi bem sucedido.
        
         O crucífixo veio pois, em procissão do Arieiro para a nossa igreja onde muito tempo esteve exposta, sendo depois retirada com destino à capela do nosso cemitério, o que se não fez, por ainda não estar acabada.
        
         Há poucos dias fomos passear ao cemitério dessa cidade, e na casa dos depósitos deparamos com o nosso Senhor do Arieiro! Sabem os leitores quem o mandou para lá?
        
         Foi o nosso bom pároco Joaquim da Costa e Silva!!
        
         O facto repugnou-nos tanto, que fomos ter com o guarda do cemitério a perguntar-lhe como tinha ido para ali aquela imagem; dizendo-nos em resposta foi em troca do sino que estava nos antigos Paços do Concelho (na Praça Nova).
        
         Ora, o sino já cá está há muito mais dum ano. E a imagem está lá há poucos dias. Mas isto não basta.
        
         Com que autorização trocou o padre Silva a imagem pelo sino sem ao menos a Junta de paróquia ter sido consultada? E com que auctoridade desapareceu da nossa igreja a velha Senhora do Rosário, que agora está substituída por uma que custou a um devoto 120$000 reis no Porto?
        
         A primeira foi trocada por um sino que o povo sempre dispensou e dispensará.
        
         A outra foi… naturalmente trocada a farrapos?
        
         Isso não creio eu.
        
         Não comento estes factos, apenas chamo para eles a atenção dos meus patrícios e em especial dos que pugnam pelos bens da terra que lhes serviu de berço.
        
         Soma e segue”.

         Durante a missa conventual de domingo, 19, foi dito pelo pároco, Joaquim da Costa e Silva, presidente da Junta de Paróquia de Tavarede, “que da melhor vontade auxiliaria a comissão que nos dizem ir preparar-se aqui para acabar as obras da capela que está sendo edificada no cemitério desta povoação”. Depois, e referindo-se ao caso da imagem do Senhor do Arieiro, disse que “se efectivamente ela estava exposta no cemitério ocidental dessa cidade, fôra para lá por algum tempo, voltando para Tavarede logo que isso fosse exigido. E agora, visto que se vai tratar de acabar a capela do nosso cemitério, e que é para ali que o Senhor da Arieira está destinado, ele viria imediatamente da Figueira”.

         Acrescentou depois “o facto que o levara a dispensar para ali a referida imagem fôra apenas por saber que ela não era aqui necessária por enquanto e tanto mais por a ver desprezadíssima numa casa contígua à igreja paroquial. Como o Senhor volta para Tavarede, fica sanada esta questão e oxalá agora que a capela do cemitério se conclua”.

         E não encontrei nada mais nos jornais figueirenses, nenhuma alusão ao caso da imagem do Senhor Crucificado, também chamado Senhor do Arieiro ou Arieira.


Tavarede no Teatro - 20

         E fazem-se as apresentações. O Paço do Conde

                                      “Amigo d’outrora,
                                      Vê minha figura!
                                      Sou um pardieiro
                                      Sem arquitectura.

                                      Brilhei muito em festas...
                                      Hoje abandonado...
                                      Sou podre palheiro,
                                      Sou curral de gado!”

         O Rio Velho também se lamenta. E responde:

                                     “Tenha paciência, fidalgo,
                                      Também tive a minha conta:
                                      Vê-me estreito, porco e seco,
                                      Pois fui rio d’alta monta.

                                      De mim era a terra ufana,
                                      Tive cais, tive aduana,
                                      Fui muito tempo feliz.
                                      Agora é grande desgraça.
                                      Quem me busca ou por mim passa
                                      Tem de tapar o nariz”.

         Sim, senhor. Era verdade. E a sua história bem triste, por sinal. “Fui nobre e generoso. Acolhi em meu seio os Condes de Tavarede, tive luxo, fortuna e privilégios. Eram sagrados os meus velhos muros, e mancebo que a eles se encostasse, estava livre de ser soldado. De simples e despretencioso solar, transformaram-me em imponente palácio. Lavraram-me cantarias, ergueram sobre os meus ombros arrogantes torreões. Ai! Pobre de mim! Embranqueceram-me os cabelos e senti-me abandonado ao tempo. A chuva repassou-me as carnes, penetrou-me até aos ossos, e hoje tenho o cavername apodrecido. O grande torreão, desapareceu. Os salões arruinaram-se. E hoje não sou mais do que uma ruína aproveitada para curral de bois e carneiros para o matadouro. Ao que cheguei!”. Ao que tinha chegado o nobre solar quinhentista. E isto, não esqueçamos, há já mais de setenta anos!

         Mas o Rio Velho não estava melhor. “Dê cá a mão, amigo. Somos irmãos na desgraça. Fui mar, e até mim chegavam as embarcações carregadas de mercadoria. Nos meus domínios estava a Alfândega de Tavarede. E hoje? Não passo de um ribeiro sujo onde só navegam barquitos de casqueira, e de uma viela porca para onde despejam cascas de mexilhões, e... o resto. Agora chamam-me Rio Velho e quando passam por mim tapam o nariz. Eu que fui rico e forte, reduzido a beco da Dona Lúcia!”.

         Pobres velhos e curiosas histórias. Falam do passado e das tradições da terra com imensa saudade. Havia outros monumentos. Também havia a fonte, mas esta tinha o defeito de ser muito escorregadia, o que fazia com que algumas raparigas caissem e, ao cair, partiam as bilhas ou, pelo menos, rachavam-nas. Apegavam-se então ao santo António, mas até o Santo se queixava de que eram muitas bilhas para um Santo só...

         Recordo-me que Tavarede tinha grande quantidade de gado leiteiro. Manhã cedo, ainda escuro, lá iam as leiteiras, carregadas com os latões bem cheinhos de leite fresquinho, fazer a sua venda. Tinham as suas freguesas certas, já habituais. Mas, um belo dia, surgiu um novo problema. Então não é que os latões tinham de ser selados e o leite inspeccionado? Nem todas aceitaram o facto de boa-mente.

Leiteira - Éh! seu raio! Largue o latão. Seu alma danada... Antão, hein!
Polícia - Não refile já lhe disse. Escusa de estar a fugir com o latão à torneira, porque não tem remédio senão aguentar com ela.
Leiteira - O raio que o parta!

Leiteira -                        Seu basculho!
                                      Seu masmarro!
                                     Outra vida!
                                     Ora o alma de chicharro!
                                    O polícia
                                    Patarata
                                    Quer que eu meta
                                    Uma torneira na lata!
                                    Com tal birra
                                    Não se enfeite
                                    Que tem fama
                                    A pureza do meu leite.
                                    Forte bruto!
                                    Vai p’ró raio
                                    Que te parta!
                                    Nessa fita é que eu não caio.

Polícia -                       Oh! grande malcriada,
                                    De ti não tenho dó.
                                    Aplico-te a postura
                                    E vais p’ró chelindró!
                                    Tapa-me essa buzina,
                                     Basta de baboseira.
                                     Já te disse e repito:
                                     Vou meter a torneira.

Leiteira -                       Seu basculho!
                                     etc. etc. etc.

Tio Joaquim - Mas vamos lá a saber, o que vem a ser isso?
Leiteira - Pois... Já a gente não pode usar o que é seu. Não deixam vender o leite em latões abertos. Querem que a gente vá todos os dias à revista c’os latões.
Polícia - Olá! O leite todos os dias analisado para se saber se é leite ou o que é. Pois então! É da nova postura. A boca dos latões fechada e selada, e em baixo mete-se-lhe a torneira por onde sai o leite, que é para evitar falsificações. Mas isto é que menina não quer nem à mão de Deus Padre. Queria continuar a envenenar a Humanidade, misturando no leite água e outra coisa que parece água mas que não é água. Com que então, vender o leite com o latão aberto?... Mas isso não era leite, era queijo...
Leiteira - Oh, seu raio! Você não me esteja a tentar. Olhe que eu já não o vejo bem.
Polícia - (cantarolando) Maria, são teus olhos azeitonas...
Leiteira - Vá fazer pouco da sua geração. Por causa da torneira ainda você há-de saber quem eu sou.
Polícia - Você é que não tarda muito que vá de ventas à torneira com uma traulitada nos queixos. Ande lá para diente. Em chegando à Figueira eu lhe contarei um conto. Ande lá para diente.

         Segundo diz o Tio Joaquim, as falsificações estavam muito desenvolvidas cá na terra. Era o leite, o vinho, o azeite, o açúcar, a manteiga... Os comerciantes não resistiam. Mas agora, com as fiscalizações que havia, o lucro fácil tinha acabado. Se se descuidavam, pumba, multas para cima. E bem pesadas.

         O “Mercúrio”, como deus do comércio, é que lhes podia acudir com um milagresinho. “Por esse país fora, uma grande parte do comércio está na estica. Houve um tempo em que tudo eram lucros. Foi encher... encher, e tanto encheram que muitos rebentaram. Os preços subiram por aí acima, voavam que até se perdiam de vista. Nem admira, era Vossa Senhoria que lhes dava asas... Costuma dizer-se que para baixo todos os santos ajudam, mas neste caso para baixo custa mais a vir...”.

         Não podiam faltar a Sopeira e o seu Impedido. Vinham à fonte, à água pura e fresca. Mas, cuidado, menina, não vá rachar a sua bilha...

         Encontram depois o Aeroplano, alcunha daquele tavaredense que andava sempre nas núvens, triste e pensativo. Era o mordomo das festas da Igreja e, coitado, agora tinha bastantes motivos para andar triste e pensativo. Pois se o dinheiro do peditório, que havia sido levado para a sacristia, tinha desaparecido misteriosamente! Quem roubaria o dinheiro, e logo diante da imagem do Senhor dos Aflitos? Bem aflito estava o pobre do Aeroplano. Pudera, aí à volta de uns duzentos mil reis... Ná! Aquilo era bruxedo, pela certa. Mas em Tavarede havia assim tantas bruxas, pergunta o deus Mercúrio?


sábado, 17 de outubro de 2015

O Senhor do Areeiro - 2

O SENHOR DO ARIEIRO

  
         “... recorda-nos uma outra (capela), que existiu, também para o lado poente de Tavarede. Era situada no cruzamento do caminho directo desta cidade aos Condados, e que daquele que vai de Tavarede a Buarcos, próximo da quinta de Luís António de Sousa e a uns quatrocentos metros para o lado do poente de Tavarede.
        
         Existiu sob a invocação do Senhor da Arieira ou do Arieiro, naturalmente por ser edificada em um lugar aonde o povo ia extrair areia ou saibro para construcção de alvenarias. Em 186.. só existiam dela, no local, uns restos de alicerces e algumas pedras aparelhadas, soltas. Mais nada.
        
         Contava-se na povoação que havia sido interdita e depois demolida em virtude dum sacrilégio cometido: Um desvairado qualquer foi em uma noite pendurar um enxalavar de caranguejos sobre uma cruz que lá existia, profanando assim aquele lugar sagrado, e daí a interdição.
        
         O povo de Tavarede atribuíu o sacrilégio a algum pescador de Buarcos.
        
         Ao certo nada sabemos desta narrativa, contentando-nos apenas da dicção da tradição como era contada entre o povo das proximidades da capela”.

         Antes de continuarmos com a história do Senhor do Arieiro (preferimos esta forma à de Arieira, mas é só uma questão nossa), também queremos referir que, respondendo ao inquérito paroquial de 1721, o então pároco de Tavarede informa que “estava antigamente um nicho com Senhor Crucificado, no fim da terra para a parte do ocidente, que representava ser muito antigo; que hoje está fechado com porta e com toda a decência; que tem obrado muitos milagres; e vai obrando – suando a sua Santa Imagem e a coluna em que está posto, como se tem visto em certos dias”.

         Nas “Memórias Paroquiais de 1758”, o cura Anacleto Pinto refere a ermida do “Senhor dos Milagres ou Arieira”, contigua a Tavarede, mas fora da povoação.

         Depreende-se do exposto, que o nicho com a imagem do Senhor Crucificado foi transformado numa pequena ermida onde estava devidamente resguardada e protegida, a qual, depois do “sacrilégio” do “enxalavar”, foi demolida.

         Quanto à imagem, uma notícia de 1899, publicada na “Gazeta da Figueira”, diz o seguinte: “Acabamos de saber que alguns paroquianos desta freguesia se vão agregar em comissão para colher dos habitantes da mesma freguesia donativos suficientes para o acabamento interior da capela do nosso cemitério, mandada edificar pela junta de paróquia presidida pelo saudoso e benemérito cidadão sr. João José da Costa.
        
        Foi este malogrado cavalheiro quem teve a louvável ideia de se mandar ali construir aquela capela, com o propósito de nela ser colocada a veneranda imagem do Senhor da Arieira, e de servir também para lá instalar o Santíssimo Sacramento e as imagens que se vêem na igreja, quando por qualquer motivo isso fosse necessário.


         Capela do cemitério actual, mandada construir por João José da Costa, presidente da Junta de Paróquia, para lá se colocar a imagem do Senhor do Arieiro
        
A comissão a que nos referimos vai oficiar à junta de paróquia, a fim de esta conceder autorização para levar a cabo os seus honrosos intentos, visto ela não ter até hoje, passados que são uns poucos de anos depois da morte do iniciador da construção da capela, o sr. João José da Costa, conseguido lançar nos seus orçamentos uma pequena verba destinada a acabar tão útil obra, começada por um homem a quem se deviam acatar e respeitar as intenções.
        
         Honra seja, portanto, àqueles que vão concluir a capela, e oxalá que todas as pessoas desta freguesia contribuam para tal fim.
        
         Agora há uma coisa séria a resolver e de que a mesma comissão vai tratar, que é de averiguar a forma como a imagem do Senhor da Arieira, dada a Tavarede pelos proprietários da extinta capela daquele nome, foi ter à casa de depósito do cemitério ocidental dessa cidade, sem que, segundo o que ouvimos, fosse autorizado para o fazer qualquer dos membros da junta.
        
         Eis um assunto que aqui tem levantado grande celeuma, porque não só a imagem representa para os paroquianos de Tavarede um grande valor, mas também porque estava destinada a ocupar um lugar determinado por um homem cuja memória é sempre invocada com todo o respeito.
        

         E, francamente, também não admitimos que a junta de paróquia ou algum dos seus membros possa assim fazer, leviana e inconscientemente, oferta duma imagem daquelas, como se fôra uma coisa sem valor e que de direito não pertencesse à nossa freguesia, que é como quem diz aos tavaredenses.

Tavarede no Teatro - 13

Retalhos e Fitas



         É uma pequena revista esta. “Retalhos e Fitas” tem um acto e três quadros. Foi integrada no espectáculo do 24º. aniversário da Sociedade de Instrução. Tal como a anterior “O Grão-ducado de Tavarede”, teve a autoria de João José, pseudónimo usado pelos seus dois autores: João Gaspar de Lemos Amorim e José da Silva Ribeiro.

         A música, 14 números, era original e coordenada pelo figueirense António Maria de Oliveira Simões. Com uma magnífica orquestra e luxuoso guarda-roupa, “pode dizer-se que esta récita de gala teve, num meio pequeno e de gente humilde, como o de Tavarede, foros de acontecimento artístico. Por isso mesmo felicitamos todos os que nele colaboraram”.

         Foram estes os pequenos comentários encontrados nos jornais de então. A acção da peça decorre no Largo da Igreja, os dois primeiros quadros, e no palácio da Princesa das Fitas, no último, onde terminava com uma apoteose.

         Quando sobe o pano, o Largo encontra-se cheio de homens e mulheres do povo que, em volta do Tio Joaquim, olhavam para o céu com vidros fumados, como se estivessem a ver um eclipse do sol. Parece uma bola, diziam alguns apontando para o ar. Mas, fosse o que fosse, não vinha no “repertório” e lá vem tudo indicado, desde os cometas até aos eclipses e outras coisas no género. E para aquele dia não havia lá nada!

         Supersticiosas, as mulheres de Tavarede logo se lembraram de gritar que era o fim do mundo e que, certamente, o que aí vinha era um grande cometa, que cairia em cima da terra e arrasaria tudo! Mas o estranho era que os cometas deixam gáses e têm rabo e este não... Parecia uma bola, uma grande bola, e nada mais.

         Quem era, que não era, chegaram brevemente à verdade. Tratava-se nada mais nada menos que o planeta Mercúrio, deus do comércio e dos ladrões. Como, naquela ocasião, passava perto da terra e como tinha chegado ao seu planeta a fama da grande fita dos badalos em Tavarede, aproveitou a ocasião para fazer uma visita a lugar de tanta nomeada. E nem sequer mudou de indumentária. Vinha tal e qual como andava lá pelos seus domínios celestiais.

         Para o receber e acompanhar na visita, nada melhor que o Tio Joaquim. Mas, quem era o Tio Joaquim?

Mercúrio - Se me não engano, estou na Terra do Limonete, não é verdade?
Tio Joaquim - Exacto. Terra de muita fama e de pouco proveito...
Mercúrio - E posso saber a quem tenho a honra de estar falando?
Tio Joaquim - Ao Tio Joaquim. É como todos me tratam: tio Joaquim. Cá na terra há mais Joaquins, mas Tio Joaquim há só um, que sou eu! É como lhe digo. Até os correios assim me conhecem. Os avisos da décima trazem só: Tio Joaquim - Tavarede. E cá vêm ter.
Mercúrio - É então pessoa de alta importância...
Tio Joaquim - Não é por me gabar, mas graças a Deus, sou, sim senhor. Abaixo do senhor Vigário, sou eu. Cá na Terra toda a gente me consulta, toda a gente quer saber a minha opinião, todos querem o meu conselho. Sou eu quem regula o amanho das terras da freguesia: “Oh João, aproveita esta estiada para a sementeira da leira da baixa. Ó Manel, trata-me da vinha, que se te vai embora se não lhe acodes c’o sulifate. Não te descuides c’os tomates, Zé da Estina, amarra-os se os queres ter grandes. Etc. etc. Eu é que digo o que se há-de semear neste crescente, eu é que aviso se vem chuva ou se temos bom tempo p’ró minguante.
Mercúrio - É o barómetro da freguesia.
Tio Joaquim - Lá isso de barómetro não sei o que é. Sou assim uma espécie de folhinha, de Borda d’Água. Dizem os jornais que agora na Itália o Massolini é que manda no trigo, ele é que diz se as terras hão-de dar muito ou pouco. Mal comparado, eu sou o Massolini da agricultura cá da terra. E às vezes não basta o conselho. É preciso obrar. E eu obro muitas vezes nas terras dos outros. Quem quer bons enxertos, vem ter comigo. Ninguém os faz melhor.
Mercúrio - Nessa idade?
Tio Joaquim - Sei mais disso que os novos, e ainda não me falta firmeza para abrir o golpe no cavalo e meter o garfo.
Mercúrio - Acredito.
Tio Joaquim - Se são precisos louvados para avaliações ou para partilhas vêm-me chamar; e nos compromissos de gado nada se faz sem mim. Não há curral de porcos em que eu não tenha entrado. Em questões de porcaria ninguém me leva a melhor.
Mercúrio - Vejo que fui muito feliz em aqui o encontrar. Ninguém melhor do que o Tio Joaquim poderá mostrar-me o que nesta aldeia há de notável. Uma terra velha como esta deve possuir curiosos e históricos monumentos. Se me não falha a memória, reza a história que quando Cristo andou pelo mundo já existia Tavarede.

Tio Joaquim - Sim, senhor, é verdade. Terra velha e rija... Teem passado anos e séculos e Tavarede é hoje a mesma aldeia pequena, a mesma pobreza, a mesma miséria. Não se faz uma casa, e as que caiem, vão aumentando as ruínas. Nem de propósito: Aí veem dois monumentos históricos que são duas ruínas célebres: O Paço do Conde e o Rio Velho.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O Senhor do Areeiro 1

Vitor Medina







O Senhor dos Milagres

(Os 4 caminhos do Areeiro)




Pequenas histórias evocativas dos
Quatro Caminhos do Senhor do Areeiro






QUATRO CAMINHOS DO SENHOR DO ARIEIRO





         Uma das primeiras referências encontradas, na imprensa figueirense, sobre o lugar dos Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro, surge numa descrição dos caminhos que conduzem à Figueira precedentes do norte do concelho e que passam junto, ou relativamente próximo da nossa terra, a propósito do projecto então apresentado para o traçado da futura estrada de Aveiro à Figueira da Foz.

         Em determinada altura diz-se “... duas ramificações desta serra – uma do ponto da povoação da Serra, prolongando-se pelos Condados para o sul, até chegar ao lugar do Senhor do Arieiro a 600 metros ao poente de Tavarede, onde termina limitando o horizonte dessa povoação por este lado...”. Um pouco mais à frente, continua: “... Um outro monte principia a elevar-se junto ao Senhor do Arieiro, continuando a ramificação da serra perdida naquele ponto. A partir dali, o monte continua por alguma distância e divide-se depois em três partes: uma segue para sudoeste, e é aquela em que assenta a nossa igreja matriz (S.- Julião); outra, paralela a esta, é a base da Rua da Lomba (actual Rua José da Silva Fonseca); a terceira, crescendo do Pinhal para sueste, assenta nela o Casal da Lapa, indo depois perder o nome junto dos estaleiros.

         A esta estrada, da Serra da Boa Viagem à Figueira da Foz, cruza, no chamado lugar do Senhor do Arieiro, com a velha estrada que vem de Caceira a Buarcos, passando pela Chã e por Tavarede, onde sempre foi considerada a principal rua. Era, portanto, um cruzamento de duas vias, como há tantos.

         Quando completei sete anos de idade, isto em 1942, comecei a percorrer diariamente o caminho entre minha casa, sita na rua Direita, um pouco abaixo do Largo do Paço, até aos Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro, para frequentar a escola primária. Naquele tempo, diga-se desde já, aquela zona era totalmente diferente de hoje. A única coisa que se reconheceria seria o edifício da escola, embora já tenha sofrido algumas alterações.

         Entretanto, o local do cruzamento das estradas, já tinha sofrido algumas modificações, pois, havendo sido decidido transferir para ali a feira semanal de gado suíno que se realizava ao Pinhal das Águas, foi criado o espaço necessário para a mesma, conforme veremos mais adiante.

         Tentemos, agora, descrever o local. Partindo de Tavarede e até chegar ao referido cruzamento, do lado esquerdo ficava a Quinta do Paço, ao tempo pertencente a Marcelino Duarte Pinto, comerciante e talhante na Figueira da Foz, e à direita, depois da quinta de José Duarte e alguns terrenos de cultura, onde já haviam sido construidas três ou quatro casas, situava-se a escola primária, com um pouco de terreno anexo, em cunha, onde tínhamos o recreio. Àquele sítio também chamavam, e ainda o chamam, “Calvário”, certamente por ali ter havido um “nicho” com um “Senhor Crucificado” e uma capela. Àquele “nicho” e àquela imagem também davam o nome do Senhor do Arieiro e ali fizeram uma capelinha, como veremos.

         Passado o cruzamento da estrada vinda da Serra da Boa Viagem, havia, do lado direito, uma casa onde, no rés do chão e anexo, haviam estabelecido uma mercearia e taberna, um enorme arieiro, donde ainda extraiam o saibro, para fabricação dos adobes, utilizados na construção de paredes e muros, assim como no macadame para pavimentação das estradas e caminhos. Depois do arieiro e da casa havia um pinhal, onde se juntavam famílias da terra e da Figueira, normalmente no dia da “Merenda Grande”, bem como em certas tardes do verão quando havia festas populares em Tavarede e que aproveitavam a sombra e fresquidão do lugar para merendarem e descansarem um pouco. A seguir, e na direcção a Buarcos, ficava a Quinta da Borlateira e a Quinta da Calmada.

         Do lado oposto, ficavam as instalações da antiga cerâmica, já desactivada. Muitas eram as vezes que para ali íamos brincar e aproveitávamos para, dentro dos enormes fornos, procurar os pequenos triângulos de barro, que eram utilizados para a separação dos pratos durante a cozedura.

         De uma forma breve e talvez pouco esclarecedora, era assim o lugar dos Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro. Irei tentar, a partir dos elementos de que disponho, contar a história deste local.





 















sábado, 10 de outubro de 2015

Tavarede no Teatro - 18

         “Eu cá sou assim. Conforme me convém, sou branco ou preto. Se vou à Mata, ao futebol, sou do Ginásio ou da Naval, do Sporting ou dos Caixeiros, conforme convém. Se vou às Alhadas, sou do Ateneu ou da Música, conforme convém; sou monárquico ou republicano, conservador ou bolchevista, como convém. Isto de ter só uma cara, é bom p’rás pessoas honradas. E o que é preciso é saber governar a vidinha”.

         Ainda viram mais alguns produtos. Mas eis que chega a Grã-duquesa:

Grã-Duqueza - (entrando) Snr. Comissário. Snr. Nêspera Cajú.
Nêspera - Alteza.
Grã-Duqueza - Convidei-o a vir aqui porque não desejava que regressasse ao Brasil sem que eu própria lhe mostrasse um dos mais belos aspectos do meu Grão-Ducado: Tavarede florida. Mas diga-me. Que impressão lhe deixou esta capital?
Nêspera - A melhor, Alteza. É uma grande terra, modernizada, rica e civilizadíssima. Ainda há pouco tive ensejo de apreciar algumas belas manifestações da civilização tavaredense. Em todo o caso, parece-me que há taberna a mais e educação a menos. Longe de mim a ideia de censura.
Grã-Duqueza - Sim, é possível, mas olhe que não se dá por isso. Não temos razão de queixa da taberna. O povo é bom, continua a pagar as suas contribuições no tempo devido e isto é o essencial.
Comissário - E a verdade é que Tavarede progride. Na nossa terra tudo é grande: São grandes as avenidas, são grandes os edifícios, é grande a riqueza pública...
Nêspera - É grande a má língua do mulheredo, é grande a irmandade do S. Martinho, são grandes a maldade e a estupidez dos que partem as árvores dos caminhos.
Grã-Duqueza - E é grande, imenso, inesgotável de beleza e de perfume o nosso jardim.
Comissário - É verdade. Parece que a nossa terra foi tocada pela varinha mágica da fada das flores. Pode ser frouxa a seara do trigo, podem as geadas ter derretido as hortaliças, pode a estiagem ter dizimado os milharais que por toda a parte, no recanto duma leira, no abrigado dum valado, contra os muros dos quintais, nos canteiros talhados junto à horta e por todos os quintalejos das casas, a Natureza se mostra generosa e bela na abundância de flores, as mais variadas na forma, na cor e no aroma. Vou mostrar-lhe alguns formosos exemplares. (entram as flores) Ei-los.
Grã-Duqueza - Veja, admire-as; o crisântemo imponente falando-nos com orgulho das coisas orientais; a graciosa papoila; a rosa delicada, a modesta violeta; o malmequer simbólico, a perfumada glicínia; o doirado girassol, sempre voltado para o astro-rei. Aromas diferentes, diferentes cores e variadas formas, e todas igualmente belas.

Coro das Flores -  
Não há fidalgo ou brasileiro
Que em seu jardim
Possa mostrar assim
Tantas graças num canteiro
A rosa, flor arrogante,
Disputa a palma ao girassol
O petulante
Que julga ser um sol.
Rubra e farfalhuda
A papoila alegre, em festa,
Nem olha a violeta muda
Que se esconde modesta.
Quem não tiver
Um malmequer
Não chega a fazer sentidio
Se é ou não correspondido.
Moça taful
Que quer marido
Abre os braços à glicícia azul.

Grã-Duqueza - Temos flores em todo o ano. Mesmo no inverno, os frios e as chuvas não conseguem apagar nas roseiras a chama vermelha duma rosa de todos os meses, e nas leiras que hão-de dar o pão, tremeluzem os junquilhos perfumados.
Comissário - E na primavera, então, é um deslumbramento, é uma sinfonia de cor e de perfume. Parece que as roseiras bebem na luz do sol o veludo das carícias, que os cravos guardam o lume duma cantiga d’amor; os lírios a imagem das almas boas que sofrem sem queixume; os miósotis o gosto duma saudade, o limonete o ruído alegre das cavalhadas do S. João: E por toda a parte há flores, muitas flores, lindas flores.
Grã-Duqueza - Eu não queria que regressasse ao Brasil sem admirar a principal beleza do meu Grão-Ducado: a da flores.
Nêspera - Alteza: Muito vos agradeço esta maravilhosa impressão de beleza, de alegria, de ternura, de amor e de saúde que a minh’alma acaba de receber. Dos meus olhos deslumbrados apaga-se a visão da grande cidade de Tavarede, capital do vosso Grão-Ducado, com as suas avenidas grandiosas, os seus históricos monumentos, os seus palácios imponentes e a sua adiantada civilização, e vejo uma pequena aldeia, muito velha, muito atrazada e muito pobre, mas cuja pobreza se esconde sob um manto deslumbrante de flores, como se toda a povoação não fôsse senão um jardim maravilhoso, onde morassem fadas e sob o qual o sol deixasse caír continuamente a alegria da sua luz. Guardarei na minha alma agradecida esta última impressão da terra de meu Pai. A visão deslumbradora de Tavarede florida.


                                                        *  *  *


         E que encontrei nos jornais? Muito pouco. Em “A Voz da Justiça”, de 20 de Abril de 1927, vem a principal notícia. Transcrevo-a integralmente.

         “A revista Grão-ducado de Tavarede levou ao teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense, no pretérito sábado, uma enchente completa, vendo-se entre a assistência muitas pessoas dessa cidade.
         O espectáculo agradou, podendo dizer-se com verdade, que causou extraordinária sensação nos espectadores tavaredenses, para os quais êste género é quasi novidade.
         A música é lindíssima, alegre, bem escolhida e perfeitamente ajustada aos personagens e às situações. António Simões, o distinto amador figueirense, foi extraordinariamente feliz na partitura do Grão-ducado de Tavarede. A êle especialmente se deve o êxito da revista.
         Os amadores, áparte naturais deficiências que sempre podem notar-se nestes grupos de aldeia, souberam dar uma curiosa e, nalguns casos, brilhante interpretação aos diversos papéis. Idalina Fernandes fez explêndidamente como ninguém faria melhor, a scena da civilização local em que, na volta do rio, as mulheres se descompõem; foi graciosa na Maçã e cantou muito bem o fado da Taberna. António Graça, António Santos e Emília Monteiro, todos muito bem nos seus papéis. Jaime Broeiro mostrou-se o bom amador que é no Compadre, no Cavador e no Zé Borrachão. Dois bons tipos bem reproduzidos: o do Poeta João e O da Batuta, apresentados por José Vigário e António Broeiro, tendo êste feito também correctamente um dos Compadres. João Cascão, foi primorosamente no Nabo, no Café e no Aguilhão, tendo representado com alegria e vivacidade e cantando muito bem os seus números, brilhando especialmente no Dueto da Hortaliça, com Alzira Fadigas. Francisco Carvalho e Clementina de Oliveira têm também um bom dueto no Impedido e a Sopeira, além de outros papéis; esta foi muito aplaudida na Canção da Árvore, que cantou com linda voz e foi obrigada a bisar. Maria José da Silva fez muito bem o papel de Brenha, cantando esplêndidamente a sua parte no terceto com J. Cachulo e F. Rôla, o qual foi também bisado. A Pinto, J. Mota e Maria Tereza de Oliveira e os restantes, todos fizeram a sua obrigação. Os coros muito firmes.
         Os scenários são bons, tendo sido muito apreciados, principalmente o do Inferno e o das Flores. O quadro da Lavoura encantou a assistência. Por isso mesmo é de justiça atribuir ao distinto artista sr. Alberto Correia de Lacerda, que fez as maquettes e dirigiu a pintura dos scenários uma boa parte do êxito da revista. Merece também referência especial o guarda-roupa, que é variado, luxuoso e tem algumas fantasias de belíssimo efeito, pelo que foi muito elogiada a srª. D. Belmira Pinto dos Santos, que revelou muito bom gôsto na sua confecção.
         O Grão-ducado de Tavarede dá no próximo sábado a sua última récita, o que equivale a dizer que o teatro vai ter nova enchente à cunha, dado o extraordinário agrado que a revista alcançou.
         Alguns números da revista estão popularizados e começam a ser cantados pelo povo com os seus lindos versos!”.

         Uma última informação. A peça “Grão-ducado de Tavarede” deu quatro récitas! É verdade! O trabalho que terá sido necessário fazer para pôr em cena um espectáculo como este, cenários, guarda-roupa, ensaios, personagens, coros, músicas, e tudo o mais, para dar quatro representações! Pois é, mas é bom lembrar que, dado o primeiro espectáculo, imediatamente se começava a trabalhar na peça seguinte. Basta referir que, ainda antes de decorrer um ano após a última representação desta fantasia, uma outra subiria à cena e alcançaria inolvidável sucesso, como veremos.

         Mas, mais surpreendente é que, entre uma e outra, ainda houve tempo de ensaiar e integrar no espectáculo do aniversário de 1928, uma outra revista-fantasia sobre os usos e costumes de Tavarede! E passo, agora, a apresentá-la.



sábado, 3 de outubro de 2015

No primeiro de Maio da Várzea - 25

No primeiro de Maio da Várzea!


         Já me alonguei demasiado. Muita coisa fica, no entanto, para recordar. Tenho intenção de ainda compilar mais um caderno. As colectividades tavaredenses, por exemplo, são manancial quase inesgotável em histórias e figuras que, sem dúvida, bem merecem ficar recordadas na história da terra do limonete. E, como prometi algures, transcrever, na íntegra, alguns documentos referidos ao longo destes cadernos e que, encontrando-se dispersos por antigas publicações, não são de fácil consulta.

         Mas vou terminar com mais uma viagem à célebre fonte da Várzea. É uma história, uma das muitas histórias que encontrei. Vem ela lembrar-nos um dito bem antigo e bem conhecido: “se deixas entrar o Maio, ficas amarelo todo o ano!”. Foi esta historieta escrita na “Gazeta da Figueira”, no dia 1º de Maio de 1918:

         Na Várzea – Clareava vagamente. Um tinta lilaz escorria do alto, lambia as silharias dos predios, punha nas casas um recorte vago de violeta, e cahia nas ruas n’uma côr indecisa, que já não era luar mas, que inda não era dia...
         Subiam as cinco em larga risada aquella ladeira ingreme da Baixa. Eram costureiras do Bairro Novo, modistas de seu officio. Companheiras de trabalho, unhas com carne, amigas tezas, tinham combinado uma volta á Várzea, na manhã clara do primeiro dia do mez. E iam por’li arriba, em cata da Amália, uma d’olhos de lume que morava no topo da subida, mesmo á esquina...
         = Truz... Truz... – duas lambadas rijas na porta pintada de verde.
         De dentro, a voz fanhosa e aguda da senhora Ignácia, dona do prédio, chiou:
         = Crédo! Quem é?...
         = Somos nós, ti’Ignácia! Então a Amália inda não está prompta?
         = Vae já, vae já, meninas...
         E de facto a Amália surgiu inda a compôr o lenço azul-pavão, c’o chale ‘ós hombros derreados. Foi um restolho, uma roda de beijocas, e ó depois um segredinho muito juntinho á orelha d’onde pendia uma argola d’oiro com pedrinhas azues:
         = Vão lá ter todos, sabes?...
         A Amália toda se lambeu de satisfeita. E abalaram de longada mais contentes que um bando de pardaes.
         Já a manhã se percebia. Um rosa leve rasgava no nascente sombras que se diluiam, que se evaporavam. N’uma sebe, há descida da Várzea, mesmo rente á quinta do senhor João Rocha, um melro assobiou uma cantiga d’amor. O ar cheirava a cravos, a rosmaninho, a Primavera. E nas boccas frescas que palravam, o som das fallas e dos risos, tinha um timbre novo, um novo timbre d’oiro...
         N’um muro esbarrigado, cá baixo, estavam elles, os seis, de galhofa. Mãosadas longas, longos bons-dias, muita festa, muita gargalhada. E enaipado e certo, o grupo abalou...
Tomavam a estrada toda, aos pares, n’um arrulhar cantado de casaes de pombos. Um sol muito loiro, como os cabellitos muito loiros da Isaura, uma d’olhos glaúcos que ia babadinha de todo ao lado do seu rapaz, pintava no cimo dos arvoredos faúlhas de lume. Passarinhada feliz ria e palrava nas nevruras frágeis dos ramos tenros. As folhas d’um verde moço e lavado moviam-se em acenos de acolhimento dôce. Um prado largo, p’r’as bandas de Tavarede, fulgia todo esmeralda como um tapete de musgo. E as seis cachopas a mai’l-os seus rapazes, iam caminho fora, rezando n’um murmurio de rega coisas muito suaves e lentas...
         Um rancho do Casal do Rato, c’os potes todos floridos de rosas, passou n’um andar ligeiro e lesto ao som breve d’uns ferrinhos tilintando vivezaz d’um vira. Uma cantiga palpitou, tremeu, ficou no ar como um farrapo doirado...

                       Minha mãe case-me cedo
                       Emquanto sou rapariga!
                                                                                                                                   
E já a perder-se na volta, ainda a voz límpida e fesca da cachopa, a saracotear-se, a cirandar na frente da malta: 

                    Que o milho sachado tarde
                  Não dá palha, nem dá espiga!


         ... Ficára no ar um suave perfume a rosas brancas. O sol subira. O céu tornára-se d’um azul mais claro que os olhos azues claros da Philomena, a mais esguia do grupo, com uma blouse branca de rendas onde o busto do moringue se desenhava com pureza. N’uma pereira toda cobertinha de flôr, branca como uma noiva, um roixinol ria, ria perdidamente. Dois pardaes presos pelos bicos, bulhavam n’uma nuvem delgada de poeira. Passava um cortejo de andorinhas abrindo as azas de velludo ao ar fino e forte. E para a fonte caminhando sempre, sempre devagar, ia o grupo d’amorudos...
         N’isto, mesmo a chegar ao largo, dão de caras co’a Felismina, aquella rapariguinha que trabalha ali na Praça Velha, baixa, redondinha com’uma rôla, de cabellos d’azeviche e olhos negros e fundos, como dois poços fundos e negros...
         = Ih cachopa!... – tão pallida!
         ... Fez a Maria Emilia n’um pasmo, a vêr as caras das outras muito vermelhas, a sentir-se ella própria cheiinha de calor, assim com muito dó por isso da côr de marfim velho da pobre Felismina...
         E logo a Elysa, a mais alta, uma fausse-maigre d’olhos castanhos de malícias, com uma risadinha de troça...
         = Ai, mulher, que deixás-te entrar o Maio!...
         Risada geral. E a Felismina, sempre d’uma lividez de cyrio, os olhos muito cavados nas olheiras muito roxas, muito fundas, sem perder a linha, a sorrir, no mesmo ar de ironia das mais:

         = Ai!... ‘stão enganadas filhas! Não foi o Maio... foi o Maia!