No primeiro de Maio da Várzea!
Já me
alonguei demasiado. Muita coisa fica, no entanto, para recordar. Tenho intenção
de ainda compilar mais um caderno. As colectividades tavaredenses, por exemplo,
são manancial quase inesgotável em histórias e figuras que, sem dúvida, bem
merecem ficar recordadas na história da terra do limonete. E, como prometi
algures, transcrever, na íntegra, alguns documentos referidos ao longo destes
cadernos e que, encontrando-se dispersos por antigas publicações, não são de
fácil consulta.
Mas vou
terminar com mais uma viagem à célebre fonte da Várzea. É uma história, uma das
muitas histórias que encontrei. Vem ela lembrar-nos um dito bem antigo e bem
conhecido: “se deixas entrar o Maio, ficas amarelo todo o ano!”. Foi esta
historieta escrita na “Gazeta da Figueira”, no dia 1º de Maio de 1918:
Na Várzea – Clareava vagamente. Um tinta
lilaz escorria do alto, lambia as silharias dos predios, punha nas casas um
recorte vago de violeta, e cahia nas ruas n’uma côr indecisa, que já não era
luar mas, que inda não era dia...
Subiam as
cinco em larga risada aquella ladeira ingreme da Baixa. Eram costureiras do
Bairro Novo, modistas de seu officio. Companheiras de trabalho, unhas com
carne, amigas tezas, tinham combinado uma volta á Várzea, na manhã clara do
primeiro dia do mez. E iam por’li arriba, em cata da Amália, uma d’olhos de
lume que morava no topo da subida, mesmo á esquina...
= Truz...
Truz... – duas lambadas rijas na porta pintada de verde.
De dentro,
a voz fanhosa e aguda da senhora Ignácia, dona do prédio, chiou:
= Crédo!
Quem é?...
= Somos
nós, ti’Ignácia! Então a Amália inda não está prompta?
= Vae já,
vae já, meninas...
E de facto
a Amália surgiu inda a compôr o lenço azul-pavão, c’o chale ‘ós hombros
derreados. Foi um restolho, uma roda de beijocas, e ó depois um segredinho
muito juntinho á orelha d’onde pendia uma argola d’oiro com pedrinhas azues:
= Vão lá
ter todos, sabes?...
A Amália
toda se lambeu de satisfeita. E abalaram de longada mais contentes que um bando
de pardaes.
Já a manhã
se percebia. Um rosa leve rasgava no nascente sombras que se diluiam, que se
evaporavam. N’uma sebe, há descida da Várzea, mesmo rente á quinta do senhor
João Rocha, um melro assobiou uma cantiga d’amor. O ar cheirava a cravos, a
rosmaninho, a Primavera. E nas boccas frescas que palravam, o som das fallas e
dos risos, tinha um timbre novo, um novo timbre d’oiro...
N’um muro
esbarrigado, cá baixo, estavam elles, os seis, de galhofa. Mãosadas longas,
longos bons-dias, muita festa, muita
gargalhada. E enaipado e certo, o grupo abalou...
Tomavam a estrada toda, aos
pares, n’um arrulhar cantado de casaes de pombos. Um sol muito loiro, como os
cabellitos muito loiros da Isaura, uma d’olhos glaúcos que ia babadinha de todo
ao lado do seu rapaz, pintava no cimo dos arvoredos faúlhas de lume.
Passarinhada feliz ria e palrava nas nevruras frágeis dos ramos tenros. As
folhas d’um verde moço e lavado moviam-se em acenos de acolhimento dôce. Um
prado largo, p’r’as bandas de Tavarede, fulgia todo esmeralda como um tapete de
musgo. E as seis cachopas a mai’l-os seus rapazes, iam caminho fora, rezando
n’um murmurio de rega coisas muito suaves e lentas...
Um rancho
do Casal do Rato, c’os potes todos floridos de rosas, passou n’um andar ligeiro
e lesto ao som breve d’uns ferrinhos tilintando vivezaz d’um vira. Uma cantiga palpitou, tremeu,
ficou no ar como um farrapo doirado...
Minha mãe
case-me cedo
Emquanto
sou rapariga!
E já a perder-se na volta, ainda a voz
límpida e fesca da cachopa, a saracotear-se, a cirandar na frente da malta:
Que o
milho sachado tarde
Não dá
palha, nem dá espiga!
... Ficára no ar um suave perfume
a rosas brancas. O sol subira. O céu tornára-se d’um azul mais claro que os
olhos azues claros da Philomena, a mais esguia do grupo, com uma blouse branca de rendas onde o busto do
moringue se desenhava com pureza. N’uma pereira toda cobertinha de flôr, branca
como uma noiva, um roixinol ria, ria perdidamente. Dois pardaes presos pelos
bicos, bulhavam n’uma nuvem delgada de poeira. Passava um cortejo de andorinhas
abrindo as azas de velludo ao ar fino e forte. E para a fonte caminhando
sempre, sempre devagar, ia o grupo d’amorudos...
N’isto,
mesmo a chegar ao largo, dão de caras co’a Felismina, aquella rapariguinha que
trabalha ali na Praça Velha, baixa, redondinha com’uma rôla, de cabellos
d’azeviche e olhos negros e fundos, como dois poços fundos e negros...
= Ih
cachopa!... – tão pallida!
... Fez a
Maria Emilia n’um pasmo, a vêr as caras das outras muito vermelhas, a sentir-se
ella própria cheiinha de calor, assim com muito dó por isso da côr de marfim
velho da pobre Felismina...
E logo a
Elysa, a mais alta, uma fausse-maigre
d’olhos castanhos de malícias, com uma risadinha de troça...
= Ai,
mulher, que deixás-te entrar o Maio!...
Risada
geral. E a Felismina, sempre d’uma lividez de cyrio, os olhos muito cavados nas
olheiras muito roxas, muito fundas, sem perder a linha, a sorrir, no mesmo ar
de ironia das mais:
= Ai!...
‘stão enganadas filhas! Não foi o Maio... foi o Maia!
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