sábado, 3 de outubro de 2015

No primeiro de Maio da Várzea - 25

No primeiro de Maio da Várzea!


         Já me alonguei demasiado. Muita coisa fica, no entanto, para recordar. Tenho intenção de ainda compilar mais um caderno. As colectividades tavaredenses, por exemplo, são manancial quase inesgotável em histórias e figuras que, sem dúvida, bem merecem ficar recordadas na história da terra do limonete. E, como prometi algures, transcrever, na íntegra, alguns documentos referidos ao longo destes cadernos e que, encontrando-se dispersos por antigas publicações, não são de fácil consulta.

         Mas vou terminar com mais uma viagem à célebre fonte da Várzea. É uma história, uma das muitas histórias que encontrei. Vem ela lembrar-nos um dito bem antigo e bem conhecido: “se deixas entrar o Maio, ficas amarelo todo o ano!”. Foi esta historieta escrita na “Gazeta da Figueira”, no dia 1º de Maio de 1918:

         Na Várzea – Clareava vagamente. Um tinta lilaz escorria do alto, lambia as silharias dos predios, punha nas casas um recorte vago de violeta, e cahia nas ruas n’uma côr indecisa, que já não era luar mas, que inda não era dia...
         Subiam as cinco em larga risada aquella ladeira ingreme da Baixa. Eram costureiras do Bairro Novo, modistas de seu officio. Companheiras de trabalho, unhas com carne, amigas tezas, tinham combinado uma volta á Várzea, na manhã clara do primeiro dia do mez. E iam por’li arriba, em cata da Amália, uma d’olhos de lume que morava no topo da subida, mesmo á esquina...
         = Truz... Truz... – duas lambadas rijas na porta pintada de verde.
         De dentro, a voz fanhosa e aguda da senhora Ignácia, dona do prédio, chiou:
         = Crédo! Quem é?...
         = Somos nós, ti’Ignácia! Então a Amália inda não está prompta?
         = Vae já, vae já, meninas...
         E de facto a Amália surgiu inda a compôr o lenço azul-pavão, c’o chale ‘ós hombros derreados. Foi um restolho, uma roda de beijocas, e ó depois um segredinho muito juntinho á orelha d’onde pendia uma argola d’oiro com pedrinhas azues:
         = Vão lá ter todos, sabes?...
         A Amália toda se lambeu de satisfeita. E abalaram de longada mais contentes que um bando de pardaes.
         Já a manhã se percebia. Um rosa leve rasgava no nascente sombras que se diluiam, que se evaporavam. N’uma sebe, há descida da Várzea, mesmo rente á quinta do senhor João Rocha, um melro assobiou uma cantiga d’amor. O ar cheirava a cravos, a rosmaninho, a Primavera. E nas boccas frescas que palravam, o som das fallas e dos risos, tinha um timbre novo, um novo timbre d’oiro...
         N’um muro esbarrigado, cá baixo, estavam elles, os seis, de galhofa. Mãosadas longas, longos bons-dias, muita festa, muita gargalhada. E enaipado e certo, o grupo abalou...
Tomavam a estrada toda, aos pares, n’um arrulhar cantado de casaes de pombos. Um sol muito loiro, como os cabellitos muito loiros da Isaura, uma d’olhos glaúcos que ia babadinha de todo ao lado do seu rapaz, pintava no cimo dos arvoredos faúlhas de lume. Passarinhada feliz ria e palrava nas nevruras frágeis dos ramos tenros. As folhas d’um verde moço e lavado moviam-se em acenos de acolhimento dôce. Um prado largo, p’r’as bandas de Tavarede, fulgia todo esmeralda como um tapete de musgo. E as seis cachopas a mai’l-os seus rapazes, iam caminho fora, rezando n’um murmurio de rega coisas muito suaves e lentas...
         Um rancho do Casal do Rato, c’os potes todos floridos de rosas, passou n’um andar ligeiro e lesto ao som breve d’uns ferrinhos tilintando vivezaz d’um vira. Uma cantiga palpitou, tremeu, ficou no ar como um farrapo doirado...

                       Minha mãe case-me cedo
                       Emquanto sou rapariga!
                                                                                                                                   
E já a perder-se na volta, ainda a voz límpida e fesca da cachopa, a saracotear-se, a cirandar na frente da malta: 

                    Que o milho sachado tarde
                  Não dá palha, nem dá espiga!


         ... Ficára no ar um suave perfume a rosas brancas. O sol subira. O céu tornára-se d’um azul mais claro que os olhos azues claros da Philomena, a mais esguia do grupo, com uma blouse branca de rendas onde o busto do moringue se desenhava com pureza. N’uma pereira toda cobertinha de flôr, branca como uma noiva, um roixinol ria, ria perdidamente. Dois pardaes presos pelos bicos, bulhavam n’uma nuvem delgada de poeira. Passava um cortejo de andorinhas abrindo as azas de velludo ao ar fino e forte. E para a fonte caminhando sempre, sempre devagar, ia o grupo d’amorudos...
         N’isto, mesmo a chegar ao largo, dão de caras co’a Felismina, aquella rapariguinha que trabalha ali na Praça Velha, baixa, redondinha com’uma rôla, de cabellos d’azeviche e olhos negros e fundos, como dois poços fundos e negros...
         = Ih cachopa!... – tão pallida!
         ... Fez a Maria Emilia n’um pasmo, a vêr as caras das outras muito vermelhas, a sentir-se ella própria cheiinha de calor, assim com muito dó por isso da côr de marfim velho da pobre Felismina...
         E logo a Elysa, a mais alta, uma fausse-maigre d’olhos castanhos de malícias, com uma risadinha de troça...
         = Ai, mulher, que deixás-te entrar o Maio!...
         Risada geral. E a Felismina, sempre d’uma lividez de cyrio, os olhos muito cavados nas olheiras muito roxas, muito fundas, sem perder a linha, a sorrir, no mesmo ar de ironia das mais:

         = Ai!... ‘stão enganadas filhas! Não foi o Maio... foi o Maia! 



Sem comentários:

Enviar um comentário