sábado, 10 de outubro de 2015

Tavarede no Teatro - 18

         “Eu cá sou assim. Conforme me convém, sou branco ou preto. Se vou à Mata, ao futebol, sou do Ginásio ou da Naval, do Sporting ou dos Caixeiros, conforme convém. Se vou às Alhadas, sou do Ateneu ou da Música, conforme convém; sou monárquico ou republicano, conservador ou bolchevista, como convém. Isto de ter só uma cara, é bom p’rás pessoas honradas. E o que é preciso é saber governar a vidinha”.

         Ainda viram mais alguns produtos. Mas eis que chega a Grã-duquesa:

Grã-Duqueza - (entrando) Snr. Comissário. Snr. Nêspera Cajú.
Nêspera - Alteza.
Grã-Duqueza - Convidei-o a vir aqui porque não desejava que regressasse ao Brasil sem que eu própria lhe mostrasse um dos mais belos aspectos do meu Grão-Ducado: Tavarede florida. Mas diga-me. Que impressão lhe deixou esta capital?
Nêspera - A melhor, Alteza. É uma grande terra, modernizada, rica e civilizadíssima. Ainda há pouco tive ensejo de apreciar algumas belas manifestações da civilização tavaredense. Em todo o caso, parece-me que há taberna a mais e educação a menos. Longe de mim a ideia de censura.
Grã-Duqueza - Sim, é possível, mas olhe que não se dá por isso. Não temos razão de queixa da taberna. O povo é bom, continua a pagar as suas contribuições no tempo devido e isto é o essencial.
Comissário - E a verdade é que Tavarede progride. Na nossa terra tudo é grande: São grandes as avenidas, são grandes os edifícios, é grande a riqueza pública...
Nêspera - É grande a má língua do mulheredo, é grande a irmandade do S. Martinho, são grandes a maldade e a estupidez dos que partem as árvores dos caminhos.
Grã-Duqueza - E é grande, imenso, inesgotável de beleza e de perfume o nosso jardim.
Comissário - É verdade. Parece que a nossa terra foi tocada pela varinha mágica da fada das flores. Pode ser frouxa a seara do trigo, podem as geadas ter derretido as hortaliças, pode a estiagem ter dizimado os milharais que por toda a parte, no recanto duma leira, no abrigado dum valado, contra os muros dos quintais, nos canteiros talhados junto à horta e por todos os quintalejos das casas, a Natureza se mostra generosa e bela na abundância de flores, as mais variadas na forma, na cor e no aroma. Vou mostrar-lhe alguns formosos exemplares. (entram as flores) Ei-los.
Grã-Duqueza - Veja, admire-as; o crisântemo imponente falando-nos com orgulho das coisas orientais; a graciosa papoila; a rosa delicada, a modesta violeta; o malmequer simbólico, a perfumada glicínia; o doirado girassol, sempre voltado para o astro-rei. Aromas diferentes, diferentes cores e variadas formas, e todas igualmente belas.

Coro das Flores -  
Não há fidalgo ou brasileiro
Que em seu jardim
Possa mostrar assim
Tantas graças num canteiro
A rosa, flor arrogante,
Disputa a palma ao girassol
O petulante
Que julga ser um sol.
Rubra e farfalhuda
A papoila alegre, em festa,
Nem olha a violeta muda
Que se esconde modesta.
Quem não tiver
Um malmequer
Não chega a fazer sentidio
Se é ou não correspondido.
Moça taful
Que quer marido
Abre os braços à glicícia azul.

Grã-Duqueza - Temos flores em todo o ano. Mesmo no inverno, os frios e as chuvas não conseguem apagar nas roseiras a chama vermelha duma rosa de todos os meses, e nas leiras que hão-de dar o pão, tremeluzem os junquilhos perfumados.
Comissário - E na primavera, então, é um deslumbramento, é uma sinfonia de cor e de perfume. Parece que as roseiras bebem na luz do sol o veludo das carícias, que os cravos guardam o lume duma cantiga d’amor; os lírios a imagem das almas boas que sofrem sem queixume; os miósotis o gosto duma saudade, o limonete o ruído alegre das cavalhadas do S. João: E por toda a parte há flores, muitas flores, lindas flores.
Grã-Duqueza - Eu não queria que regressasse ao Brasil sem admirar a principal beleza do meu Grão-Ducado: a da flores.
Nêspera - Alteza: Muito vos agradeço esta maravilhosa impressão de beleza, de alegria, de ternura, de amor e de saúde que a minh’alma acaba de receber. Dos meus olhos deslumbrados apaga-se a visão da grande cidade de Tavarede, capital do vosso Grão-Ducado, com as suas avenidas grandiosas, os seus históricos monumentos, os seus palácios imponentes e a sua adiantada civilização, e vejo uma pequena aldeia, muito velha, muito atrazada e muito pobre, mas cuja pobreza se esconde sob um manto deslumbrante de flores, como se toda a povoação não fôsse senão um jardim maravilhoso, onde morassem fadas e sob o qual o sol deixasse caír continuamente a alegria da sua luz. Guardarei na minha alma agradecida esta última impressão da terra de meu Pai. A visão deslumbradora de Tavarede florida.


                                                        *  *  *


         E que encontrei nos jornais? Muito pouco. Em “A Voz da Justiça”, de 20 de Abril de 1927, vem a principal notícia. Transcrevo-a integralmente.

         “A revista Grão-ducado de Tavarede levou ao teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense, no pretérito sábado, uma enchente completa, vendo-se entre a assistência muitas pessoas dessa cidade.
         O espectáculo agradou, podendo dizer-se com verdade, que causou extraordinária sensação nos espectadores tavaredenses, para os quais êste género é quasi novidade.
         A música é lindíssima, alegre, bem escolhida e perfeitamente ajustada aos personagens e às situações. António Simões, o distinto amador figueirense, foi extraordinariamente feliz na partitura do Grão-ducado de Tavarede. A êle especialmente se deve o êxito da revista.
         Os amadores, áparte naturais deficiências que sempre podem notar-se nestes grupos de aldeia, souberam dar uma curiosa e, nalguns casos, brilhante interpretação aos diversos papéis. Idalina Fernandes fez explêndidamente como ninguém faria melhor, a scena da civilização local em que, na volta do rio, as mulheres se descompõem; foi graciosa na Maçã e cantou muito bem o fado da Taberna. António Graça, António Santos e Emília Monteiro, todos muito bem nos seus papéis. Jaime Broeiro mostrou-se o bom amador que é no Compadre, no Cavador e no Zé Borrachão. Dois bons tipos bem reproduzidos: o do Poeta João e O da Batuta, apresentados por José Vigário e António Broeiro, tendo êste feito também correctamente um dos Compadres. João Cascão, foi primorosamente no Nabo, no Café e no Aguilhão, tendo representado com alegria e vivacidade e cantando muito bem os seus números, brilhando especialmente no Dueto da Hortaliça, com Alzira Fadigas. Francisco Carvalho e Clementina de Oliveira têm também um bom dueto no Impedido e a Sopeira, além de outros papéis; esta foi muito aplaudida na Canção da Árvore, que cantou com linda voz e foi obrigada a bisar. Maria José da Silva fez muito bem o papel de Brenha, cantando esplêndidamente a sua parte no terceto com J. Cachulo e F. Rôla, o qual foi também bisado. A Pinto, J. Mota e Maria Tereza de Oliveira e os restantes, todos fizeram a sua obrigação. Os coros muito firmes.
         Os scenários são bons, tendo sido muito apreciados, principalmente o do Inferno e o das Flores. O quadro da Lavoura encantou a assistência. Por isso mesmo é de justiça atribuir ao distinto artista sr. Alberto Correia de Lacerda, que fez as maquettes e dirigiu a pintura dos scenários uma boa parte do êxito da revista. Merece também referência especial o guarda-roupa, que é variado, luxuoso e tem algumas fantasias de belíssimo efeito, pelo que foi muito elogiada a srª. D. Belmira Pinto dos Santos, que revelou muito bom gôsto na sua confecção.
         O Grão-ducado de Tavarede dá no próximo sábado a sua última récita, o que equivale a dizer que o teatro vai ter nova enchente à cunha, dado o extraordinário agrado que a revista alcançou.
         Alguns números da revista estão popularizados e começam a ser cantados pelo povo com os seus lindos versos!”.

         Uma última informação. A peça “Grão-ducado de Tavarede” deu quatro récitas! É verdade! O trabalho que terá sido necessário fazer para pôr em cena um espectáculo como este, cenários, guarda-roupa, ensaios, personagens, coros, músicas, e tudo o mais, para dar quatro representações! Pois é, mas é bom lembrar que, dado o primeiro espectáculo, imediatamente se começava a trabalhar na peça seguinte. Basta referir que, ainda antes de decorrer um ano após a última representação desta fantasia, uma outra subiria à cena e alcançaria inolvidável sucesso, como veremos.

         Mas, mais surpreendente é que, entre uma e outra, ainda houve tempo de ensaiar e integrar no espectáculo do aniversário de 1928, uma outra revista-fantasia sobre os usos e costumes de Tavarede! E passo, agora, a apresentá-la.



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