“Eu cá sou
assim. Conforme me convém, sou branco ou preto. Se vou à Mata, ao futebol, sou
do Ginásio ou da Naval, do Sporting ou dos Caixeiros, conforme convém. Se vou
às Alhadas, sou do Ateneu ou da Música, conforme convém; sou monárquico ou
republicano, conservador ou bolchevista, como convém. Isto de ter só uma cara,
é bom p’rás pessoas honradas. E o que é preciso é saber governar a vidinha”.
Ainda viram
mais alguns produtos. Mas eis que chega a Grã-duquesa:
Grã-Duqueza - (entrando)
Snr. Comissário. Snr. Nêspera Cajú.
Nêspera - Alteza.
Grã-Duqueza - Convidei-o
a vir aqui porque não desejava que regressasse ao Brasil sem que eu própria lhe
mostrasse um dos mais belos aspectos do meu Grão-Ducado: Tavarede florida. Mas
diga-me. Que impressão lhe deixou esta capital?
Nêspera - A melhor,
Alteza. É uma grande terra, modernizada, rica e civilizadíssima. Ainda há pouco
tive ensejo de apreciar algumas belas manifestações da civilização tavaredense.
Em todo o caso, parece-me que há taberna a mais e educação a menos. Longe de
mim a ideia de censura.
Grã-Duqueza - Sim, é possível,
mas olhe que não se dá por isso. Não temos razão de queixa da taberna. O povo é
bom, continua a pagar as suas contribuições no tempo devido e isto é o
essencial.
Comissário - E a verdade
é que Tavarede progride. Na nossa terra tudo é grande: São grandes as avenidas,
são grandes os edifícios, é grande a riqueza pública...
Nêspera - É grande a
má língua do mulheredo, é grande a irmandade do S. Martinho, são grandes a
maldade e a estupidez dos que partem as árvores dos caminhos.
Grã-Duqueza - E é grande,
imenso, inesgotável de beleza e de perfume o nosso jardim.
Comissário - É verdade.
Parece que a nossa terra foi tocada pela varinha mágica da fada das flores.
Pode ser frouxa a seara do trigo, podem as geadas ter derretido as hortaliças,
pode a estiagem ter dizimado os milharais que por toda a parte, no recanto duma
leira, no abrigado dum valado, contra os muros dos quintais, nos canteiros
talhados junto à horta e por todos os quintalejos das casas, a Natureza se
mostra generosa e bela na abundância de flores, as mais variadas na forma, na
cor e no aroma. Vou mostrar-lhe alguns formosos exemplares. (entram as flores)
Ei-los.
Grã-Duqueza - Veja,
admire-as; o crisântemo imponente falando-nos com orgulho das coisas orientais;
a graciosa papoila; a rosa delicada, a modesta violeta; o malmequer simbólico,
a perfumada glicínia; o doirado girassol, sempre voltado para o astro-rei.
Aromas diferentes, diferentes cores e variadas formas, e todas igualmente
belas.
Coro das Flores -
Não há fidalgo ou
brasileiro
Que em seu jardim
Possa
mostrar assim
Tantas
graças num canteiro
A
rosa, flor arrogante,
Disputa
a palma ao girassol
O
petulante
Que
julga ser um sol.
Rubra
e farfalhuda
A
papoila alegre, em festa,
Nem
olha a violeta muda
Que
se esconde modesta.
Quem não tiver
Um malmequer
Não chega a fazer sentidio
Se
é ou não correspondido.
Moça
taful
Que
quer marido
Abre
os braços à glicícia azul.
Grã-Duqueza - Temos
flores em todo o ano. Mesmo no inverno, os frios e as chuvas não conseguem
apagar nas roseiras a chama vermelha duma rosa de todos os meses, e nas leiras
que hão-de dar o pão, tremeluzem os junquilhos perfumados.
Comissário - E na
primavera, então, é um deslumbramento, é uma sinfonia de cor e de perfume.
Parece que as roseiras bebem na luz do sol o veludo das carícias, que os cravos
guardam o lume duma cantiga d’amor; os lírios a imagem das almas boas que
sofrem sem queixume; os miósotis o gosto duma saudade, o limonete o ruído
alegre das cavalhadas do S. João: E por toda a parte há flores, muitas flores,
lindas flores.
Grã-Duqueza - Eu não
queria que regressasse ao Brasil sem admirar a principal beleza do meu
Grão-Ducado: a da flores.
Nêspera - Alteza:
Muito vos agradeço esta maravilhosa impressão de beleza, de alegria, de
ternura, de amor e de saúde que a minh’alma acaba de receber. Dos meus olhos
deslumbrados apaga-se a visão da grande cidade de Tavarede, capital do vosso
Grão-Ducado, com as suas avenidas grandiosas, os seus históricos monumentos, os
seus palácios imponentes e a sua adiantada civilização, e vejo uma pequena
aldeia, muito velha, muito atrazada e muito pobre, mas cuja pobreza se esconde
sob um manto deslumbrante de flores, como se toda a povoação não fôsse senão um
jardim maravilhoso, onde morassem fadas e sob o qual o sol deixasse caír
continuamente a alegria da sua luz. Guardarei na minha alma agradecida esta
última impressão da terra de meu Pai. A visão deslumbradora de Tavarede
florida.
* * *
E que
encontrei nos jornais? Muito pouco. Em “A Voz da Justiça”, de 20 de Abril de
1927, vem a principal notícia. Transcrevo-a integralmente.
“A revista Grão-ducado de Tavarede
levou ao teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense, no pretérito sábado, uma
enchente completa, vendo-se entre a assistência muitas pessoas dessa cidade.
O espectáculo agradou, podendo dizer-se
com verdade, que causou extraordinária sensação nos espectadores tavaredenses,
para os quais êste género é quasi novidade.
A música é lindíssima, alegre, bem
escolhida e perfeitamente ajustada aos personagens e às situações. António
Simões, o distinto amador figueirense, foi extraordinariamente feliz na partitura
do Grão-ducado de Tavarede. A êle especialmente se deve o êxito da
revista.
Os amadores, áparte naturais
deficiências que sempre podem notar-se nestes grupos de aldeia, souberam dar
uma curiosa e, nalguns casos, brilhante interpretação aos diversos papéis.
Idalina Fernandes fez explêndidamente como ninguém faria melhor, a scena da civilização
local em que, na volta do rio, as mulheres se descompõem; foi graciosa na Maçã
e cantou muito bem o fado da Taberna. António Graça, António Santos e
Emília Monteiro, todos muito bem nos seus papéis. Jaime Broeiro mostrou-se o
bom amador que é no Compadre, no Cavador e no Zé Borrachão.
Dois bons tipos bem reproduzidos: o do Poeta João e O da Batuta,
apresentados por José Vigário e António Broeiro, tendo êste feito também
correctamente um dos Compadres. João Cascão, foi primorosamente no Nabo,
no Café e no Aguilhão, tendo representado com alegria e
vivacidade e cantando muito bem os seus números, brilhando especialmente no Dueto
da Hortaliça, com Alzira Fadigas. Francisco Carvalho e Clementina de
Oliveira têm também um bom dueto no Impedido e a Sopeira, além de outros
papéis; esta foi muito aplaudida na Canção da Árvore, que cantou com
linda voz e foi obrigada a bisar. Maria José da Silva fez muito bem o papel de Brenha,
cantando esplêndidamente a sua parte no terceto com J. Cachulo e F. Rôla, o
qual foi também bisado. A Pinto, J. Mota e Maria Tereza de Oliveira e os
restantes, todos fizeram a sua obrigação. Os coros muito firmes.
Os scenários são bons, tendo sido muito
apreciados, principalmente o do Inferno e o das Flores. O quadro
da Lavoura encantou a assistência. Por isso mesmo é de justiça atribuir
ao distinto artista sr. Alberto Correia de Lacerda, que fez as maquettes
e dirigiu a pintura dos scenários uma boa parte do êxito da revista. Merece
também referência especial o guarda-roupa, que é variado, luxuoso e tem algumas
fantasias de belíssimo efeito, pelo que foi muito elogiada a srª. D. Belmira
Pinto dos Santos, que revelou muito bom gôsto na sua confecção.
O Grão-ducado de Tavarede dá no
próximo sábado a sua última récita, o que equivale a dizer que o teatro vai ter
nova enchente à cunha, dado o extraordinário agrado que a revista
alcançou.
Alguns números da revista estão
popularizados e começam a ser cantados pelo povo com os seus lindos versos!”.
Uma última
informação. A peça “Grão-ducado de Tavarede” deu quatro récitas! É verdade! O
trabalho que terá sido necessário fazer para pôr em cena um espectáculo como este,
cenários, guarda-roupa, ensaios, personagens, coros, músicas, e tudo o mais,
para dar quatro representações! Pois é, mas é bom lembrar que, dado o primeiro
espectáculo, imediatamente se começava a trabalhar na peça seguinte. Basta
referir que, ainda antes de decorrer um ano após a última representação desta
fantasia, uma outra subiria à cena e alcançaria inolvidável sucesso, como
veremos.
Mas, mais
surpreendente é que, entre uma e outra, ainda houve tempo de ensaiar e integrar
no espectáculo do aniversário de 1928, uma outra revista-fantasia sobre os usos
e costumes de Tavarede! E passo, agora, a apresentá-la.
Sem comentários:
Enviar um comentário