Quando
Satanás recebe os visitantes, diz-lhe o embaixador:
“Majestade.
Eu vinha pedir-lhe que me entregasse dois indivíduos que para aqui vieram
deportados pela Grã-duquesa de Tavarede e que são os responsáveis pela guerra
que lavra no Celeste Império. Trata-se dos autores duma opereta intitulada
Lúcia-Lima”. Isso sim. Bem pediu o embaixador mas não consegue autorização para
os levar para a China. E expulsa-o, furioso com a notícia acabada de receber
que o tal falsário, incendiário, assassino e ladrão lhe escapara.
Confessando-se antes de morrer, tinha tido as portas do céu abertas pelo
próprio S. Pedro. Era demais...
E tendo o
poeta João e o da Batuta aceite a oferta de Nêspera Cajú, de lhes conseguir o
indulto da Grã-duquesa, resolvem voltar com ele a Tavarede, tendo obtido o
acordo de Lúcifer, a quem agradecem reconhecidamente o “asilo político” que
lhes havia concedido.
* * *
E voltamos à
capital do limonete, ao Largo da Igreja. De certeza que não está lá tanto calor
como aquele que os nossos “heróis” suportaram no inferno. É a hora do arranque
para a limpeza das ruas do velho burgo. A Grã-duquesa exige limpeza total na
rua Direita, por onde passam todas as visitas, mas nas outras, nas detraz, como
não vai lá ninguém especial, não é necessário grande esmero.
Quem não se
preocupa muito com limpezas de ruas são os compadres José Borrachão e João
Borracho. Precisam, isso sim, que os pisos sejam direitos, por causa dos
tombos, claro. Mas, logo manhã cedo, vêm preocupados. “Isto esta torto de todo
e já não há nada capaz de o endireitar. Falsificam tudo, tudo!”.
Pois era
assim mesmo. Até o pão! O pão que é o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, como
o vinho é o seu sangue! Almas danadas. Havia de haver um juiz que mandasse
enforcar os falsificadores, especialmente os do vinho...
Os viajantes
ainda chegam a tempo de ver os dois borrachos, que se retiram para a tasca mais
próxima. E o vinho não está nada barato, mas “pode não haver dinheiro para
fazer a féria à mulher, podem os filhos não ter que comer nem que vestir, mas
para o vinho, para a bebedeira, sempre se há de arranjar!”. Mas o que as
autoridades do grã-ducado ainda não tinham conseguido foi o acabar com as
frequentes discussões na rua. Por tudo e por nada, zás, discussão. E então era
cada uma! Querem um exemplo?
Primeira Mulher - (entrando
com a segunda mulher e falando para fóra) Su’ alma danada. Vá ser trapalhona
p’ró raio que a parta.
Mulher - (dentro)
Cale-se aí sua inzoneirona. Com a verdade que falas assim tu medres, ave negra.
Tio Joaquim - Ora veja
que línguas porcas. (Princesa sorri)
1ª. Mulher - Que é que
você tem que me dizer, seu estupôr? Eu não sou da sua geração...
Mulher - (dentro) A
minha geração é mais honrada que a sua. Não é de ladras nem de alcoviteiras.
Pague a quem deve.
1ª. Mulher - (poisando a
tina) Ah! Rosa, toma conta que eu vou espatifar a cara áquele bandalho.
2ª. Mulher - Deixe-a lá.
Não vá sujar as mãos naquele monte-esterco.
Mulher - (dentro)
Cala a boca ó fufia!
2ª. Mulher - Cale-a você
sua bebeda. Tenha vergonha na porca da cara.
1ª. Mulher - Sou mais
honrada que você nunca há-de ser: Tenho 5 filhos mas são todos do mesmo pai.
Mulher - (dentro)
Arreda-te caldeira... (gargalhada e bate palmas) Chama-lhe, chama-lhe.
2ª. Mulher - Sim, sim...
sua porca. O seu homem que o diga, que p’ra entrar em casa tem de ir de
esguelha.
1ª. Mulher - Graças a
Deus até ao dia de hoje ninguém tem nada que me dizer. (bate no peito e grita)
Sou mais honrada que você que é a vergonha de Tavarede.
2ª. Mulher - Vamos
embora, ti Joquina. Deixe lá essa desavergonhada.
1ª. Mulher - (chora,
arrepela-se, guincha) Aquela alma negra! A dizer que eu lhe truxe uma camisa
dela que estava no enxugadoiro. (bate na cara) A minha cara pode-se ver. Anda
sempre à mostra. Não preciso roibar nada a ninguém.
2ª. Mulher - Aquilo é uma aldrabona.
Consequências
da civilização? Talvez. Bem diferente é a história da árvore.
“Agasalho
os passarinhos,
Ao
homem dou sombra e fruto.
E
em paga dos meus carinhos
Sou
tratada como um bruto.
Na
primavera enfeitada,
Sou
toda flor e perfume.
Vem
o inverno. Sou cortada
E
por fim deitada ao lume”.
Bem sabemos
que a árvore é nossa amiga e companheira de toda a vida. “Dá-nos a madeira do
nosso berço, a trave da nossa casa, a lenha para o nosso lume, as quatro tábuas
para o nosso caixão. Dá-nos tudo isso sem nada nos pedir, nem ao menos uma sede
de água nos dias ardentes do verão, quando nos acolhemos à sua sombra
protectora”. Mas, mesmo assim, aquela árvore, companheira das outras árvores do
caminho da Figueira, lamentava-se, tristemente, dos maus tratos de que eram
vítimas, sem se poderem defender. Era a sua sina...
E continuam
os encontros com a civilização. Nêspera gosta, por exemplo, de ouvir o fado da
Taberna:
“Domingo à tarde
Na nossa
aldeia
Esta igrejinha
É sempre
cheia.
Aqui se
adora
O S.
Martinho
A quem
dedicam
Preces de
vinho.
Muitos
devotos,
Finda a
oração,
Jogam
marimbo
E o
chincalhão.
Neste
escuro santuário
À
luz da velha candeia,
Gente
há de tipo vário
Dos
mais famosos d’aldeia.
Vê-se
palrar o sapateiro
Junto
dum cavador
Matreiro,
E
um zanaga carpinteiro
Ao
ferrador
Descreve
uma caçada
D’alta
monta.
E
o bom do taberneiro ao balcão
Calcula
e conta
O
que lhe rende o carrascão”.
O fado é
bonito, lá isso é, mas a “taberna é a perdição de muito desgraçado, que lá
deixa a féria da semana. Os nossos operários, os nossos cavadores, trabalham o
dia inteiro e à noite encafuam-se na taberna, a beber, a embrutecer o espírito,
a envenenar a alma”.
Foi uma luta
bem dura. Longos e longos anos. Ainda hoje continua mas, felizmente, as
tabernas já não são o que eram. Mas o alcool é bem difícil de vencer. E o jogo.
Mas um dia se chegará à vitória final.
E mais uma
vez o Nêspera Cajú, agora na companhia do poeta João e do da Batuta, a quem
prometera o perdão da Grã-duquesa, vai visitar a Exposição Internacional de
Tavarede. Ainda quer ver mal algumas coisas antes de escolher os produtos
tavaredenses que há-de levar para o Brasil. Pediu para ver as hortaliças, que a
terra exportava para o vizinho estado da Figueira e de que lhe diziam
maravilhas.
Amavel, o
Comissário, mostra-lhes a couve, deliciosa com cabeças de bacalhau, por
exemplo, o nabo, com uma cabeça tão grande, redonda, bem feitinha, e o feijão.
Feijão branco, feijão amarelo, feijão cara-linda, feijão de S. Roque, feijão
semana e até o tal que tem duas caras... e é frade!
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