E fazem-se
as apresentações. O Paço do Conde
“Amigo d’outrora,
Vê minha
figura!
Sou um
pardieiro
Sem
arquitectura.
Brilhei
muito em festas...
Hoje
abandonado...
Sou podre
palheiro,
Sou curral
de gado!”
O Rio Velho
também se lamenta. E responde:
“Tenha
paciência, fidalgo,
Também
tive a minha conta:
Vê-me
estreito, porco e seco,
Pois fui
rio d’alta monta.
De mim era
a terra ufana,
Tive cais,
tive aduana,
Fui muito
tempo feliz.
Agora é
grande desgraça.
Quem me
busca ou por mim passa
Tem de tapar
o nariz”.
Sim, senhor.
Era verdade. E a sua história bem triste, por sinal. “Fui nobre e generoso.
Acolhi em meu seio os Condes de Tavarede, tive luxo, fortuna e privilégios.
Eram sagrados os meus velhos muros, e mancebo que a eles se encostasse, estava
livre de ser soldado. De simples e despretencioso solar, transformaram-me em
imponente palácio. Lavraram-me cantarias, ergueram sobre os meus ombros
arrogantes torreões. Ai! Pobre de mim! Embranqueceram-me os cabelos e senti-me
abandonado ao tempo. A chuva repassou-me as carnes, penetrou-me até aos ossos,
e hoje tenho o cavername apodrecido. O grande torreão, desapareceu. Os salões
arruinaram-se. E hoje não sou mais do que uma ruína aproveitada para curral de
bois e carneiros para o matadouro. Ao que cheguei!”. Ao que tinha chegado o
nobre solar quinhentista. E isto, não esqueçamos, há já mais de setenta anos!
Mas o Rio
Velho não estava melhor. “Dê cá a mão, amigo. Somos irmãos na desgraça. Fui
mar, e até mim chegavam as embarcações carregadas de mercadoria. Nos meus
domínios estava a Alfândega de Tavarede. E hoje? Não passo de um ribeiro sujo
onde só navegam barquitos de casqueira, e de uma viela porca para onde despejam
cascas de mexilhões, e... o resto. Agora chamam-me Rio Velho e quando passam por
mim tapam o nariz. Eu que fui rico e forte, reduzido a beco da Dona Lúcia!”.
Pobres
velhos e curiosas histórias. Falam do passado e das tradições da terra com
imensa saudade. Havia outros monumentos. Também havia a fonte, mas esta tinha o
defeito de ser muito escorregadia, o que fazia com que algumas raparigas
caissem e, ao cair, partiam as bilhas ou, pelo menos, rachavam-nas. Apegavam-se
então ao santo António, mas até o Santo se queixava de que eram muitas bilhas
para um Santo só...
Recordo-me
que Tavarede tinha grande quantidade de gado leiteiro. Manhã cedo, ainda
escuro, lá iam as leiteiras, carregadas com os latões bem cheinhos de leite
fresquinho, fazer a sua venda. Tinham as suas freguesas certas, já habituais.
Mas, um belo dia, surgiu um novo problema. Então não é que os latões tinham de
ser selados e o leite inspeccionado? Nem todas aceitaram o facto de boa-mente.
Leiteira - Éh! seu
raio! Largue o latão. Seu alma danada... Antão, hein!
Polícia - Não refile
já lhe disse. Escusa de estar a fugir com o latão à torneira, porque não tem
remédio senão aguentar com ela.
Leiteira - O raio que o
parta!
Leiteira - Seu
basculho!
Seu
masmarro!
Outra
vida!
Ora
o alma de chicharro!
O
polícia
Patarata
Quer
que eu meta
Uma
torneira na lata!
Com
tal birra
Não
se enfeite
Que
tem fama
A
pureza do meu leite.
Forte
bruto!
Vai
p’ró raio
Que
te parta!
Nessa
fita é que eu não caio.
Polícia - Oh!
grande malcriada,
De
ti não tenho dó.
Aplico-te
a postura
E
vais p’ró chelindró!
Tapa-me
essa buzina,
Basta
de baboseira.
Já
te disse e repito:
Vou
meter a torneira.
Leiteira - Seu
basculho!
etc.
etc. etc.
Tio Joaquim - Mas vamos
lá a saber, o que vem a ser isso?
Leiteira - Pois... Já
a gente não pode usar o que é seu. Não deixam vender o leite em latões abertos.
Querem que a gente vá todos os dias à revista c’os latões.
Polícia - Olá! O
leite todos os dias analisado para se saber se é leite ou o que é. Pois então!
É da nova postura. A boca dos latões fechada e selada, e em baixo mete-se-lhe a
torneira por onde sai o leite, que é para evitar falsificações. Mas isto é que
menina não quer nem à mão de Deus Padre. Queria continuar a envenenar a
Humanidade, misturando no leite água e outra coisa que parece água mas que não
é água. Com que então, vender o leite com o latão aberto?... Mas isso não era
leite, era queijo...
Leiteira - Oh, seu
raio! Você não me esteja a tentar. Olhe que eu já não o vejo bem.
Polícia -
(cantarolando) Maria, são teus olhos azeitonas...
Leiteira - Vá fazer
pouco da sua geração. Por causa da torneira ainda você há-de saber quem eu sou.
Polícia - Você é que não tarda muito que vá de ventas à torneira com uma
traulitada nos queixos. Ande lá para diente. Em chegando à Figueira eu
lhe contarei um conto. Ande lá para diente.
Segundo diz
o Tio Joaquim, as falsificações estavam muito desenvolvidas cá na terra. Era o
leite, o vinho, o azeite, o açúcar, a manteiga... Os comerciantes não
resistiam. Mas agora, com as fiscalizações que havia, o lucro fácil tinha
acabado. Se se descuidavam, pumba, multas para cima. E bem pesadas.
O
“Mercúrio”, como deus do comércio, é que lhes podia acudir com um milagresinho.
“Por esse país fora, uma grande parte do comércio está na estica. Houve um
tempo em que tudo eram lucros. Foi encher... encher, e tanto encheram que
muitos rebentaram. Os preços subiram por aí acima, voavam que até se perdiam de
vista. Nem admira, era Vossa Senhoria que lhes dava asas... Costuma dizer-se
que para baixo todos os santos ajudam, mas neste caso para baixo custa mais a
vir...”.
Não podiam
faltar a Sopeira e o seu Impedido. Vinham à fonte, à água pura e fresca. Mas,
cuidado, menina, não vá rachar a sua bilha...
Encontram
depois o Aeroplano, alcunha daquele tavaredense que andava sempre nas núvens,
triste e pensativo. Era o mordomo das festas da Igreja e, coitado, agora tinha
bastantes motivos para andar triste e pensativo. Pois se o dinheiro do
peditório, que havia sido levado para a sacristia, tinha desaparecido
misteriosamente! Quem roubaria o dinheiro, e logo diante da imagem do Senhor
dos Aflitos? Bem aflito estava o pobre do Aeroplano. Pudera, aí à volta de uns
duzentos mil reis... Ná! Aquilo era bruxedo, pela certa. Mas em Tavarede havia
assim tantas bruxas, pergunta o deus Mercúrio?
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