domingo, 25 de outubro de 2015

Tavarede no Teatro - 20

         E fazem-se as apresentações. O Paço do Conde

                                      “Amigo d’outrora,
                                      Vê minha figura!
                                      Sou um pardieiro
                                      Sem arquitectura.

                                      Brilhei muito em festas...
                                      Hoje abandonado...
                                      Sou podre palheiro,
                                      Sou curral de gado!”

         O Rio Velho também se lamenta. E responde:

                                     “Tenha paciência, fidalgo,
                                      Também tive a minha conta:
                                      Vê-me estreito, porco e seco,
                                      Pois fui rio d’alta monta.

                                      De mim era a terra ufana,
                                      Tive cais, tive aduana,
                                      Fui muito tempo feliz.
                                      Agora é grande desgraça.
                                      Quem me busca ou por mim passa
                                      Tem de tapar o nariz”.

         Sim, senhor. Era verdade. E a sua história bem triste, por sinal. “Fui nobre e generoso. Acolhi em meu seio os Condes de Tavarede, tive luxo, fortuna e privilégios. Eram sagrados os meus velhos muros, e mancebo que a eles se encostasse, estava livre de ser soldado. De simples e despretencioso solar, transformaram-me em imponente palácio. Lavraram-me cantarias, ergueram sobre os meus ombros arrogantes torreões. Ai! Pobre de mim! Embranqueceram-me os cabelos e senti-me abandonado ao tempo. A chuva repassou-me as carnes, penetrou-me até aos ossos, e hoje tenho o cavername apodrecido. O grande torreão, desapareceu. Os salões arruinaram-se. E hoje não sou mais do que uma ruína aproveitada para curral de bois e carneiros para o matadouro. Ao que cheguei!”. Ao que tinha chegado o nobre solar quinhentista. E isto, não esqueçamos, há já mais de setenta anos!

         Mas o Rio Velho não estava melhor. “Dê cá a mão, amigo. Somos irmãos na desgraça. Fui mar, e até mim chegavam as embarcações carregadas de mercadoria. Nos meus domínios estava a Alfândega de Tavarede. E hoje? Não passo de um ribeiro sujo onde só navegam barquitos de casqueira, e de uma viela porca para onde despejam cascas de mexilhões, e... o resto. Agora chamam-me Rio Velho e quando passam por mim tapam o nariz. Eu que fui rico e forte, reduzido a beco da Dona Lúcia!”.

         Pobres velhos e curiosas histórias. Falam do passado e das tradições da terra com imensa saudade. Havia outros monumentos. Também havia a fonte, mas esta tinha o defeito de ser muito escorregadia, o que fazia com que algumas raparigas caissem e, ao cair, partiam as bilhas ou, pelo menos, rachavam-nas. Apegavam-se então ao santo António, mas até o Santo se queixava de que eram muitas bilhas para um Santo só...

         Recordo-me que Tavarede tinha grande quantidade de gado leiteiro. Manhã cedo, ainda escuro, lá iam as leiteiras, carregadas com os latões bem cheinhos de leite fresquinho, fazer a sua venda. Tinham as suas freguesas certas, já habituais. Mas, um belo dia, surgiu um novo problema. Então não é que os latões tinham de ser selados e o leite inspeccionado? Nem todas aceitaram o facto de boa-mente.

Leiteira - Éh! seu raio! Largue o latão. Seu alma danada... Antão, hein!
Polícia - Não refile já lhe disse. Escusa de estar a fugir com o latão à torneira, porque não tem remédio senão aguentar com ela.
Leiteira - O raio que o parta!

Leiteira -                        Seu basculho!
                                      Seu masmarro!
                                     Outra vida!
                                     Ora o alma de chicharro!
                                    O polícia
                                    Patarata
                                    Quer que eu meta
                                    Uma torneira na lata!
                                    Com tal birra
                                    Não se enfeite
                                    Que tem fama
                                    A pureza do meu leite.
                                    Forte bruto!
                                    Vai p’ró raio
                                    Que te parta!
                                    Nessa fita é que eu não caio.

Polícia -                       Oh! grande malcriada,
                                    De ti não tenho dó.
                                    Aplico-te a postura
                                    E vais p’ró chelindró!
                                    Tapa-me essa buzina,
                                     Basta de baboseira.
                                     Já te disse e repito:
                                     Vou meter a torneira.

Leiteira -                       Seu basculho!
                                     etc. etc. etc.

Tio Joaquim - Mas vamos lá a saber, o que vem a ser isso?
Leiteira - Pois... Já a gente não pode usar o que é seu. Não deixam vender o leite em latões abertos. Querem que a gente vá todos os dias à revista c’os latões.
Polícia - Olá! O leite todos os dias analisado para se saber se é leite ou o que é. Pois então! É da nova postura. A boca dos latões fechada e selada, e em baixo mete-se-lhe a torneira por onde sai o leite, que é para evitar falsificações. Mas isto é que menina não quer nem à mão de Deus Padre. Queria continuar a envenenar a Humanidade, misturando no leite água e outra coisa que parece água mas que não é água. Com que então, vender o leite com o latão aberto?... Mas isso não era leite, era queijo...
Leiteira - Oh, seu raio! Você não me esteja a tentar. Olhe que eu já não o vejo bem.
Polícia - (cantarolando) Maria, são teus olhos azeitonas...
Leiteira - Vá fazer pouco da sua geração. Por causa da torneira ainda você há-de saber quem eu sou.
Polícia - Você é que não tarda muito que vá de ventas à torneira com uma traulitada nos queixos. Ande lá para diente. Em chegando à Figueira eu lhe contarei um conto. Ande lá para diente.

         Segundo diz o Tio Joaquim, as falsificações estavam muito desenvolvidas cá na terra. Era o leite, o vinho, o azeite, o açúcar, a manteiga... Os comerciantes não resistiam. Mas agora, com as fiscalizações que havia, o lucro fácil tinha acabado. Se se descuidavam, pumba, multas para cima. E bem pesadas.

         O “Mercúrio”, como deus do comércio, é que lhes podia acudir com um milagresinho. “Por esse país fora, uma grande parte do comércio está na estica. Houve um tempo em que tudo eram lucros. Foi encher... encher, e tanto encheram que muitos rebentaram. Os preços subiram por aí acima, voavam que até se perdiam de vista. Nem admira, era Vossa Senhoria que lhes dava asas... Costuma dizer-se que para baixo todos os santos ajudam, mas neste caso para baixo custa mais a vir...”.

         Não podiam faltar a Sopeira e o seu Impedido. Vinham à fonte, à água pura e fresca. Mas, cuidado, menina, não vá rachar a sua bilha...

         Encontram depois o Aeroplano, alcunha daquele tavaredense que andava sempre nas núvens, triste e pensativo. Era o mordomo das festas da Igreja e, coitado, agora tinha bastantes motivos para andar triste e pensativo. Pois se o dinheiro do peditório, que havia sido levado para a sacristia, tinha desaparecido misteriosamente! Quem roubaria o dinheiro, e logo diante da imagem do Senhor dos Aflitos? Bem aflito estava o pobre do Aeroplano. Pudera, aí à volta de uns duzentos mil reis... Ná! Aquilo era bruxedo, pela certa. Mas em Tavarede havia assim tantas bruxas, pergunta o deus Mercúrio?


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