Um bom músico e… melhor garfo!
As duas histórias que agora aqui
vou recordar, ocorreram nos anos trinta, do século passado. A Tuna de Tavarede,
como era conhecida a Tuna do Grupo Musical, tinha muita fama, mesmo para além
dos limites do concelho. Já, então, esta colectividade se encontrava instalada
no palácio dos condes de Tavarede, à altura propriedade de Marcelino Duarte
Pinto. Era seu regente e ensaiador o saudoso tavaredense José Francisco da
Silva.
O intérprete destas histórias foi
o também saudoso Manuel Fernandes Pinto, vulgarmente conhecido por Manuel
Lindote, que morava, com sua família, no Largo do Terreiro, onde igualmente
tinha a sua forja de ferreiro. Já em caderno anterior referi Manuel Lindote,
quando evoquei alguns conterrâneos que se distinguiram no desporto local e
nacional.
Homenzarrão dotado de força
hercúlea, foi um dos melhores remadores que passaram pelos barcos da Associação
Naval 1º de Maio, onde ganhou vários títulos nacionais. Trabalhava nas oficinas
do caminho de ferro, onde exerceu a profissão de ferreiro, sendo especializado
na reparação e manutenção das caldeiras das máquinas a vapor, que então
rebocavam os comboios de passageiros e de mercadorias.
Além do seu trabalho diário e da
ocupação na sua forja do Terreiro, tinha um outro passatempo: a música.
Dedicou-se a tocar viola e pífaro, tocando estes dois instrumentos no conjunto
“Lúcia-Lima-Jazz”, do qual fez parte desde a sua fundação e durante alguns anos.
Tocava, igualmente, na Tuna de Tavarede. E não deixa de ser interessante que,
aquelas mãos enormes e rudes, mais afeitas à turquês e ao martelo, ou ao remo
forte, tivessem tal sensibilidade para tocar as cordas da viola. Chegou a
atingir alguma notoriedade na execução deste instrumento, pois que, como
acompanhante do guitarrista Alexandre Simões, igualmente nosso conterrâneo,
residente no Casal da Robala, participou em muitos espectáculos acompanhando
fadistas locais, chegando, até, a actuar no Casino Peninsular da Figueira.
A apresentação de Manuel
Fernandes Pinto está feita. Mas antes de começar com as nossas histórias,
recordo que, como homem possante que era, tinha um apetite verdadeiramente
voraz. Mais em quantidade do que em qualidade, pois que a vida não era nada
fácil, sendo a sopa o prato forte de todas as refeições. Recordo-me de ouvir
dizer que ao jantar chegava a comer cinco pratos de sopa, acompanhados de um
naco de broa e azeitonas e, claro, do seu copito de vinho.
Vou, então,
recordar dois episódios ocorridos em duas deslocações da Tuna do Grupo Musical.
Uma delas foi a Gatões, perto de Montemor-o-Velho. Foram de manhã e depois da
tradicional arruada, pararam para descanso e almoço, pois de tarde teriam nova
actuação. O almoço, oferecido pela comissão das festas, constou de bacalhau
cozido com batatas. E como o tempo estava bom, resolveram almoçar ao ar livre,
numa eira perto da povoação.
Sentados no baixo muro da eira,
cada um com o seu prato servido à vontade de dois alguidares de batatas e outro
de grossas postas de bacalhau, foram comendo descansadamente. Já quase o almoço
estava no fim quando deram por falta do Manuel Lindote. Onde está, onde não
está, mestre José Silva, embora preocupado, mandou acabar o almoço e ele que se
arranjasse, pois até entendia que era uma falta de consideração para com todos
aquela ausência. Tempos depois lá apareceu o nosso homem, muito descansado. Bom
conversador, tinha encontrado um amigo e, palavra puxa palavra, esqueceu-se do
tempo. Que lhe desculpassem, pois não havia sido por mal.
Olhou, então, à sua volta à
procura de almoço. No alguidar do bacalhau restavam umas boas três postas. Como
mais ninguém queria, agarrou no alguidar e, depois de escorrer uns restos da
água da cozedura, foi aos outros dois alguidares e vazou as batatas que ainda
continham para cima do bacalhau. O azeite estava num garrafão. Os companheiros
não queriam acreditar no que estavam vendo. Seria que ele conseguiria comer
aquilo tudo? E mais que fosse… No fim, ainda limpou o azeite que cobria o fundo
do alguidar, com pedaços de pão!
A outra história é diferente. A
Tuna havia sido convidada para ir abrilhantar as festas da Martingança. Foi
nessa deslocação, aliás, que a Tuna visitou o Mosteiro da Batalha, onde
deixaram uma lápide de homenagem ao Soldado Desconhecido. Ainda não há muito
tempo que tal placa ali se encontrava fixada na parede.
Pois esta deslocação foi feita a
um fim de semana, com ida ao sábado de manhã e regresso no domingo. Para
pernoitarem não foram nada exigentes. A grande maioria dos músicos ficou, nessa
noite, numa velha capela, perto do local das festas. Como colchão tinham uns
bons braçados de palha sequinha e por cobertores umas velhas mantas e, até,
alguns sacos de linhagem. Também, uma noite depressa se passa…
O nosso amigo não foi dos
primeiros a deitar-se. Com dois ou três companheiros andaram a dar umas voltas
pelo arraial e, às tantas, lá vão dormir. Com cuidado para não acordarem os
outros, procuraram um sítio e aconchegaram-se. Mas o Manuel Lindote notou falta
de qualquer coisa que servisse de almofada. Procurou pelos cantos e, junto à
porta da entrada, foi encontrar um daqueles sacos de pano branco que usavam
para transporte de pão e que os festeiros, providenciando o pequeno almoço dos
visitantes, ali haviam deixado para a madrugada seguinte.
“Bela almofada”, terá ele
pensado. E agarrando no saco, logo o levou para o sítio onde havia preparado a
sua cama. Deitou-se e, regaladamente, logo terá adormecido, certamente embalado
pelo saboroso aroma do conteúdo da sua enorme almofada.
Alguns dos seus companheiros mais
próximos, segundo me contaram, várias vezes acordaram ouvindo um ruído
esquisito. Mas, na escuridão, não conseguiram adivinhar o que quer que fosse,
julgando eles que seria algum atrevido ratito metido no meio da palha espalhada
pelo chão.
Manhã cedo foi o despertar. Com o
corpo mais ou menos moído, lá se foram levantando e arranjando. Todos prontos,
ficaram aguardando a chegada do pequeno almoço. Todos, não. O Manuel Lindote,
na sua cama de palha, dormia beatificamente…
Quando chegaram os festeiros com
as cafeteiras do café e do leite, mais os respectivos púcaros, fizeram a
distribuição e foram buscar o saco do pão que ali haviam deixado na véspera.
Bem procuraram, é claro, mas não o encontraram. Melhor, acabaram por o
encontrar, mas vazio, debaixo da cabeça do ainda adormecido Manuel Lindote.
O tal ruído que os seus
companheiros ouviram durante a noite e que pensaram ser feito por algum rato,
tinha sido o mastigar dos dentes fortes, trincando o pão que, um a um, ia
tirando do saco. Quando acabou o último, certamente que o seu sono terá passado
a ser muito mais tranquilo, com o estômago consolado e cheio.
Mais uma vez Mestre Zé Silva
ficou furioso. Mas, que fazer? Apenas aguardar que fossem buscar mais pão. Mas
de imediato destacou dois companheiros para acompanharem o Manuel Lindote toda
a manhã, obrigando-o a andar e não o deixando beber qualquer líquido. Tiveram
medo que o pão inchasse e ele rebentasse… Pudera, pão que era para mais de trinta
pessoas…
Só mais um apontamento para
terminar a história. Um homem daqueles, atleta de enorme categoria, acabou por
sucumbir com cinquenta e poucos anos, vítima de doença que não perdoa. Foi
cumprido o seu último desejo: levar vestida a camisola de remador com as
medalhas que havia conquistado.
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