sábado, 26 de setembro de 2015

Tavarede - A terrra de meus avós - 25

Um bom músico e… melhor garfo!


As duas histórias que agora aqui vou recordar, ocorreram nos anos trinta, do século passado. A Tuna de Tavarede, como era conhecida a Tuna do Grupo Musical, tinha muita fama, mesmo para além dos limites do concelho. Já, então, esta colectividade se encontrava instalada no palácio dos condes de Tavarede, à altura propriedade de Marcelino Duarte Pinto. Era seu regente e ensaiador o saudoso tavaredense José Francisco da Silva.

O intérprete destas histórias foi o também saudoso Manuel Fernandes Pinto, vulgarmente conhecido por Manuel Lindote, que morava, com sua família, no Largo do Terreiro, onde igualmente tinha a sua forja de ferreiro. Já em caderno anterior referi Manuel Lindote, quando evoquei alguns conterrâneos que se distinguiram no desporto local e nacional.

Homenzarrão dotado de força hercúlea, foi um dos melhores remadores que passaram pelos barcos da Associação Naval 1º de Maio, onde ganhou vários títulos nacionais. Trabalhava nas oficinas do caminho de ferro, onde exerceu a profissão de ferreiro, sendo especializado na reparação e manutenção das caldeiras das máquinas a vapor, que então rebocavam os comboios de passageiros e de mercadorias.

Além do seu trabalho diário e da ocupação na sua forja do Terreiro, tinha um outro passatempo: a música. Dedicou-se a tocar viola e pífaro, tocando estes dois instrumentos no conjunto “Lúcia-Lima-Jazz”, do qual fez parte desde a sua fundação e durante alguns anos. Tocava, igualmente, na Tuna de Tavarede. E não deixa de ser interessante que, aquelas mãos enormes e rudes, mais afeitas à turquês e ao martelo, ou ao remo forte, tivessem tal sensibilidade para tocar as cordas da viola. Chegou a atingir alguma notoriedade na execução deste instrumento, pois que, como acompanhante do guitarrista Alexandre Simões, igualmente nosso conterrâneo, residente no Casal da Robala, participou em muitos espectáculos acompanhando fadistas locais, chegando, até, a actuar no Casino Peninsular da Figueira.

A apresentação de Manuel Fernandes Pinto está feita. Mas antes de começar com as nossas histórias, recordo que, como homem possante que era, tinha um apetite verdadeiramente voraz. Mais em quantidade do que em qualidade, pois que a vida não era nada fácil, sendo a sopa o prato forte de todas as refeições. Recordo-me de ouvir dizer que ao jantar chegava a comer cinco pratos de sopa, acompanhados de um naco de broa e azeitonas e, claro, do seu copito de vinho.

Vou, então, recordar dois episódios ocorridos em duas deslocações da Tuna do Grupo Musical. Uma delas foi a Gatões, perto de Montemor-o-Velho. Foram de manhã e depois da tradicional arruada, pararam para descanso e almoço, pois de tarde teriam nova actuação. O almoço, oferecido pela comissão das festas, constou de bacalhau cozido com batatas. E como o tempo estava bom, resolveram almoçar ao ar livre, numa eira perto da povoação.

Sentados no baixo muro da eira, cada um com o seu prato servido à vontade de dois alguidares de batatas e outro de grossas postas de bacalhau, foram comendo descansadamente. Já quase o almoço estava no fim quando deram por falta do Manuel Lindote. Onde está, onde não está, mestre José Silva, embora preocupado, mandou acabar o almoço e ele que se arranjasse, pois até entendia que era uma falta de consideração para com todos aquela ausência. Tempos depois lá apareceu o nosso homem, muito descansado. Bom conversador, tinha encontrado um amigo e, palavra puxa palavra, esqueceu-se do tempo. Que lhe desculpassem, pois não havia sido por mal.

Olhou, então, à sua volta à procura de almoço. No alguidar do bacalhau restavam umas boas três postas. Como mais ninguém queria, agarrou no alguidar e, depois de escorrer uns restos da água da cozedura, foi aos outros dois alguidares e vazou as batatas que ainda continham para cima do bacalhau. O azeite estava num garrafão. Os companheiros não queriam acreditar no que estavam vendo. Seria que ele conseguiria comer aquilo tudo? E mais que fosse… No fim, ainda limpou o azeite que cobria o fundo do alguidar, com pedaços de pão!

A outra história é diferente. A Tuna havia sido convidada para ir abrilhantar as festas da Martingança. Foi nessa deslocação, aliás, que a Tuna visitou o Mosteiro da Batalha, onde deixaram uma lápide de homenagem ao Soldado Desconhecido. Ainda não há muito tempo que tal placa ali se encontrava fixada na parede.

Pois esta deslocação foi feita a um fim de semana, com ida ao sábado de manhã e regresso no domingo. Para pernoitarem não foram nada exigentes. A grande maioria dos músicos ficou, nessa noite, numa velha capela, perto do local das festas. Como colchão tinham uns bons braçados de palha sequinha e por cobertores umas velhas mantas e, até, alguns sacos de linhagem. Também, uma noite depressa se passa…

O nosso amigo não foi dos primeiros a deitar-se. Com dois ou três companheiros andaram a dar umas voltas pelo arraial e, às tantas, lá vão dormir. Com cuidado para não acordarem os outros, procuraram um sítio e aconchegaram-se. Mas o Manuel Lindote notou falta de qualquer coisa que servisse de almofada. Procurou pelos cantos e, junto à porta da entrada, foi encontrar um daqueles sacos de pano branco que usavam para transporte de pão e que os festeiros, providenciando o pequeno almoço dos visitantes, ali haviam deixado para a madrugada seguinte.

“Bela almofada”, terá ele pensado. E agarrando no saco, logo o levou para o sítio onde havia preparado a sua cama. Deitou-se e, regaladamente, logo terá adormecido, certamente embalado pelo saboroso aroma do conteúdo da sua enorme almofada.

Alguns dos seus companheiros mais próximos, segundo me contaram, várias vezes acordaram ouvindo um ruído esquisito. Mas, na escuridão, não conseguiram adivinhar o que quer que fosse, julgando eles que seria algum atrevido ratito metido no meio da palha espalhada pelo chão.

Manhã cedo foi o despertar. Com o corpo mais ou menos moído, lá se foram levantando e arranjando. Todos prontos, ficaram aguardando a chegada do pequeno almoço. Todos, não. O Manuel Lindote, na sua cama de palha, dormia beatificamente…

Quando chegaram os festeiros com as cafeteiras do café e do leite, mais os respectivos púcaros, fizeram a distribuição e foram buscar o saco do pão que ali haviam deixado na véspera. Bem procuraram, é claro, mas não o encontraram. Melhor, acabaram por o encontrar, mas vazio, debaixo da cabeça do ainda adormecido Manuel Lindote.

O tal ruído que os seus companheiros ouviram durante a noite e que pensaram ser feito por algum rato, tinha sido o mastigar dos dentes fortes, trincando o pão que, um a um, ia tirando do saco. Quando acabou o último, certamente que o seu sono terá passado a ser muito mais tranquilo, com o estômago consolado e cheio.

Mais uma vez Mestre Zé Silva ficou furioso. Mas, que fazer? Apenas aguardar que fossem buscar mais pão. Mas de imediato destacou dois companheiros para acompanharem o Manuel Lindote toda a manhã, obrigando-o a andar e não o deixando beber qualquer líquido. Tiveram medo que o pão inchasse e ele rebentasse… Pudera, pão que era para mais de trinta pessoas…


Só mais um apontamento para terminar a história. Um homem daqueles, atleta de enorme categoria, acabou por sucumbir com cinquenta e poucos anos, vítima de doença que não perdoa. Foi cumprido o seu último desejo: levar vestida a camisola de remador com as medalhas que havia conquistado.  


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