sábado, 12 de setembro de 2015

Tavarede no Teatro - 14

         “Com todo o gosto, ei-lo, diz-lho o Comissário. Folheai-o à vontade Vossa Excelência e verá como é rica esta exposição. A secção nacional é vastíssima. Aí encontra tudo quanto é necessário à vida do homem, da mulher e dos animais; géneros e comestíveis; os mais diversos produtos da indústria e da agricultura; a arte, o progresso e a civilização representados nas mais variadas manifestações. Aqui há tudo quanto possa imaginar-se”.

         E, a pedido do visitante, manda chamar a primeira especialidade, a maçã do Paraíso. Uma delícia, madura e perfumada que consola. Melhor não há, com certeza!

          (Maçã)          Depois do mundo criado
                               Nos tempos do paraíso,
                               O pai Adão, coitado,
                                Um dia perdeu o siso.

                                  Vendo a mãe Eva fagueira,
                                  À luz da fresca manhã,
                                  Atirou-se à macieira
                                  E zás! Comeu a maçã!

        (Nêspera)             Sim, senhor, a fez bonita!
                                   Não era carne sem osso,
                                   Porque afinal a maldita,
                                  Lhe não passou do pescoço.

          (Maçã)              Até os velhos me comem
                                  Porque sou fruta estimada,
                                 Não há rapaz nem há homem
                                 Que me não coma à dentada.

         Bela fruta! O brasileiro bem a queria apalpar para ver se estava madura, mas ela não foi na conversa e teve de contentar-se com o cheiro. Ainda quis ver-lhe a pevide para comprar igual e levar para semear no Brasil, mas esta maçã, disseram-lhe, não pegava de semente nem de estaca. Só de enxertia!

         Continuou a folhear o catálogo. Logo encontrou um grave erro... Era o café, que estava figurando na secção de produtos locais, quando deviam saber que o café não era de Tavarede, pois vinha do estrangeiro, de África, do Brasil, e de outros países.

         Mas este café era especial, nascido e baptizado no Grão-ducado de Tavarede. Nem era um café negro, forte e cheiroso. Este era um café pardo, fraquinho e quase sem cheiro.

         “Sou filho da cevada. A minha mãe fez mistura com o trigo, com o grão de bico e dizem que até com o feijão; e aqui está porque do meu registo de baptismo consta que sou filho de pais incógnitos e de mãe cevada”.

Uma pinga deste café e um bocado de broa, pela manhã, era o pequeno almoço dos operários que iam para as oficinas e dos rapazitos que, tremendo de frio, seguiam a caminho das obras, onde os esperava o “cocho” da cal. Ao almoço uma sardinha assada e à noite, em casa e a servir de ceia, outra vez o bom do nosso café, a fumegar nas tigelas, “a dar aos pobres uma impressão de abundância que não têm e a levar-lhes ao estomago uma sensação de fingido conchêgo!”.

E logo conta o café: “É verdade! Conheço tanta miséria, tanta desgraça, tanta fominha mais negra do que a minha cor... Não vale a pena pensar em coisas tristes. A vida é mesmo assim. E eu sei das vidas de toda a gente mais do que ninguém. A vizinha vai a casa da vizinha, a comadre a casa da comadre, e então, zás, aí entra o café da função. Sentam-se na cozinha, e enquanto eu aqueço ao lume, na chocolateira, falam dos ganhos dos homens, dos gastos dos filhos e das bebedeiras d’uns e d’outros! E quando me levam, nas tigelas esbeiçadas, às beiçolas cheias de gretas, assoprando, já têm entrado no capítulo das vidas alheias; - Ah! Comadre, vocemecê não viu a Esdofina no baile? – Pois vi, ah, mulher! É o vestido novo, de fazenda de 80$00 o metro! – Aquilo é um luxo que Deus te livre! O pior é que ainda deve o chaile que comprou o ano passado pelo S. João. – Antão não sabe que a Mari’Teza foi dizer à cunhada que eu não tinha dinheiro p’ra pagar na venda, mas tinha dinheiro pr’andar pelos teatros! Aquela alma danada! – Ah! Mulher! Eu inté tinha alma de lhe trincar os fígados àquela esmiucada de... E nunca mais acabam. Passam até à fieira a vida de toda a gente, o que se come e o que se cá ganha...”.

Pois é! A coscuvilhice tradicional!

         Vem, depois, uma espanhola, daquelas de que havia grande fartura no vizinho estado da Figueira, durante a época balnear. Encantado, fica o Nêspera Cajú. E o Comissário não resiste de louvar a Exposição, desejoso de causar a melhor impressão ao visitante e resume-lhe:

“Como vê, a Exposição Internacional do Grão-ducado de Tavarede é uma coisa notável em qualquer parte do mundo. Estão aqui representadas as mais poderosas nações, a França, a Inglaterra, a Alemanha, a China, o Japão, os diversos países de África, da América e da Oceania. A secção pecuária é vastíssima. Há animais de todas as espécies, tamanhos e feitios; mamíferos, insectos e batráquios, peixes e anfíbios. Terráqueos, aquáticos e aéreos: a aranha, a rã, a formiga, o elefante, o mosquito, o hipopótamo, a galinha, o bacalhau, o leão, o burro... Em burros, então, é um sortido variadíssimo: Temo-los manhosos e madraços, espertos e teimosos, filósofos e tapados como um burro; variam na cor, no tamanho e na educação. Temos o burro preto, o burro branco, o burro malhado e o burro cor de burro quando foge; o burro pequenito como um burrito de mama, o burro de tamanho natural e o burro como umas casas; o burro que nem zurra, nem morde, nem dá coice, o burro que não morde, que não dá coice mas zurra, e o burro que zurra, que dá coice e que morde. Burricalmente falando pode dizer-se que esta secção constitue para o nosso Grão-ducado um verdadeiro sucesso burrical...”.

        Pelos vistos, exposição como esta, nem as que agora se fazem. O brasileiro Nêspera há de recolher algumas coisas para levar, burros é que não, pois, diz, já lá têm que chegue. Agora o que pretende é avistar-se com a Grã-duquesa, para lhe fazer a entrega do legado paternal.

         Nesse dia a soberana fazia anos e dava uma recepção no Palácio. Era uma boa ocasião. E enquanto se dirigiam ao Paço, deram um pulo à fonte. Ao chegarem ouviram e apreciaram a canção da Fonte e o coro das Bilhas que já conhecemos.

         “É das coisas boas cá da terra, comenta o Comissário. Mas é pouco empregada em uso externo. A grande parte dos habitantes só se lava em dias de festa. Para uso interno tem qualidades especialíssimas. Estamos fazendo grande exportação em pipas, garrafas e garrafões para França, onde é empregada no combate ao descrescimento da população. Casados que a bebam já sabem que não ficam sem herdeiros. E solteiros também, e aí é que está o perigo... Há até um caso interessante: uma sopeira do vizinho estado da Figueira vinha todas as tardes à água a Tavarede, acompanhada pelo namoro, impedido do patrão. Um belo dia a rapariga dá à luz um robusto menino. Os patrões interrogam-na, mas ela, coitadita, nada sabe explicar, até que por fim se descobriu: uma tarde muito quente, quando a rapariga e o impedido regressavam à Figueira, sentiram-se cansados e sentaram-se na relva. Deu a sede à rapariga, o rapaz mergulhou o púcaro, ela bebeu com gosto – e passados nove meses tinha o pequerrucho...”.


         Desconhecia, em absoluto, tais propriedades da água da nossa fonte! Quando, depois, passavam no Largo da Igreja, a caminho da recepção, tinham acabado de saír, para a venda, os jornais locais. Notícias frescas não faltavam nos periódicos apregoados em altos pregões.

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