Um cortejo reaccionário…
Quando
folheávamos os nossos apontamentos, despertou-nos a atenção uma local,
publicada no jornal “Correspondência da Figueira”, em Outubro de 1881. Diz assim:
AO SR. BISPO-CONDE
Não somos denunciantes de pessoa
alguma, mas não podemos também deixar de fazer subir ante s.exª. as queixas que
por aí se ouvem com respeito ao reverendo que está encomendando a freguesia de
Tavarede.
Pode ser que haja exagero no que se
diz, e cremos até que assim seja; mas dando-se os devidos descontos e feito um
abatimento de cinquenta por cento, fica ainda uma carga regular para o tal
reverendo.
Bom seria, pois, que s.exª. mandasse
apurar o que há de verdade por meio de uma sindicância. Nem queremos que aquele
pastor esteja sendo vitima de acusações menos verdadeiras, nem que continue
apascentando o rebanho que lhe está confiado, se não está nas condições de bem
cumprir os espinhosos deveres da sua missão.
É certo que o sr. Bispo
Conde não tem sido de uma escrupulosa imparcialidade para com alguns dos seus
irmãos em Jesus Cristo
neste concelho; cremos, porém, que, neste caso, cerrará ouvidos a pedidos, e
fará justiça recta, embora tenha de sacrificar o tal encomendado.
E assim o esperamos
confiadamente: de contrário, e ainda sob pena de qualquer excomunhão com que
s.exª. nos possa fulminar, não cessaremos de pedir que se olhe com misericordiosos
olhos pelos católicos romanos da freguesia de S. Martinho de Tavarede.
Curiosamente,
só anos mais tarde encontrámos a explicação para aquele alerta ao Senhor Bispo,
e num outro periódico: “Comércio da Figueira”. Era, então, pároco em Tavarede o
reverendo António Augusto da Silva Nobreza. A Junta de Paróquia era à altura
constituída por João José da Costa, da quinta dos Condados, José Maria de
Almeida Cruz, Manuel Jorge da Silva, António da Cruz, José Luís Inácio e José
Maria Luís.
O reverendo
padre, e isso era normal naqueles bem complicados tempos, andava de “candeia às
avessas” com muitos dos seus paroquianos e, também, com a própria Junta. Antes
que me esqueça, recordo que a Junta de Paróquia tinha instalação numa
dependência da Igreja matriz, junto à sacristia, onde se reuniam e guardavam as
suas coisas.
Na acta de
9 de Janeiro de 1881 a
Junta deliberou exarar em acta todos os benefícios que o seu presidente, João
José da Costa, tinha feito em benefício da paróquia. João Costa havia assumido
a presidência da Junta, depois de ter sido presidente da Câmara da Figueira
durante vários mandatos, e mandara fazer, à sua custa, importantes
melhoramentos para a nossa terra, nomeadamente o teatro na sua casa do Terreiro
(1885). Relativamente à Igreja, e segundo aquele registo, havia suportado os
seguintes custos:
= doação da
quantia de 19$200 reis para compra de um terreno para alargamento e
aformoseamento do adro da Igreja;
= pintura
do teto da Igreja e arco cruzeiro, no valor de 54$645 reis;
=
encarregou o reverendo pároco de mandar vir de Lisboa o lustre, que custou
37$580 reis, vindo tudo a importar em 111$425 reis.
Entendeu,
portanto, a Junta de Paróquia não ficar silenciosa a tão grandes e relevantes
serviços prestados por aquele senhor, pelo que “aqui os deixa narrados, para
que os presentes e vindouros se recordem sempre com viva saudade de tão
benemérito cavalheiro”.
Mas a Junta
havia começado a receber muitas reclamações dos seus paroquianos relativamente
ao reverendo Nobreza, a quem acusavam de parcialidade e não cumprimento das
suas obrigações religiosas para com muitos.
“Sejam
quais forem os direitos de intervenção e atribuições do pároco em relação ao
assunto (tratou-se de um funeral),
não há nem podem haver leis canónicas, nem as da constituição do bispado, que
autorizem e concedam poderes discricionários, e tão abusivamente praticados,
que permitam ao pároco a exclusiva imposição da hora, porque é repugnante e
intolerável, de consequências perniciosas como acaba de se dar, e por isso
exigem que sejam repelidas pela mesma forma como se exercem e praticam.
É bem
conhecido, que o pároco de uma freguesia tem obrigações permanentes e
inadiáveis a cumprir; vive à custa dos paroquianos, que exclusiva e
directamente lhe pagam para prestar-lhes os serviços que a religião estabelece,
não podendo ser substituídos senão por um sacerdote; portanto o pároco nunca
pode dispor da sua pessoa por forma que se fique absolutamente inibido da sua
concorrência pessoal na freguesia, e quando um comprometimento meditado o não
possa fazer, é costume e sua estrita obrigação prevenir um sacerdote, por forma
que sendo chamado, acuda e satisfaça aos actos e obrigações, sejam eles
conhecidos ou acidentais, pois que o pároco não exerce profissão de padre como
um ofício qualquer de que se recebe salário em certas e determinadas horas de
serviço, para ir quando, como, e aonde lhe for vantajoso ou agradável: tem os
encargos e obrigações exclusivas da religião, que queira ou não há-de
forçosamente cumprir. É nenhuma a consideração que este sacerdote presta ao
cumprimento dos seus deveres e obrigações, praticando abusos e excessos que o
qualificam impróprio e incapaz de exercer este ministério”.
Prosseguem as actas com um chorrilho de
acusações ao pároco, notando-se, perfeitamente, que era mais o adversário
político que se atacava do que o padre da freguesia.
Em Agosto
de 1884, solicitou a Junta autorização, com carácter de urgência, à Comissão
Distrital de Coimbra para umas obras absolutamente necessárias. Apesar do
pedido de urgência, a resposta não chegava, até que, no dia 18 de Setembro
pelas 7 horas da manhã, o padre Nobreza, avistando da janela o presidente João
Costa, que recolhia a casa de um pequeno passeio matinal, foi atrás dele e
entregou-lhe um ofício que tinha em seu poder, sem saber como lhe chegara…
Era um ofício datado de 30 de
Agosto, em resposta ao seu e no qual solicitavam esclarecimentos adicionais
necessários à autorização requerida. Para justificar o atraso na resposta,
solicitou a Junta, em ofício dirigido ao pároco, a informação de como o ofício
fora recebido em sua casa e por que só passados tantos dias lho entregara.
Pois só no fim de Outubro o padre
Nobreza respondeu dizendo “ignoro, para dizer com segurança, como o ofício que
lhe entreguei, veio ter a esta casa, nem mesmo sei dizer o dia em que chegou,
pois foi em ocasião em que eu não estava, sendo recebido provavelmente por
minha criada com a minha correspondência. É certo que há poucos dias dei com ele envolvido com
outros papéis, e vendo vossa senhoria da minha janela me resolvi a ir
pessoalmente entregá-lo fazendo conhecedor nessa mesma ocasião dos motivos de
demora”.
Os ânimos azedaram-se, de tal
forma que o pároco chegou a dar ordens ao sacristão para não abrir a porta da
Igreja para entrarem para as reuniões. O presidente João Costa não hesitou
mais. Sendo dono de uma casa velha que estava desocupada, de imediato resolveu
para ali mudar a Junta e mandou buscar a mobília e mais pertences que, com
grande oposição do padre Nobreza, o sacristão acabou por entregar.
Como referi tudo isto não
passavam de questões políticas. E para o confirmar vou acabar a historieta da
mudança da Junta da Igreja, com a transcrição de um caso bem elucidativo. Em
Novembro de 1883 houve eleições municipais. As urnas deram a vitória ao partido
do padre Nobreza e seus correligionários. Eis a transcrição da comemoração
dessa vitória:
“O padre entusiasmado pela glória
que o aureolava, entendeu dar uma pública demonstração do seu regozijo e
satisfação digna da sua pessoa e companheiros, pelo prestígio e influências
irresistíveis que acabavam de fundar e estabelecer sobre os despojos mortais do
que chamaram partido progressista em Tavarede; para isso convencionou com a
garotada de celebrar uma procissão de enterro, envolvendo o nome de alguém a
quem só na ausência podiam impunemente insultar.
Com efeito na segunda-feira
posterior da dia da eleição, tendo-se efectuado a reunião de todos os mordomos
da festa-fúnebre no local aprazado,
que foi dentro dos umbrais do portão de entrada da quinta do exmo. Conde de
Tavarede e onde sua exª tem o seu solar e residência, desfilou o préstito, indo
todos os da comitiva envolvidos em lençóis, lançada uma ponta pelas cabeças com
o rosto descoberto e archotes na mão. Precedia o sacristão António Gaspar de
Figueiredo, tangendo uma campainha da Igreja (que precede procissões e enterros
quando se trata de chamar a atenção dos fieis cristãos
a um acto religioso). Seguiam António Proa, com uma
colcha de chita arvorada em uma haste servindo de guião; acompanhavam António
Carlota, António Cascão, Joaquim Nunes, João Ceiça, Manuel Pata, o regedor
Manuel Luís Inácio e filhos Bernardo e José Maria, de Tavarede; Joaquim Mendes,
o Bairrada, de Caceira, e ainda uma
porção de garotos da Figueira e uns três de Caceira, companheiros do Bairrada; no fim João Proa, tocando
tambor em uma caldeira, entoava o responso “chorai, filhos, chorai: morreu o
partido progressista, vamos enterrá-lo e com ele lá vai a importância do João
Costa; quem compra o beiço?”. Seguiam-se sentidos ais.
Fechando o
préstito ia o reverendíssimo António Augusto da Silva Nobreza, pároco desta
freguesia, sem disfarce algum, levando na mão um livro, que deveria ser
substituído por uma borracha ou picheira, como emblemas da sua Nobreza; e a seu
lado José Maria Luís. Sentimos que este homem, aliás bem intencionado, se
deixasse ir à discrição da canalha.
Chegados ao
adro da Igreja, porque caíram sobre o acompanhamento umas pedradas, e porque se
não viam os impulsores, compreenderam que a ousadia provinha de quem pouco
podia arrecear-se. E de noite todos os gatos são pardos, resolveram retroceder
e não chegaram ao cemitério para onde se dirigiam e ali devia o reverendo
entoar o De profundis…”.
Atenção,
tudo isto transcrevi das actas da Junta de Paróquia que foram publicadas na
imprensa. Não há duvidas de que o facciosismo político levava pessoas
responsáveis um pouco longe demais!...
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