Uma história da caça…
Meu pai,
Pedro Medina, era aquilo que se podia considerar como um irreverente e um
repentista. Por índole, era uma pessoa bem disposta, sempre amigo do seu amigo,
incapaz de causar problemas a quem quer que fosse, mas sempre pronto para
pregar a sua “partidinha” inocente, mas cheia de oportunidade e graça. Poderia
contar muitas historietas sobre ele, qual delas a mais engraçada. Vamos a esta,
a que dou o nome de uma história da caça.
Naqueles
tempos, havia em Tavarede um grande número de caçadores. A partir do princípio
de Outubro, quando abria a época da caça, era vê-los por esses pinhais e montes
fora, espingarda pronta a disparar, enquanto outros batiam silvados e moitas
com os seus varapaus e os cães farejavam, numa constante busca de coelhos e
outras espécies.
Eles
próprios preparavam o seu equipamento. Hoje, a tanta distância, arrepio-me só
de me lembrar o perigo que meu pai, e outros, igualmente, corria quando, ao
serão, ia para o sótão da nossa casa, para numa pequena mesa, alumiada a
candeeiro a petróleo, carregar algumas dezenas de cartuchos para levar para a
caçada, na cartucheira que transportava à cinta.
Uma lata
com os chumbos, outra com a pólvora, a pequenita balança para fazer as
pesagens, as buchas e outros acessórios, encontravam-se à sua frente. E, no
meio de tudo isto, outra lata a servir de cinzeiro, pois meu pai era um fumador
inveterado. Volta que não volta, parava o trabalho, tirava uma mortalha de
papel fino, punha-lhe em cima a precisa quantidade de tabaco, que sacava da
respective onça, enrolava com perícia, humedecia a cola do papel e estava
pronto o cigarrito, que acendia na chaminé do candieiro, tudo isto com a lata
da pólvora mesmo ao lado… Não
tenho memória de ter ocorrido qualquer acidente, mas sem dúvida que o risco era
bastante elevado e muito pouco acautelado.
Algumas, poucas, vezes os
acompanhei aos domingos. Nunca me atraiu este desporto. Gostava, é certo, e
muito, de passear pelos campos e pelos pinhais, mas apreciava muito mais uma
pêra ou uma maçã que, de quando em quando, surripiava de uma árvore carregada
de frutos, do que ouvir os disparos e, muitas vezes, ver os pobres dos coelhos
tombarem feridos de morte.
Cada um levava o seu bornal com o
correspondente farnel para o almoço e o cantil, ou cabaça, cheio de vinho,
quase sempre da lavra própria, pois praticamente todos amanhavam pequenos
pedaços de terra onde, invariavelmente, tinham uma dúzia de cepas que, por
ocasião das vindimas e com a ajuda de alguns cântaros de água da nossa fonte,
as uvas eram transformadas numa deliciosa água-pé, pois que de vinho não se
podia intitular.
Quando a hora chegava, procuravam
um dos locais conhecidos, propícios à pausa para a petiscada e um pouco de
descanso, sempre tendo por perto uma fonte ou bica, de água fresca e pura, de
que a nossa zona era bem fornecida. Comiam, os animais também, descansavam um
bom bocado e, já refeitos, continuava a
caçada, agora no sentido do regresso à aldeia.
Nem sempre traziam caça pendurada
no cinto. Muitas vezes, coelhos e perdizes não colaboravam nada com os
caçadores. Mas, apesar disso, regressavam felizes e satisfeitos por mais um dia
passado no meio da natureza, em alegre convívio. E não me esqueça uma coisa:
algumas vezes vinham sem caça, é certo, mas os bornais quase sempre vinham
cheios de boa fruta. Aquelas encostas do Prazo, dos Condados, do Saltadouro e
dos Pejeiros, entre muitas outras, eram enormes pomares onde a fruta não
faltava, em quantidade e em variedade.
A historieta que vou contar
refere-se a uma das tais caçadas, mas a essa eu não assisti, pelo que a recordo
pelo que me contaram. Foi para o lado sul do Mondego, para as bandas do
Alqueidão, e era um enorme grupo de caçadores daqui que se reuniram, em caçada
previamente combinada, com companheiros de trabalho e de caça, daquela zona.
Desta vez, por esquecimento, ou
já por malandrice, meu pai não pediu para lhe arranjarem o farnel. De
madrugada, à hora de partir para a caçada com os amigos, vai ao armário onde
estava a bolsa do pão, agarra num dos grandes, daqueles a que se chamavam
“casqueiros” e abre-o ao meio, para fazer uma enorme sandes. Em seguida, apanha
uma broa das que estavam na tábua, a broa era amanhada lá em casa, e, com muito
cuidado, corta a parte de baixo, o lar da broa, e apara-a muito bem. Feito
isso, mete a côdea da broa dentro do pão, embrulha tudo num grande guardanapo
branco e guarda tudo no bornal. O cantil também já estava em ordem de marcha.
Foram de bicicleta até ao ponto
de encontro, no Alqueidão. À hora marcada estavam todos reunidos e dirigiram-se
ao local onde começava a caçada. Tiro daqui, tiro dali, confesso que me não
recordo o que é que apanharam naquele dia, e, horas depois, chegam ao local
previamente escolhido para o almoço.
Cada um tira o seu farnel e
coloca-o à sua frente. Na sua maior parte levavam fritos, peixe, pastéis de
bacalhau, pataniscas e omoletas. Outros optavam pelos enchidos ou umas fatias
de carne assada. Meu pai tinha-se sentado, bornal ao lado, mas não se resolvia.
Os outros estranharam. “Oh! Pedro, então não comes? O que é o teu petisco?”.
Como que um pouco enfadado, responde que ainda não tinha vontade de comer, mas,
para lhes fazer companhia, também se resolveu e tirou o embrulho do guardanapo
para a sua frente. “Era para ter feito uma omeleta, mas lembrei-me que tinha lá
um bom naco de presunto e, olhem, resolvi fazer esta sandes”, disse mostrando o
guardanapo bem enrolado no pão.
Os outros estranharam. Ele levar
presunto? E logo um pedação daquele tamanho? Não acreditavam. Então ele, cheio
de paciência e abrindo um pouco o embrulho, mostra um dos lados em que ser via
o pão aberto ao meio e com uma coisa escura dentro, que se lhes afigurou ser
realmente presunto. Do imediato logo lhe disseram: “Oh! Pedro, deixa isso para
o fim. Cortamos o pão com o
presunto às tiras e é mesmo bom para acabarmos o petisco. Vai saber bem para um
último copo”.
É claro que, interiormente, meu
pai terá sorrido ao ouvir aquilo que já esperava. E vai daí, embrulha novamente
o pão e, pastel daqui, uma fatia de carne dali, deu a volta a todos, não se
mostrando nada sem vontade, como havia dito antes.
Quando já estava bem almoçado,
estende-se à sombra de uma árvore e diz: “Eh! rapazes, agora já não consigo
comer mais nada. Tomem lá o
meu farnel e comam à vontade o pão com o presunto”.
Os outros, ávidos pela perspectiva
de saborearem tão boa sobremesa, agarram de imediato o embrulho e com uma
navalha bem afiada, preparam-se para a distribuição. Oh! Céus! Então não é que,
mais uma vez, o Pedro os havia enganado? O tal presunto não era mais do que a
côdea da broa e ele, que acabara de almoçar à grande e à francesa, à borla,
tinha-os deixado a chuchar no dedo, agarrados a um bocado de pão que nem sequer
cheirava a presunto! Disseram-lhe das boas, mas, pouco depois, tudo acabou às
gargalhadas. Mais uma das brincadeiras
dele, que teve graça e não ofendeu ninguém .
senhor Vitor, com prazer novamente podemos nos deliciar com suas histórias, que bom ler tão bons artigos, um grande abraço, Preciosa, Mota e Lilian
ResponderEliminarLembrar o passado da nossa terra é sempre um prazer.
ResponderEliminarPor favor, esqueçam a senhoria.
Um enorme abraço para todos.