sábado, 11 de julho de 2015

Tavarede no Teatro - 5

         O segundo acto é passado nos jardins do palácio do Mandarim de Tching-fou, que nesse mesmo dia festejava o seu aniversário natalício.
         Agradecendo as saudações e os elogios dos seus súbditos, “neste dia solene o lotus sagrado, emblema da vida humana, abriu em vossa honra a ebúrnea corola, sinal certo que Fó e Confúcio estão satisfeitos com a vossa administração, que é o espelho das egrégias virtudes do vosso carácter” e “por isso os habitantes de Tching-fou, que é também o vosso povo submisso, saudam a aurora deste dia radiante, e irá hoje em reverente prosternação dizer o seu adeus à luz crepuscular. Viva o magnificente Chi-Sha-lá, nosso sublime Mandarim de botão de cristal roxo”, o soberano responde, satisfeito:

         “Amado povo de Tching-fou! São vossas as ternuras do meu coração e a torrencial gratidão da minha alma! Que Buda despeje a sua cornucópia de bençãos sobre as vossas cabeças e que a sombra de Confúcio vos acompanhe e guie a toda a hora! Quero, mando e ordeno que as minhas 59 primaveras fiquem assinaladas com as vistosas festas que merece tão faustoso acontecimento! Meu povo! Hoje é um regalo d’estalo! Se assim falo é porque sei que todo o vassalo, a pé e a cavalo, não deixará de vir à minha porta tocar ao badalo! Quero anunciar um alto acontecimento, que muito alegra o meu coração: o próximo enlace matrimonial da minha benquista filha Flor de Chá com o destemido Chi-Fan-tu, oficial das milícias de Tching-fou, já agraciado por sua celeste Magestade com o botão de cristal azul. Na alegria das festas não esqueço a justiça! Amanhã será o julgamento dos ocidentais que tiveram o descôco de vir das núvens num passaroco – que berra como um louco – e que ao caír no arrozal sagrado escavacou o telhado da Torre do Silêncio e arrancou as pendurezas do Templo do Céu!”.

         Pois é verdade. Os nossos dois viajantes brasileiros e o seu fiel moleque, que teimaram em ir a Macau à procura da Lúcia-Lima, que para ali tinha ido com o irmão, conforme lhes disseram os cabos de ordens da freguesia de Tavarede, tinham tido o azar de caír, com o seu aeroplano, em pleno arrozal sagrado de Tching-fou, causando estragos nos templos.

         Mas as palavras do Mandarim não agradaram a todos. Flor de Chá, sua filha, que ficou acompanhada pelas suas confidentes, estava triste, melancólica. Depois de muito instada, confessa às suas amigas, sob promessa de segredo, que não amava Chi-Fan-tu, antes o odiava. Quem ela amava, quem de noite e dia lhe absorvia os pensamentos, era um dos estrangeiros! “Foi ele quem acordou o meu coração”, confessa-lhes ela.

         Ora, amar um estrangeiro era crime, na China, um atentado à religião! Mal sabia a princesa que Chi-Fan-tu havia escutado o que ela disse, escondido no jardim. Flor de Chá confessa que antes quer morrer do que pertencer a um noivo que detesta. E canta:

     “Sonhos dourados, grata alegria,
     Que em mim senti; sempre a brilhar
     Mundo d’ilusões em que eu vivia...
    
       Ohh volltai, voltai. E semtardar
       Que eu desfaleço nesta agonia,
       Nesta tristeza d’amargurar!

      Que vale ser nova, ser cortejada,
      Ser rica e filha dum mandarim,
      Se a alma trago atormentada
      Duma tristeza que não tem fim!

      Viram meus olhos um estrangeiro;
       Presos ficaram, presos d’amor
       Como no encanto dum feiticeiro.

       Não sei que chama, que estranho ardor
       Faz em meu peito letal braseiro,
       Que é vida e morte, prazer e dor!

       Buda  clemente minha alma implora
       Do vosso poder a protecção.
       Tirar-me o fogo que me devora
       D’ardor intenso meu coração”.

         Chi-Fan-tu correu logo a contar ao Mandarim tudo quanto ouvira e alertar para o perigo. Este não esteve com rodeios: “Qual perigo qual carapuça! Corta-se o mal pela raíz... Vou num rufo dar ordem para que o julgamento dos tais farçolas seja ainda hoje. Estragaram o arrozal sagrado? Pois eu lhes darei o arroz... e com a dose toda...”.

         Ficou traçado o destino dos viajantes. Flor de Chá, a quem o noivo chinês contou que tudo ouvira e contára a seu pai, bem tentou que ele renunciasse a ela. Pois sim. Chi-Fan-tu, além de estar interessado nela, mais interessado estava no poder e riqueza que tal casamento lhe daria. Mas como haveria ela de salvar os estrangeiros?

         O Mandarim, como se referiu, desejou ser rápido. “Com os selvagens ocidentais dispensam-se formalidades... Julgam-se enquanto o diabo esfrega um olho, corta-se-lhes a cabeça e depois peguem-lhe com um trapo quente”, disse ele quando lhe chamaram a atenção para o facto da sentença dever ser confirmada pelo tribunal de Pequim.

         Entretanto, Flor de Chá, às escondidas, tinha conseguido subornar o Comandante Ferraobico, que era o responsável pela guarda dos estrangeiros nas masmorras da Torre do Silêncio. E conseguiu que ele fosse buscar o seu amado Eduardo Leirosa.

         Quando ele chegou, e depois de rapidamente lhe descrever a situação em que se encontravam, forneceu-lhe os meios para escrever ao consul de Portugal e encarregou-se de lhe fazer chegar a carta.

         Leirosa, que ouviu, enternecido, a declaração, confessou: “sois adorável. Também eu vos amo loucamente. Eu que, ao ver-vos pela primeira vez, quando ontem fui chamado à presença de vosso pai, senti logo que o meu coração ficava agrilhoado aos encantos da vossa formosura. Minha linda chinesinha. Quem pudera levar-vos para muito longe daqui!”. E vai escrever a carta que ela deverá fazer chegar ao destino com a maior urgência.

         Para dar andamento às suas intenções o Mandarim reune, nos jardins da sua residência, os oficiais de justiça, juntamente com os convidados para a sua festa de aniversário. Sentando-se, com imponente solenidade, declara aberta a audiência.

         Após a entrada dos presos, o acusador público lê a acusação: “Os três estrangeiros, vindos dos céus aos trambolhões, caíram no meio do arrozal de que se faz o “sanchow”, que é o vinho para as cerimónias do culto. Antes destes destroços, andaram na passarola a girar por cima da Torre do Silêncio e do Templo do Céu, esgalhando o beiral da Torre e esfanicando as pendurezas do Templo. Por tão espantosos delitos ficaram sujeitos às leis do Celeste Império”.

         Não havia dúvidas. O depoimento era esmagador e a tais crimes, como era do conhecimento de todos, correspondia a pena de morte. As testemunhas nada adiantaram e, para acabar com aquilo, “sua magnificência”, o Mandarim, resolve ler a sentença: “São acusados os estrangeiros Eduardo Leirosa, Tomás Castanho e Juca Rabino, dos crimes constantes dos autos e por isso incursos nas disposições dos artigos cem mil e um e cem mil e dois, e seus parágrafos, do Código Penal Chinês, o que tudo está previsto pelo depoimento das testemunhas e pela irrefutável acusação. Usando, porém, da faculdade que me confere o parágrafo único do artigo sessenta e nove, do mesmo código, que impõe ao juiz a maior clemência, condeno os réus na pena de cabeça cortada, poupando-os à pena da canga por toda a vida e mais seis meses”. Boa clemência, como se vê, e logo ordena a execução da sentença.

         Estava ele a dar esta ordem final quando entra precipitadamente o Cônsul Português a pedir, em altos brados, a suspensão da sentença.

         Ora o cônsul era muito amigo do Mandarim, a quem tinha mandado para a festa dos anos, quatro caixas de vinho do Porto, que o chinês muito apreciava. Depois de muitos rogos e promessas de mais algumas garrafas daquele precioso néctar, o Mandarim resolveu-se a anular a sentença com a condição dos condenados pagarem todos os prejuizos e partirem naquele mesmo dia.

         Resolvida a situação e depois de retirados os brasileiros que, com o cônsul, foram imediatamente tratar dos preparativos para a viagem de regresso a Portugal, continua a festa.

         Dando ordem para começarem a servir as “comedorias e bebedorias”, e antes de se iniciarem as danças, pediram os convidados que se cantassem algumas canções da moda. Tanto insistiram e tanto rogaram, que o próprio Mandarim se resolve a dar o exemplo, cantando em primeiro lugar:

          “Quando eu tinha os meus dez anos
            Era esperto como um gaio
            E tinha grande jeiteira
            P’ra deitar o papagaio.

            Na pagodeira bravia
            Das noitadas de Pequim
            Ora tocava sanfona
            Outras vezes trimbolim.

             Agora na minha idade,
             Já não se vive de tretas,
              São meu regalo da vida
               O cachimbo e as pingoletas”.

         Depois de Mariposa cantar uma canção que aprendera com os marinheiros ingleses nos botequins de Hong-Kong, coube a vez de Folha de Hera que, no dizer do soberano, tinha uma verdadeira voz de ouro:

              “Eu tinha numa gaiola
                Uma linda cotovia
                 Era uma delícia ouvi-la
                 Chilreando todo o dia.

                 Não era só meu o encanto;
                 O maroto dum pardal
                 Vinha fazer-lhe namoro
                 Debruçado no beiral.

                 Desde a alvorada
                  O tal tratante
                  Sempre no posto
                   Era constante,
                    A confessar
                    Seu terno amor.
                    E a cotovia
                    Fazia ouvidos de mercador!
                     Mas passados tempos
                     O tal mariola
                      Conseguiu beijá-la
                      Fora da gaiola
                     E fugiu...”.

         Houve muitos aplausos. Aproveito para dizer que esta canção da Cotovia, quanto a mim, é uma das mais bonitas que se cantaram nos palcos de Tavarede. Era uma daquelas que, de vez em quando e noutros tempos, se ouviam cantar pelas ruas da terra do limonete.

         Acabada a canção, e como Flor de Chá não aparecia, o Mandarim mandou procurá-la. Não a encontraram, claro. Havia fugido com o estrangeiro, a quem dera o coração, no aeroplano que acabara de levantar voo e que, ao passar sobre os jardins, deixara caír o leque de Flor de Chá, numa despedida da princesa a seu pai e aos seus convidados.

         Da canção final deste segundo acto, em que Chi-Fan-tu lamenta a perda da princesa, recorto:

                “Mas a ventura
                  Que doira a vida
                   Nem sempre dura!
                   E a donzela estremecida,
                   Altar d’amor verdadeiro,
                    Entregou-se fementida
                    Ao estrangeiro!
                     Em poucos, breves momentos
                     Desprezou meus juramentos
                     Foi traidora e perjura!

                      (coro) Tal amor foi loucura!
                      Virão depois os tormentos!
                      E o sedutor,
                      O infame estrangeiro,
                       Dela abusou traiçoeiro,
                        Arrancando-a ao meu amor!

                         Meu coração
                         Atormentado,
                          Este amor desgraçado
                           Foi como um sonho, um sonho vão.

                            (coro) Triste ilusão!
                            Só resta a dor

                             No coração!”



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