O
segundo acto é passado nos jardins do palácio do Mandarim de Tching-fou, que
nesse mesmo dia festejava o seu aniversário natalício.
Agradecendo
as saudações e os elogios dos seus súbditos, “neste dia solene o lotus sagrado,
emblema da vida humana, abriu em vossa honra a ebúrnea corola, sinal certo que
Fó e Confúcio estão satisfeitos com a vossa administração, que é o espelho das
egrégias virtudes do vosso carácter” e “por isso os habitantes de Tching-fou,
que é também o vosso povo submisso, saudam a aurora deste dia radiante, e irá
hoje em reverente prosternação dizer o seu adeus à luz crepuscular. Viva o
magnificente Chi-Sha-lá, nosso sublime Mandarim de botão de cristal roxo”, o
soberano responde, satisfeito:
“Amado povo
de Tching-fou! São vossas as ternuras do meu coração e a torrencial gratidão da
minha alma! Que Buda despeje a sua cornucópia de bençãos sobre as vossas
cabeças e que a sombra de Confúcio vos acompanhe e guie a toda a hora! Quero,
mando e ordeno que as minhas 59 primaveras fiquem assinaladas com as vistosas
festas que merece tão faustoso acontecimento! Meu povo! Hoje é um regalo
d’estalo! Se assim falo é porque sei que todo o vassalo, a pé e a cavalo, não
deixará de vir à minha porta tocar ao badalo! Quero anunciar um alto acontecimento,
que muito alegra o meu coração: o próximo enlace matrimonial da minha benquista
filha Flor de Chá com o destemido Chi-Fan-tu, oficial das milícias de
Tching-fou, já agraciado por sua celeste Magestade com o botão de cristal azul.
Na alegria das festas não esqueço a justiça! Amanhã será o julgamento dos
ocidentais que tiveram o descôco de vir das núvens num passaroco – que berra
como um louco – e que ao caír no arrozal sagrado escavacou o telhado da Torre
do Silêncio e arrancou as pendurezas do Templo do Céu!”.
Pois é
verdade. Os nossos dois viajantes brasileiros e o seu fiel moleque, que
teimaram em ir a Macau à procura da Lúcia-Lima, que para ali tinha ido com o
irmão, conforme lhes disseram os cabos de ordens da freguesia de Tavarede,
tinham tido o azar de caír, com o seu aeroplano, em pleno arrozal sagrado de
Tching-fou, causando estragos nos templos.
Mas as
palavras do Mandarim não agradaram a todos. Flor de Chá, sua filha, que ficou
acompanhada pelas suas confidentes, estava triste, melancólica. Depois de muito
instada, confessa às suas amigas, sob promessa de segredo, que não amava
Chi-Fan-tu, antes o odiava. Quem ela amava, quem de noite e dia lhe absorvia os
pensamentos, era um dos estrangeiros! “Foi ele quem acordou o meu coração”,
confessa-lhes ela.
Ora, amar um
estrangeiro era crime, na China, um atentado à religião! Mal sabia a princesa
que Chi-Fan-tu havia escutado o que ela disse, escondido no jardim. Flor de Chá
confessa que antes quer morrer do que pertencer a um noivo que detesta. E
canta:
“Sonhos dourados, grata alegria,
Que em mim
senti; sempre a brilhar
Mundo
d’ilusões em que eu vivia...
Ohh volltai, voltai. E semtardar
Que eu
desfaleço nesta agonia,
Nesta
tristeza d’amargurar!
Que vale
ser nova, ser cortejada,
Ser rica e
filha dum mandarim,
Se a alma
trago atormentada
Duma
tristeza que não tem fim!
Viram meus
olhos um estrangeiro;
Presos
ficaram, presos d’amor
Como no
encanto dum feiticeiro.
Não sei
que chama, que estranho ardor
Faz em meu
peito letal braseiro,
Que é vida
e morte, prazer e dor!
Buda clemente minha alma implora
Do vosso
poder a protecção.
Tirar-me o
fogo que me devora
D’ardor
intenso meu coração”.
Chi-Fan-tu
correu logo a contar ao Mandarim tudo quanto ouvira e alertar para o perigo.
Este não esteve com rodeios: “Qual perigo qual carapuça! Corta-se o mal pela
raíz... Vou num rufo dar ordem para que o julgamento dos tais farçolas seja
ainda hoje. Estragaram o arrozal sagrado? Pois eu lhes darei o arroz... e com a
dose toda...”.
Ficou
traçado o destino dos viajantes. Flor de Chá, a quem o noivo chinês contou que
tudo ouvira e contára a seu pai, bem tentou que ele renunciasse a ela. Pois
sim. Chi-Fan-tu, além de estar interessado nela, mais interessado estava no
poder e riqueza que tal casamento lhe daria. Mas como haveria ela de salvar os
estrangeiros?
O Mandarim,
como se referiu, desejou ser rápido. “Com os selvagens ocidentais dispensam-se
formalidades... Julgam-se enquanto o diabo esfrega um olho, corta-se-lhes a
cabeça e depois peguem-lhe com um trapo quente”, disse ele quando lhe chamaram
a atenção para o facto da sentença dever ser confirmada pelo tribunal de
Pequim.
Entretanto,
Flor de Chá, às escondidas, tinha conseguido subornar o Comandante Ferraobico,
que era o responsável pela guarda dos estrangeiros nas masmorras da Torre do
Silêncio. E conseguiu que ele fosse buscar o seu amado Eduardo Leirosa.
Quando ele
chegou, e depois de rapidamente lhe descrever a situação em que se encontravam,
forneceu-lhe os meios para escrever ao consul de Portugal e encarregou-se de
lhe fazer chegar a carta.
Leirosa, que
ouviu, enternecido, a declaração, confessou: “sois adorável. Também eu vos amo
loucamente. Eu que, ao ver-vos pela primeira vez, quando ontem fui chamado à
presença de vosso pai, senti logo que o meu coração ficava agrilhoado aos
encantos da vossa formosura. Minha linda chinesinha. Quem pudera levar-vos para
muito longe daqui!”. E vai escrever a carta que ela deverá fazer chegar ao
destino com a maior urgência.
Para dar
andamento às suas intenções o Mandarim reune, nos jardins da sua residência, os
oficiais de justiça, juntamente com os convidados para a sua festa de
aniversário. Sentando-se, com imponente solenidade, declara aberta a audiência.
Após a
entrada dos presos, o acusador público lê a acusação: “Os três estrangeiros,
vindos dos céus aos trambolhões, caíram no meio do arrozal de que se faz o
“sanchow”, que é o vinho para as cerimónias do culto. Antes destes destroços,
andaram na passarola a girar por cima da Torre do Silêncio e do Templo do Céu,
esgalhando o beiral da Torre e esfanicando as pendurezas do Templo. Por tão
espantosos delitos ficaram sujeitos às leis do Celeste Império”.
Não havia
dúvidas. O depoimento era esmagador e a tais crimes, como era do conhecimento
de todos, correspondia a pena de morte. As testemunhas nada adiantaram e, para
acabar com aquilo, “sua magnificência”, o Mandarim, resolve ler a sentença:
“São acusados os estrangeiros Eduardo Leirosa, Tomás Castanho e Juca Rabino,
dos crimes constantes dos autos e por isso incursos nas disposições dos artigos
cem mil e um e cem mil e dois, e seus parágrafos, do Código Penal Chinês, o que
tudo está previsto pelo depoimento das testemunhas e pela irrefutável acusação.
Usando, porém, da faculdade que me confere o parágrafo único do artigo sessenta
e nove, do mesmo código, que impõe ao juiz a maior clemência, condeno os réus
na pena de cabeça cortada, poupando-os à pena da canga por toda a vida e mais
seis meses”. Boa clemência, como se vê, e logo ordena a execução da sentença.
Estava ele a
dar esta ordem final quando entra precipitadamente o Cônsul Português a pedir,
em altos brados, a suspensão da sentença.
Ora o cônsul
era muito amigo do Mandarim, a quem tinha mandado para a festa dos anos, quatro
caixas de vinho do Porto, que o chinês muito apreciava. Depois de muitos rogos
e promessas de mais algumas garrafas daquele precioso néctar, o Mandarim
resolveu-se a anular a sentença com a condição dos condenados pagarem todos os
prejuizos e partirem naquele mesmo dia.
Resolvida a
situação e depois de retirados os brasileiros que, com o cônsul, foram
imediatamente tratar dos preparativos para a viagem de regresso a Portugal,
continua a festa.
Dando ordem
para começarem a servir as “comedorias e bebedorias”, e antes de se iniciarem
as danças, pediram os convidados que se cantassem algumas canções da moda.
Tanto insistiram e tanto rogaram, que o próprio Mandarim se resolve a dar o
exemplo, cantando em primeiro lugar:
“Quando eu tinha os meus dez anos
Era
esperto como um gaio
E tinha
grande jeiteira
P’ra
deitar o papagaio.
Na
pagodeira bravia
Das
noitadas de Pequim
Ora tocava
sanfona
Outras
vezes trimbolim.
Agora na
minha idade,
Já não se
vive de tretas,
São meu
regalo da vida
O cachimbo
e as pingoletas”.
Depois de
Mariposa cantar uma canção que aprendera com os marinheiros ingleses nos
botequins de Hong-Kong, coube a vez de Folha de Hera que, no dizer do soberano,
tinha uma verdadeira voz de ouro:
“Eu tinha numa gaiola
Uma linda
cotovia
Era uma
delícia ouvi-la
Chilreando
todo o dia.
Não era só
meu o encanto;
O maroto
dum pardal
Vinha
fazer-lhe namoro
Debruçado
no beiral.
Desde a
alvorada
O tal
tratante
Sempre no
posto
Era
constante,
A
confessar
Seu terno
amor.
E a
cotovia
Fazia
ouvidos de mercador!
Mas
passados tempos
O tal
mariola
Conseguiu
beijá-la
Fora da
gaiola
E fugiu...”.
Houve muitos
aplausos. Aproveito para dizer que esta canção da Cotovia, quanto a mim, é uma
das mais bonitas que se cantaram nos palcos de Tavarede. Era uma daquelas que,
de vez em quando e noutros tempos, se ouviam cantar pelas ruas da terra do
limonete.
Acabada a
canção, e como Flor de Chá não aparecia, o Mandarim mandou procurá-la. Não a
encontraram, claro. Havia fugido com o estrangeiro, a quem dera o coração, no
aeroplano que acabara de levantar voo e que, ao passar sobre os jardins,
deixara caír o leque de Flor de Chá, numa despedida da princesa a seu pai e aos
seus convidados.
Da canção
final deste segundo acto, em que Chi-Fan-tu lamenta a perda da princesa,
recorto:
“Mas a ventura
Que
doira a vida
Nem
sempre dura!
E
a donzela estremecida,
Altar
d’amor verdadeiro,
Entregou-se
fementida
Ao
estrangeiro!
Em
poucos, breves momentos
Desprezou
meus juramentos
Foi
traidora e perjura!
(coro)
Tal amor foi loucura!
Virão
depois os tormentos!
E
o sedutor,
O
infame estrangeiro,
Dela
abusou traiçoeiro,
Arrancando-a
ao meu amor!
Meu
coração
Atormentado,
Este
amor desgraçado
Foi
como um sonho, um sonho vão.
(coro)
Triste ilusão!
Só resta a
dor
No
coração!”
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