Mas, enfim,
cada qual tem a sua opinião e os críticos lá terão tido as suas razões para
escreverem aquilo. Mas o último deles acabou por me surpreender imenso quando,
um pouco mais adiante e ainda sobre o enredo da opereta, escreveu “e para
rematar as minhas considerações ácerca do valor da peça, devo dizer que era
perfeitamente dispensável a pornografia que a esmalta, que para mais não
serve senão para gáudio da gente ignorante que gosta sempre de ouvir
porcarias”.
Muito castos
deveriam ser os ouvidos deste comentarista. Ver-se-á, adiante, na transcrição
de um ou outro fragmento da peça, que Gaspar de Lemos lhe dá, aqui e ali, uns
laivos mais picantes, mas considerar pornográfico o texto desta opereta é que
me parece “um disparate completo”.
***
Quando o
pano sobe, a cena representa o Largo da Igreja, de Tavarede. A um dos lados
vê-se um trecho do ribeiro, com as pedras que serviam de lavadouro.
O regedor da
freguesia, Zé Badaleiro, havia recebido dois dias antes, uma carta de Lisboa
avisando-o da chegada de dois brasileiros, parece que podres de ricos,
recomendando “que se recebam e tratem com toda a bizarria”. A modos que vinham
em viagem de recreio e muito empenhados em visitar esta terra, onde vêm
procurar uma tal Lúcia-Lima, que parece “que é senhora duma lindeza de alto lá
com ela”.
O pobre do
regedor tratou de imediato de reunir as pessoas mais importantes da terra para
tratarem da recepção e, quando recebeu um telegrama avisando da chegada nesse
dia dos visitantes, tratou de juntar as pessoas no largo da Igreja e preparar
tudo condignamente. O pior é que nem na aldeia, nem nas redondezas, ninguém
conhecia tal senhora. Nem mesmo Pinga-Amor, como o nome diz o “conquistador” da
terra e que, diga-se desde já, andava doido de amor pela linda Capitolina, a
filha do Zé Badaleiro. E se este a não conhecia, quem haveria de conhecer a tal
Lúcia-Lima?
Ora o nosso
Pinga-Amor, pouco amigo de trabalhar e que dizia constantemente a Capitolina
“tu bem sabes como eu te quero, que não vejo outra mulher neste mundo; que a
minha maior ambição seria levar-te à face do altar”, com toda a certeza mais
interessado no dote que o regedor haveria de dar à filha, do que na rapariga,
quando ouviu falar em brasileiros ricos, à procura de uma mulher, ficou
temeroso com a possível conquista da sua pretendida, por parte dum dos
visitantes, e logo começou a pensar na maneira de os mandar para bem longe mal
chegassem.
Pouco tempo
depois, o tal “passaroco dos brasileiros” desceu na Várzea e, ao aviso
recebido, logo se juntou o povo, aguardando a chegada dos viajantes. Mal
chegaram ao largo, a comissão de recepção, deseja-lhes as boas-vindas cantando:
“Aceitai,
meus senhores
Nossa
saudação
Pela
visita honrosa
A esta
povoação.
A gente
rica e pobre
Desta
linda aldeia
Salta de
contente
De vos ver
anseia.
Visitantes
Cativantes
São por
todos
Aclamados.
Nossos
peitos
Satisfeitos
Soltam
ledos
Altos
brados.
Podeis
entrar tranquilos,
Nobres
forasteiros
Em nós há
só amigos
Francos,
verdadeiros”.
Cativados
com esta recepção, um dos brasileiros, Eduardo Leirosa, o tal que procura
Lúcia-Lima, diz então: “Em meu nome e do meu amigo Tomás Castanho, agradeço
penhorado a carinhosa e festiva recepção que nos fazem. Pelas pessoas que de
Lisboa nos recomendaram contávamos com bom acolhimento, mas pelo que vejo,
tanto o sr. Zé Badaleiro como os seus amigos e povo desta linda terra, são
todos muito amáveis e hospitaleiros... Repito: muito gratos, muito gratos...”.
E depois de
feitas as apresentações dos brasileiros, não esquecendo “o nosso moleque, o
criado Dominus-tecum que não deve ficar em silêncio. É mulato cor de café com
leite. O café veio-lhe da mãe e o leite é do pai...”, o regedor convida todos
para irem a sua casa beberem um copo do tinto, na adega, e, por sua vez,
apresenta as pessoas gradas da terra:
Badaleiro – Este é o amigo Aleixo Furão. É cabo do mar reformado. Navegou por
Séca e Méca. Só lhe faltaram os olivais de Santarém. É Furão mas já não
justifica o apelido. Aqui têm o Cosme Papóia. É o nosso barbeiro e o nosso
médico. Como barbeiro tira o coiro e deixa o cabelo. Como médico receita para
todas as moléstias o unguento de soldado. Tem curas admiráveis!
Dominus-tecum – (áparte) – Bem sei. P’ra rapeira não há melhor!
Badaleiro – (continuando as apresentações) – O nosso sacristão Gil Chinguiço.
Muito prático em badalo e galhetas...
Pinga-Amor – Ele manobra o badalo e a mulher apanha as galhetas...
Badaleiro – Uma notabilidade da terra, o Brás Piúga. Músico de fama. Tocava
gaita de foles mas rompeu-se-lhe a bexiga e a gaita ficou estragada. Agora toca
berimbau e diz muito bem: “Piolho!”.
Pinga-Amor – E tem sempre o berimbau afinado...
Badaleiro – (continuando) – Finalmente temos o nosso estimado Pinga-Amor, amador
dramático de três assobios. Fez belamente o papel de urso no drama “Covis das
focas”. Chamam-lhe Pinga-Amor porque todo se baba com as mulheres...
Dominus-tecum – Lá no Rio chamam-lhe doença do queixo caído...
Leirosa – São muito interessantes os seus amigos...
Castanho – (para Pinga-Amor) – Os meus parabéns sr. Pinga, estimarei que a
doença não vá mais longe...
Badaleiro – Quero agora apresentar-lhes a minha filha Capitolina. (para a filha)
Anda cá, menina. Apesar da educada na cidade é um pouco acanhada e por isso
hão-de desculpá-la.
Castanho – (áparte) – Será acanhada mas é um peixe d’estalo! Sim, senhor...
Feitas as
apresentações e ainda antes de saírem, o Leirosa mostra o anúncio que os levou
a fazer tão grande viagem e pergunta se alguém pode dar alguma informação.
O Pinga-Amor
lê, em voz alta: “Senhora nova, sem
fortuna mas formosa, de boa reputação e bem prendada, deseja contraír
matrimónio com cavalheiro respeitável e em condições de manter o decoro e
decência de família digna de toda a consideração. Quem pretender, dando referências
idóneas, queira dirigir-se a Lúcia-Lima, Beco das Poias, Tavarede”. Ninguém
conhece. Mas o regedor aguarda a chegada dos cabos de Caceira, Casal da Robala,
Carritos e Saltadouro, a quem mandou chamar e talvez algum deles conheça a tal
Lúcia-Lima.
Depois de
saírem todos, Pinga-Amor agarra Capitolina por um braço e tenta, mais uma vez,
que ela aceite os seus galanteios. Também uma vez mais ela recusa e foge,
deixando-o desalentado e a reflectir:
“Parece-me
que dei no vinte. Trata-se assim, despreza-me, talvez com o cheiro nalgum dos
brasileiros. São ricos, avezam grosso bagulhame. Podem satisfazer os caprichos
desta ambiciosa duma figa! E eu? Um triste flautista que não tem onde caír
morto... Ah! Mas se assim é, podem contar comigo. Eu mexerei os pauzinhos que
ambos os moinantes hão-de ir calcurriando daqui para fora...”.
Estava
pensando como proceder quando lhe surgiu uma ideia, mal viu entrar em cena os
esperados cabos de ordens. Depois de saber que eles não conheciam, nem nunca
ouviram falar, de Lúcia-Lima, faz-lhes uma proposta:
“Olhem cá!
Querem vocês ganhar cem mil reis? Vocês vão dizer ao sr. regedor que no Cabeço
do Mioto morava aqui há meses a tal Lúcia-Lima, bonita rapariga, irmã dum
capitão da tropa, que tem andado lá pelas Áfricas, que aqui veio de licença e
que depois a levou para Macau”.
Naquele
tempo, cem escudos era muito dinheiro. Nem pensaram que Pinga-Amor era um
pobretanas e que não teria dinheiro para lhes pagar, mas aceitaram logo e foram
para casa do regedor dar a notícia.
Não
hesitaram os brasileiros. Logo Leirosa diz: “Na verdade é um contratempo com
que eu não contava. Mas, já agora, não desisti de procurar a Lúcia-Lima. Com um
aparelho como o meu vai-se ao fim do mundo. Partiremos agora mesmo para Macau,
que é terra portuguesa”.
Bem os
procurou dissuadir da viagem o Zé Badaleiro que notou os olhares que Tomás
Castanho deitava à sua filha e que lhe parecia um excelente partido para
Capitolina. Mas, nada feito.
E depois das
despedidas, eles vão partir enquanto o coro canta:
“Ao deixar a nossa aldeia
Para
arrostar mil baldões
Não se
quebrou a cadeia
Que
prendia os corações.
Ao voltar
do fim do mundo
Lá dessas
terras d’além
Lembrai-vos
da gente amiga
Passai por
aqui também.
Adeus
prezados amigos!
Neste
solene momento
Pediremos
aos céus vos guiem
A bom
porto e salvamento.
Nesse
Macau tão distante
Não
encontrareis ninguém
Que com
tanto desinteresse
Vos estime
e queira bem.
***
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