Bailaricos e arraiais
“Dentro em
breve, o arraial provinciano tinha início. O folclore das nossas aldeias, ali
genuinamente representado. Os seus descantes e bailados, embriagavam-nos de
prazer. Assistimos às danças em arraial.
Como são
diferentes os bailados provincianos dos atrevidos e parisienses gostos das nossas
salas lisboetas! Que harmonia nas suas voltas, nos passos, na elegância das
raparigas!
E ao som de
música que desconhecíamos os trechos, contemplávamos embevecidos o ritmo
uníssono das danças provincianas. Que lindo o arraial das nossas aldeias! Que típico
tudo aquilo, que verdadeiramente português! Sim, Portugal é verdadeiramente o
“jardim da Europa” um mimo de encanto e formosura”.
Retirei
este pequeno retalho de uma reportagem de uma visita de sintrenses à Figueira e
a Tavarede e que, numa volta pelos arredores, assistiram a um arraial popular
na vizinha Brenha, em Setembro de 1935.
É
um bom início para uma pequena recordação dos arraiais e dos bailaricos na
nossa terra. Eram festas levadas a efeito, normalmente no verão, que traziam
sempre momentos de grande alegria a todos, novos e velhos.
Ainda tenho
uma ideia, mas muito vaga, dos arraiais montados nos largos do Paço e do Forno.
Eram locais relativamente pequenos para o efeito. Além disso, o aumento do
trânsito certamente desaconselhava a ocupação destes largos com as habituais
ornamentações.
O Grupo
Musical teve o empréstimo do enorme espaço da quinta do senhor José Duarte,
mesmo defronte da sua sede. A entrada era feita pelo portão da quinta, entre a
casa e uma enorme figueira, que não escapava à nossa tentação de rapazes a
caminho da escola, quando dela pendiam os seus frutos maduros.
Lá em cima,
frente a uns barracões onde eram guardadas as alfaias agrícolas, era montado o
pavilhão. A vedação do recinto era feita com grades de Madeira, emprestadas
pela Câmara Municipal. Formando quadrado, eram levantados, de tantos em tantos
metros, mastros pintados a branco. No meio do recinto, erguido majestosamente
nos ares, o mastro principal e, à sua volta, era montado o coreto, com espaço
suficiente para nele se instalar a orquestra.
Enquanto os mastros laterais levavam
a meio um escudo de madeira e no cimo um pendão feito de tecidos coloridos, o
mastro principal era ornamentado, no seu topo, com uma armação de madeira,
coberta de louro e heras.
Nós, os rapazitos, acompanhávamos
os adultos quando iam apanhar braçadas de ramos de loureiro e pernadas de
heras, que eram utilizadas para se fazerem as verdes e farfalhudas cordas que,
de mastro em mastro, davam a volta ao arraial e ao coreto. Dos cantos partiam
para o mastro principal as cordas de papel colorido, feitas em festão, elos ou
bandeirinhas. Junto das cordas de louro eram estendidas as gambiarras, cedidas
pelos Serviços Municipalizados, que iluminavam todo o recinto.
Num dos
lados era instalado o bufete. O balcão era feito com umas tábuas compridas,
suportadas por uns prumos espetados no chão, ou por algumas pipas vazias. Num
cavalete era colocado o pipo com o vinho “do lavrador”, constantemente
solicitado para encher as picheiras de barro vidrado. Os copos, de vidro
grosso, era “lavados” num alguidar que, bem depressa, ficava com a água roxa e
não branca. Claro que não faltavam outras bebidas, entre as quais os célebres
pirolitos, com as garrafinhas fechadas pela bolinha de vidro. Os petiscos eram
pouco variados, mas sempre havia qualquer coisa para comer e fazer ”lastro” a
mais uns copos. Anos mais tarde, começaram a fazer a saborosa dobrada com
feijão branco e o caldo verde.
Noutro lado,
era montada a quermesse, com uma estante em degraus, coberta por coloridas
colchas e cheias de prémios tentadores. Sobre a tábua que, em volta, fazia de
balcão, estavam os cestinhos com as rifas muito bem enroladinhas. Os bilhetes
eram baratos, mas a verdade é que por um premiado haviam cinco ou seis brancos,
branquinhos, como a cal da parede, dizíamos nós.
Também
existiam outros divertimentos como, por exemplo, as barracas de ”tiro”, com as
espingardas de pressão de ar, para chumbo ou setas. O alvo eram pequenas
pastilhas de gesso, penduradas numa tábua.
Eram sempre
bastante concorridos estes arraiais. A orquestra tocava animadamente,
convidando mesmo a um “pésinho de dança”. Mas os números mais desejados, em
especial pelos mais idosos, eram as célebres danças de roda. Mal se ouviam os
primeiros acordes destes números, logo acorriam a formar a longa roda, à volta
do coreto. Recordo-me de duas espécies destas danças. A primeira parte era
igual, com os pares de mãos dadas, a darem pequenos passos ao compasso da
música. Na segunda parte, numa das danças, os pares, sempre de mãos dadas, iam
ao centro, voltavam e rodopiavam duas vezes, para a direita e outras duas ao
contrário; na outra dança, largavam as mãos do par e, às palminhas, recuavam
dois pares atrás, cruzavam e regressavam ao lugar, para rodopiaram com o par.
Sei que havia outras danças idênticas, mas não as sei descrever. Aliás, não é
nada fácil explicar estas danças, mas era bonito ver a alegria e a satisfação
com que dançavam estes bailados. Algumas vezes, lá saía o vira mandado… Não
admira que os sintrenses tenham ficado deslumbrados com os nossos arraiais.
A um canto
do recinto, e para dar um ar ainda mais alegre, acendia-se uma enorme fogueira,
que se mantinha acesa durante todo o bailarico. Também a apanha da lenha era
coisa do agrado da rapaziada. Lá íamos todos, caminho do Peso e da Serra acima,
olhando os valados, à procura de ramos secos e, sempre que possível, arrancar
os piteirões secos, que, puxando pelo
comprido tronco, arrastávamos até ao lugar da sua queima… Estas coisas nunca esquecerão…
Na Sociedade, primeiro foi no
largo do Terreiro e depois no terreno anexo, onde posteriormente se construíu o
pavilhão desportivo, também eram realizadas idênticas festas. Aqui recordo-me
que, quando se começaram a utilizar as aparelhagens sonoras, utilizavam uma
velha grafonola que, passando discos bem antigos, atroava os ares a lembrar aos
tavaredenses o bailarico que ali iria ter lugar à noite.
Estes
arraiais eram realizados no verão. Durante os restantes meses, havia bailes nas
sedes das colectividades. A Sociedade, mais vocacionada para o teatro, dava
poucos bailes, até porque era bem trabalhoso o montar e desmontar do estrado
por cima da plateia! No Grupo Musical, quase todos os domingos, havia “matinées
dançantes”.
Também eram
sempre bastantes concorridas estas diversões, e não só pelas raparigas e
rapazes de Tavarede e lugares vizinhos, pois aqui vinha muito pessoal da
Figueira e outras terras. O “Lúcia-Lima”, conjunto privativo do Grupo Musical,
era o que mais vezes actuava.
De vez em
quando as colectividades organizavam festas especiais, a que davam sempre nome
sugestivo. Então o salão era ornamentado com originalidade, com motivos
relacionados ao título escolhido para a festa. Nessas ocasiões, e para atraír o
público, contratavam orquestras de fora. Caixeiros, Ginásio, Naval, Quiaios
Clube, Instrução e Recreio, Taborda, além do Lúcia-Lima, eram as mais usuais.
Recordo, igualmente, o famoso Tivoli-Jazz, de Montemor-o-Velho, com as suas
camisas encarnadas, o Café Central, de Cantanhede, de verde, e o nosso vizinho
Os Pardais, dos Vais, que optaram pelo amarelo.
Não quero
deixar de recordar que, nestes bailaricos, era costume, a meio do número
anterior ao intervalo, apelarem para “os cavalheiros levarem as damas ao
bufete”. Tinha que ser e lá ia o tradicional pires de arroz doce e o
refrescante pirolito que, embora bem baratos, davam sempre um bom rombo nas
nossas frágeis algibeiras.
E de
bailaricos e arraiais chega de recordações. Mas não me esquece que, menino e
moço, foi no arraial do sr. José
Duarte que aprendi a dançar. Já lá vão tantos anos…
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