O Carnaval
Tavarede nunca foi uma terra
muito dada a festas carnavalescas. Curiosamente, as cegadas ou mascaradas
apareciam, na nossa terra, nas cavalhadas que se organizavam pelo S. João. Era
nesses cortejos que, através de máscaras, se criticavam ou satirizavam algumas
figuras públicas. De resto, e pelo que encontrei, o Carnaval somente era
lembrado nas colectividades, com bailes em que havia sempre concurso de
mascarados, com prémios aliciantes, e com notícias picarescas e jocosas que os
correspondentes locais publicavam nos periódicos figueirenses.
Mas, e pelo
menos na década dos anos trinta do século passado, já em Tavarede havia umas
amostras de brincadeiras de Carnaval. Algumas mascaradas, umas mais
interessantes e outras nem tanto, um ou outro assalto, mais ou menos
consentido, na busca de merenda e uma ou outra brincadeira mais ou menos
inocente.
Como
divertimento mais interessante, recordo o “caqueiro”. Naqueles tempos as casas
não tinham água canalizada, pelo que todos os dias, à tardinha, lá iam, novas e
velhas, com os potes e cântaros, buscar água à fonte. Estas vasilhas, de barro
encarnado, conservavam a água fresca durante muito tempo. Mas, e como lá diz o
ditado, “tantas vezes o cântaro vai à fonte que lá deixa a asa”, acontecia, não
deixar a asa, mas como eram muito frágeis, à mais leve pancada rachavam e
ficavam inutilizados para os seus fins.
Não eram
deitados fora. Guardavam-se a um canto até ao próximo Carnaval. Quando o dia
chegava, grandes grupos de rapazes e raparigas formavam uma roda na rua e
divertiam-se jogando ao “caqueiro”. Os potes e cântaros inutilizados, e até
caçoilas, algumas bem negras de fumo das lareiras, eram atirados à roda até que
algum ou alguma mais desajeitada o deixava cair, desfazendo-se em cacos. Bastava ,
nalguns, o simples impulso para se partirem ao serem agarrados. Por vezes, e
por partida, punham água dentro e então era banho certo para quem o agarrava.
É claro que
a água era o elemento principal das brincadeiras carnavalescas. A água e a
farinha. Não era raro sair de uma janela uma bacia de água e quem apanhava…
apanhava, claro. Depois, enquanto o atingido procurava sacudir a água que lhe
caíra em cima, vinham, por trás, um grupo de raparigas mais atrevidas,
esfregar-lhes a boca e cara com as mãos cheias de farinha. Outras vezes eram os
rapazes que o faziam às raparigas… Com o correr dos anos, tais brincadeiras desapareceram e os potes
acabaram em Tavarede, com a água canalizada nas casas.
Num determinado ano, em dia de
Carnaval, uma pequena comitiva estabeleceu arraial na rua Direita, frente à
loja que à data era do Guerreiro. Devidamente enfarpelado, de chapéu alto e
casaca, com um enorme “papillon”, resolveu ir dar consulta e fazer reclame da sua
técnica e muita sabedoria o afamado dentista doutor Ernesto Búzio. Os seus
acompanhantes, enfermeiros e auxiliares, montaram o consultório. Pouco depois,
estava o sábio doutor a fazer a propaganda dos seus dotes técnicos, apareceu o
primeiro, e por acaso o único, paciente, por sinal bem paciente, pois, apesar
da cabeça apertada por vistoso cachené, gritava que nem um desalmado, tais
seriam as dores do maldito dente…
Era a
oportunidade desejada pelo doutor Búzio para mostrar as suas elevadas
qualidades. Sentado o doente, dada a anestesia local com uma enorme seringa,
com muito jeito consegue meter-lhe na boca os bicos duma tenaz e, num brusco
movimento, consegue arrancar-lhe… a dentadura postiça. O doutor Ernesto Búzio
foi desempenhado por António Simões,
cantoneiro, e o paciente, que efectivamente tinha dentadura postiça, foi meu
pai, Pedro Medina. A festa acabou no quintal da referida loja, com farta
merenda.
Um outro
episódio carnavalesco que me recordo não acabou tão bem. Desta vez foi frente à loja de António Pedro Carvalho.
Resolveram fazer uma tourada! Um dos intervenientes havia conseguido, por
empréstimo, uma armação figurando uma cabeça de touro, que havia no Coliseu
Figueirense. O escolhido para fazer de touro foi Luís Mineiro, ferroviário, morador
no Casal do Rato. Brinca, brincando, tudo ia correndo bem, com mais passe por
alto, menos passe por baixo, até que, entusiasmado ou espicaçado pela
assistência, resolveu investir com tal violência, contra um dos improvisados
toureiros, que este teve de ser levado de imediato ao hospital da Figueira,
onde lhe foi diagnosticada fractura de uma clavícula!
De
vez em quando fazíamos pequenas cegadas. Algumas vezes, e sem autorização,
conseguíamos mascarar-nos com fatos do guarda-roupa do teatro. Uma noite
conseguimos as fardas de soldados da peça “Justiça de Sua Majestade” e fomos,
Saltadouro acima, fazer uma cegada a Brenha, ao Taborda. Com pífaros e
instrumentos de cana, fizemos sucesso e muito barulho. É que até levámos o
bombo grande da
colectividade. Levámos… é
uma maneira de dizer. Quem o levou e o
trouxe às costas, foi o “Tó Parreco”, a quem conseguimos confiar o encargo…
O badalo
também era uma das partidas mais desejadas pela rapaziada. Normalmente a porta
de entrada das casas tinham um fecho e aí era pendurada, com um grosso cordel,
uma pesada pedra. Um outro cordel era preso a este fio e esticado até à esquina
mais próxima, onde, escondidos, puxavam a pedra que batia com força na porta.
Alguns, e com toda a razão, digamos, afinavam com esta brincadeira. Às tantas
da noite fazerem uma barulhada daquelas à porta, precisamente quando estavam a
descansar…
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