sábado, 27 de junho de 2015

Tavarede no Teatro - 3

“Em busca da Lúcia – Lima”


         Foi no sábado 11 de Abril de 1925 que, pode dizer-se, se abriu a primeira página deste livro da história de “Tavarede no Teatro”. O prólogo, em 1912 e 1913, havia sido relativamente curto, aliás como devem ser todos os prólogos, mas agora já muito material passava a estar disponível.

         Pois naquele sábado houve mais um espectáculo no palco da Sociedade de Instrução Tavaredense. Representou-se a opereta “Em busca da Lúcia-Lima”, em 3 actos e da autoria do distinto poeta e escritor figueirense João Gaspar de Lemos Amorim, que havia uns anos, e quando regressou de África, escolheu a nossa terra para viver, tendo para isso adquirido a Quinta da Mentana, que confrontava com o Largo da Igreja, com a estrada para a Chã até ao ribeiro do Pereiro, e com a estrada do Saltadouro. Ali tinha mandado construir uma vivenda no alto de uma pequena colina, rodeada de frondosas árvores.

         Foi ele que escreveu a referida opereta, a qual foi recheada com 23 números de música, original e coordenada pelo notável amador musical figueirense António Maria de Oliveira Simões, grande colaborador do teatro tavaredense durante toda a sua vida.

         Ao anunciar a sua estreia, o correspondente local de “A Voz da Justiça” escreveu, na edição de 10 daquele mês: “Dizem-nos que pela música, que é lindíssima, com alguns números duma grande beleza e magnífica orquestração, pelo libreto, de entrecho simples mas interessante e com certa cor local, e pela montagem, a representação desta opereta cairá no agrado da plateia figueirense”.

         Parece que, realmente, o público gostou do espectáculo. Antes de entrarmos na análise da peça, o que espero fazer de forma simples mas de maneira a dar a conhecer a mesma, e de alguns apontamentos críticos sobre interpretação e montagem, começo por transcrever um apontamento que encontrei na “Gazeta da Figueira” de 2 de Maio de 1925:

         “Por intermédio do nosso colaborador Raymundo Esteves tivémos a honra de ser apresentados ao ex.mo sr. João Gaspar de Lemos, distintíssimo poeta e auctor da opereta “Em busca da Lúcia-Lima” que ultimamente tem sido representada com agrado no theatro da Sociedade de Instrução Tavaredense.
         Gaspar de Lemos, sem de longe pensar que o estamos entrevistando, vae-nos dando, na sua agradabilíssima conversação, todos os elementos de que carecemos, apenas um pouco ennublados na parte respeitante ao valor da peça, que segundo outros é bem moldada, mas que a sua modéstia, que bem se coaduna com o seu valor, faz ver eivada de erros a que só (expressões suas) a técnica e boa vontade de José Ribeiro e a explêndida música de António Simões, poderiam salvar.
         Descreve-nos a peça. E o assumpto, certamente bem tratado, é tão curioso, tão interessante, tem tanto theatro, tamanha beleza, que a gente logo vê quanta modéstia o auctor tem falando da sua peça do modo ligeiro como o fez.
         Começamos então a sentir verdadeiro desgosto por a não termos visto em scena e Gaspar de Lemos dá-nos umas leves esperanças de que ella seja aqui representada em récita de homenagem à Santa Casa da Misericórdia, e volta-nos a falar com entusiasmo do valor da música, da inteligente encenação, do seu explêndido desempenho que representa uma verdadeira consagração para José Ribeiro pelo triunfo obtido d’aquelles rudes e pouco cultos amadores que por única arma de combate para vencer tanta dificuldade, possuem a boa vontade e o grande desejo de progredir.
         Que Gaspar de Lemos nos perdoe a traiçãosinha e fique certo que aguardamos ocasião de podermos satisfazer o desejo de ver na ribalta a sua “Em busca da Lúcia-Lima”.

         Na semana seguinte é publicada uma carta de Gaspar de Lemos respondendo:

         “Sim, senhores, a cilada foi bem planeada e bem levada a effeito, pondo por isso em evidência que o Raymundo Esteves, o estratégico do ardil, mostra natural vocação para bandoleiro. Não quer isto dizer que o cúmplice entrasse subalternamente no caso como Pilatos no Crédo. Mas estão perdoados! Fiquem, porém, certos de que ao largar os dois e ao afastar-me do local do sinistro, já no meu espírito eu tinha aprehensões e suspeitas da nefaria trama. E sem laivos de rancor, sem sombras d’azedume ou leve ressentimento sequer, dei logo por bem empregado os poucos minutos gastos por nós trez a palrar sobre o assumpto provocador da cilada. Como bem comprehendem, esta deu ensejo a que eu prestasse homenagem bem convictamente ao maestro António Simões, pessoa da minha maior estima, cuja nítida percepção das situações e fino sentimento artístico lhe deram azo a ornar o libretto com deliciosa e captivante música, e bem assim ao José Ribeiro, admirável rapaz que realisou prodígios d’ensinamento na declamação e marcação da peça, manifestando mais uma vez a sua capacidade comprehensiva da technica theatral, não deixando escapar as mais subtis minucias, e tudo isto conjugado com heróica paciência e uma vontade férrea que contrariedade alguma conseguiu quebrantar.
         Exaro aqui o meu agradecimento sincero pelas boas palavras que me dispensa e que se me afiguram excessivas. Não ignoro, é certo, que nas produções literárias d’esta natureza o libretto (enredo e afabulação) constitue  quasi um simples pretexto para exhibir música e indumentária, já vê, pois, meu caro sr. Sobral, que para o êxito da opereta Em busca da Lúcia-Lima e agrado com que nas trez récitas ella foi ouvida, eu contribuí com diminuta quota. Longe de mim o propósito de querer adornar-me com vistosas plumas de enfatuado pavão. Desde o primeiro ensaio d’apuro reconheci logo que o valiosíssimo concurso dos meus amigos e collaboradores evitaria o fracasso da peça. E d’esta vez fui profeta na minha terra. De resto nunca tive pretensões a lançar a público, já não digo uma obra prima (crédo!) no género mas qualquer cousa com o fim d’engodar a notoriedade.
         Creia-me com muita consideração seu creado e admirador, J. Gaspar de Lemos”.

         Houve mais espectáculos em Tavarede nos dois sábados seguintes, e no mês de Julho, foi o grupo cénico tavaredense dar uma representação, com esta peça, no teatro do Parque-Cine, na Figueira, cuja receita reverteu a favor do Hospital da Santa Casa da Misericórdia local.

         Sobre este espectáculo, são muito interessantes as críticas publicadas nos três jornais então publicados na Figueira. E se em “A Voz da Justiça”, relativamente à peça, se diz “era esta opereta, de entrecho simples, com muita cor local, alguns tipos trazidos para o palco com felicidade, e em cujos três actos as brilhantes qualidades de poeta de Gaspar de Lemos se afirmam com pujança. Os versos da Lúcia-Lima fogem ao ramerrão das rimas forçadas, têm sentimento, têm princípio, meio e fim, são espontâneos, ajustando-se perfeitamente à acção da peça e à oportunidade em que são cantados”, e na “Gazeta da Figueira” se escreve “numa opereta, vulgarmente, há apenas um motivo ligeiro, um leve fio de entrecho, para se fazer ouvir música, “Em busca da Lúcia-Lima” tem mais do que isso, tem seu enrêdo, começo, meio e fim, tudo afinado e certo, como é próprio do talentoso autor”, já em “O Figueirense” não se alinha no mesmo estilo e escreve “a peça não está mal feita e melhor posta em cena, mas nasce dum disparate carnavalesco e quase todo o seu enredo é um disparate completo. Não é admissivel, nem mesmo em teatro, que um anúncio carnavalesco publicado num jornal de província, trouxesse a Tavarede, e de aeroplano, dois comerciantes brasileiros, para verem uma mulher que o já referido anúncio dizia ser formosa... Como se no Brasil não houvesse mulheres bonitas!...”.


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