“Em busca da Lúcia – Lima”
Foi no
sábado 11 de Abril de 1925 que, pode dizer-se, se abriu a primeira página deste
livro da história de “Tavarede no Teatro”. O prólogo, em 1912 e 1913, havia
sido relativamente curto, aliás como devem ser todos os prólogos, mas agora já
muito material passava a estar disponível.
Pois naquele
sábado houve mais um espectáculo no palco da Sociedade de Instrução
Tavaredense. Representou-se a opereta “Em busca da Lúcia-Lima”, em 3 actos e da
autoria do distinto poeta e escritor figueirense João Gaspar de Lemos Amorim,
que havia uns anos, e quando regressou de África, escolheu a nossa terra para
viver, tendo para isso adquirido a Quinta da Mentana, que confrontava com o
Largo da Igreja, com a estrada para a Chã até ao ribeiro do Pereiro, e com a
estrada do Saltadouro. Ali tinha mandado construir uma vivenda no alto de uma
pequena colina, rodeada de frondosas árvores.
Foi ele que
escreveu a referida opereta, a qual foi recheada com 23 números de música,
original e coordenada pelo notável amador musical figueirense António Maria de
Oliveira Simões, grande colaborador do teatro tavaredense durante toda a sua
vida.
Ao anunciar
a sua estreia, o correspondente local de “A Voz da Justiça” escreveu, na edição
de 10 daquele mês: “Dizem-nos que pela
música, que é lindíssima, com alguns números duma grande beleza e magnífica
orquestração, pelo libreto, de entrecho simples mas interessante e com certa
cor local, e pela montagem, a representação desta opereta cairá no agrado da
plateia figueirense”.
Parece que,
realmente, o público gostou do espectáculo. Antes de entrarmos na análise da
peça, o que espero fazer de forma simples mas de maneira a dar a conhecer a
mesma, e de alguns apontamentos críticos sobre interpretação e montagem, começo
por transcrever um apontamento que encontrei na “Gazeta da Figueira” de 2 de
Maio de 1925:
“Por intermédio do nosso colaborador
Raymundo Esteves tivémos a honra de ser apresentados ao ex.mo sr. João Gaspar
de Lemos, distintíssimo poeta e auctor da opereta “Em busca da Lúcia-Lima” que
ultimamente tem sido representada com agrado no theatro da Sociedade de
Instrução Tavaredense.
Gaspar de Lemos, sem de longe pensar
que o estamos entrevistando, vae-nos dando, na sua agradabilíssima conversação,
todos os elementos de que carecemos, apenas um pouco ennublados na parte
respeitante ao valor da peça, que segundo outros é bem moldada, mas que a sua
modéstia, que bem se coaduna com o seu valor, faz ver eivada de erros a que só
(expressões suas) a técnica e boa vontade de José Ribeiro e a explêndida música
de António Simões, poderiam salvar.
Descreve-nos a peça. E o assumpto,
certamente bem tratado, é tão curioso, tão interessante, tem tanto theatro, tamanha
beleza, que a gente logo vê quanta modéstia o auctor tem falando da sua peça do
modo ligeiro como o fez.
Começamos então a sentir verdadeiro
desgosto por a não termos visto em scena e Gaspar de Lemos dá-nos umas leves
esperanças de que ella seja aqui representada em récita de homenagem à Santa
Casa da Misericórdia, e volta-nos a falar com entusiasmo do valor da música, da
inteligente encenação, do seu explêndido desempenho que representa uma
verdadeira consagração para José Ribeiro pelo triunfo obtido d’aquelles rudes e
pouco cultos amadores que por única arma de combate para vencer tanta
dificuldade, possuem a boa vontade e o grande desejo de progredir.
Que Gaspar de Lemos nos perdoe a
traiçãosinha e fique certo que aguardamos ocasião de podermos satisfazer o
desejo de ver na ribalta a sua “Em busca da Lúcia-Lima”.
Na semana seguinte é publicada uma carta de Gaspar
de Lemos respondendo:
“Sim, senhores, a cilada foi bem
planeada e bem levada a effeito, pondo por isso em evidência que o Raymundo Esteves,
o estratégico do ardil, mostra natural vocação para bandoleiro. Não quer isto
dizer que o cúmplice entrasse subalternamente no caso como Pilatos no Crédo.
Mas estão perdoados! Fiquem, porém, certos de que ao largar os dois e ao
afastar-me do local do sinistro, já no meu espírito eu tinha aprehensões
e suspeitas da nefaria trama. E sem laivos de rancor, sem sombras d’azedume ou
leve ressentimento sequer, dei logo por bem empregado os poucos minutos gastos
por nós trez a palrar sobre o assumpto provocador da cilada. Como bem
comprehendem, esta deu ensejo a que eu prestasse homenagem bem convictamente ao
maestro António Simões, pessoa da minha maior estima, cuja nítida
percepção das situações e fino sentimento artístico lhe deram azo a ornar o libretto
com deliciosa e captivante música, e bem assim ao José Ribeiro, admirável rapaz
que realisou prodígios d’ensinamento na declamação e marcação da peça,
manifestando mais uma vez a sua capacidade comprehensiva da technica theatral,
não deixando escapar as mais subtis minucias, e tudo isto conjugado com heróica
paciência e uma vontade férrea que contrariedade alguma conseguiu quebrantar.
Exaro aqui o meu agradecimento sincero
pelas boas palavras que me dispensa e que se me afiguram excessivas. Não
ignoro, é certo, que nas produções literárias d’esta natureza o libretto
(enredo e afabulação) constitue quasi um
simples pretexto para exhibir música e indumentária, já vê, pois, meu caro sr.
Sobral, que para o êxito da opereta Em busca da Lúcia-Lima e agrado com
que nas trez récitas ella foi ouvida, eu contribuí com diminuta quota. Longe de
mim o propósito de querer adornar-me com vistosas plumas de enfatuado pavão.
Desde o primeiro ensaio d’apuro reconheci logo que o valiosíssimo concurso dos
meus amigos e collaboradores evitaria o fracasso da peça. E d’esta vez fui
profeta na minha terra. De resto nunca tive pretensões a lançar a público, já
não digo uma obra prima (crédo!) no género mas qualquer cousa com o fim
d’engodar a notoriedade.
Creia-me com muita consideração seu
creado e admirador, J. Gaspar de Lemos”.
Houve mais
espectáculos em Tavarede nos dois sábados seguintes, e no mês de Julho, foi o
grupo cénico tavaredense dar uma representação, com esta peça, no teatro do
Parque-Cine, na Figueira, cuja receita reverteu a favor do Hospital da Santa
Casa da Misericórdia local.
Sobre este
espectáculo, são muito interessantes as críticas publicadas nos três jornais
então publicados na Figueira. E se em “A Voz da Justiça”, relativamente à peça,
se diz “era esta opereta, de entrecho simples, com muita cor local, alguns
tipos trazidos para o palco com felicidade, e em cujos três actos as brilhantes
qualidades de poeta de Gaspar de Lemos se afirmam com pujança. Os versos da
Lúcia-Lima fogem ao ramerrão das rimas forçadas, têm sentimento, têm princípio,
meio e fim, são espontâneos, ajustando-se perfeitamente à acção da peça e à
oportunidade em que são cantados”, e na “Gazeta da Figueira” se escreve “numa
opereta, vulgarmente, há apenas um motivo ligeiro, um leve fio de entrecho,
para se fazer ouvir música, “Em busca da Lúcia-Lima” tem mais do que isso, tem
seu enrêdo, começo, meio e fim, tudo afinado e certo, como é próprio do
talentoso autor”, já em “O Figueirense” não se alinha no mesmo estilo e escreve
“a peça não está mal feita e melhor posta em cena, mas nasce dum disparate
carnavalesco e quase todo o seu enredo é um disparate completo. Não é
admissivel, nem mesmo em teatro, que um anúncio carnavalesco publicado num
jornal de província, trouxesse a Tavarede, e de aeroplano, dois comerciantes
brasileiros, para verem uma mulher que o já referido anúncio dizia ser
formosa... Como se no Brasil não houvesse mulheres bonitas!...”.
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