sábado, 13 de junho de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 10

Algumas festas em Tavarede


         Já não são do meu tempo as grandes festas populares em Tavarede. No primeiro caderno, e com base nas notícias colhidas na imprensa figueirense, recordei as principais. E, segundo os elementos disponíveis, em lugar bem destacado, encontravam-se as festas ao S. João. Destas, o número que tinha mais fama eram as cavalhadas. Na terceira parte deste caderno, entre as diversas histórias que conto, volto a recordar estas festividades, especialmente para dar a conhecer como e quando acabaram.

                                                                                                                                    Mas as cavalhadas foram recordadas num dos primeiros anos de 1940. Lembro-me muito bem de ver desfilar o cortejo frente a minha casa, com a bandeira à frente, a caminho da Figueira e Buarcos, para dar a antiga volta. E, assim, também aqui vou recordar as festas ao Santo Precursor, como o farei a outras que, de alguma forma, ainda se efectuavam ou foram evocadas nos meus tempos.
                                                                                                                                    Das festas sanjoaninas, vou transcrever uma nota escrita por Mestre José Ribeiro.
        
“As chamadas festas de S. João em Tavarede tiveram sempre carácter religioso e profano. Com mais propriedade lhes chamaríamos – São João do Limonete.
         O número de maior realce e que mais avultava nestas festas de S. João, e as tornava bem conhecidas em toda a aldeia e arredores, foram, incontestavelmente, as cavalhadas ou, como mais singelamente se designava o conjunto daqueles festejos – a Bandeira. E, já que referimos a Bandeira, melhor se dirá as bandeiras, porque de duas bandeiras se tratava. Seja-nos permitido ler o que consta da acta da sessão da Junta da Paróquia de Tavarede, de 26 de Junho de 1889:
         “As bandeiras de S. João são trastes ou objectos da paróquia, tendo o padre obrigação de fazer a sua entrega aos forasteiros que se apresentarem para fazer a festa, visto que o fim principal destas funções é um divertimento de arraial com fogueiras no mês de Junho, onde se salta, canta e dança estouvadamente; iluminações nas ruas, cavalhadas em toda a qualidade de alimárias, mascaradas grotescas, com folganças e exibições fantasiosas, tudo para entreter, divertir e fazer rir”.


         Antes do início das festas fazia-se a chamada pega da bandeira, às vezes com cerca de um ano de antecedência sobre a nova festa de S. João.
         Na manhã do primeiro domingo da festa havia a função religiosa, com aparatosa ornamentação da igreja, missa cantada e sermão. Vinha também orquestra, e alguns cantadores de Coimbra.
         As cavalhadas eram o prato forte da festa, com o grande cortejo equestre, assim formado: abrindo o cortejo, em nota cómica e com sabor carnavalesco, vinha numerosa burricada, em jeito de guarda-avançada da cavalaria que abria com dois guias, assim chamados os dois cavaleiros que iniciavam o solene cortejo hípico e exibiam cada um a sua vara de 2 metros, pintada de branco e com um lacinho de fita de cor. Seguia-se então a cavalaria, em duas filas que marginavam as ruas do percurso; nesse conjunto destacavam-se dois grupos de 3 cavaleiros: o porta-estandarte da bandeira pequena, ao centro e os dois padrinhos, um de cada lado, e grupo semelhante com a bandeira grande. Era um cortejo extenso, vistoso e imponente.
         No asínino grupo da guarda-avançada já referida destacava-se o muito simpático, e sempre alegre e desejada presença, representante da famosa e estimadíssima dinastia dos Toquins de Tavarede. Este vistoso cortejo passava por Buarcos, ia dar volta à Praça Nova, na Figueira, e vinha de seguida a Tavarede, a dar as tradicionais 3 voltas à igreja, enquanto festivamente repicavam os sinos da torre.
Emudecidos os sinos, era a pausa do cortejo. Os cavaleiros abalavam por instantes largando rédeas; as mesmo tempo, ao longo da rua, desde a Igreja ao Paço, vão-se abrindo as portas e aparecem as moradoras, mulheres e raparigas, sobraçando limonete, erguendo e oferecendo, em alegria ruidosa, ramos de limonete, braçadas de limonete, numa apoteose de verdura rústica e bem cheirosa. O silêncio tristonho da rua mudou-se em animação de vozear alegre; dominava já a mocidade de Buarcos, gente moça que aproveitava o passeio e homens e mulheres que vinham à feira do limonete. Pequenos quintais de residências, leiras do Quintal Ferreira, retalhos de várzeas em redor da aldeia, eram pródigos em limonete: fosse velhos troncos que a poda impiedosamente fizesse reverdecer e enfeitar-se de novos e sempre renovados ramos, ou novos e generosos limoneteiros que já exibiam ramos vigorosos, alguns prestes a enfeitarem-se de pequeninas estrelas nas pontas dos ramos franzinos, em flores ternadas ou binadas, dispostas em espigas frouxas, formando panícula piramidal.
         Nesta pausa do cortejo, intervalo obrigatório, os cavaleiros não se ficavam quedos, que o não consentiam os cavalos frenéticos, talvez já embriagados com o cheiro da lúcia-lima, a bela-luísa, a doce-lima, a erva-luísa, o pessegueiro inglês – que tudo é limonete.
         Alguns dos cavaleiros vestiam fraque e chapéu alto, e era vê-los abalarem, velozes, pela rua cheia de gente, aproveitando o intervalo para uma fuga em visita-relâmpago aos arredores da aldeia.
         A cerimónia religiosa, na igreja primorosamente ornamentada para o efeito, realizava-se com toda a pompa e respeito. Orquestra e cantores fizeram-se ouvir no coro. No púlpito, um sacerdote proferiu adequado sermão. A cerimónia decorria sob a invocação de São João Baptista. Não me lembro de ter ouvido referir no sermão o nome de Herodíase que no meu espírito vinha sempre ligado ao da luxuriosa Salomé e ao martírio de São João Baptista, o profeta Yokanaan. A propósito, direi que vi a cabeça degolada do puro e austero pastor que vivia no deserto e se alimentava de mel silvestre e gafanhotos. Posso garantir que vi a cabeça de S. João Baptista – moldada em barro, naturalmente... e muito bem pintada -, já colocada sobre o grande prato de cobre que servia ao sedutor bailado da Salomé, no caso interpretada pela exímia, rica e formosa bailarina Sara Sevilha, que teve luxuosa habitação na Figueira, no chalé da quinta do Pinhal, muito falada então bailarina famosa que tivemos oportunidade de apresentar aos leitores de “A Voz da Justiça”, neste nosso jornal nos dias 9, 20 e 30 de Maio de 1922.
         Passaram 60 anos...
         Terá envelhecido a sempre jovem, brilhante e formosa Salomé do chalé luxuoso e rico do Pinhal?”.

         Quase tão desejadas quanto as festas a S. João, eram as madrugadas do primeiro de Maio, estas com a particularidade de inspirarem poetas. E se já transcrevi alguns trechos bem poéticos, muitos mais encontrei e que merecem ser recordados. O poeta e escritor figueirense António Augusto Esteves, que usou o pseudónimo de Carlos Sombrio, deixou-nos descrito a primeiro de Maio na fonte da Várzea.

         “Quem não conhece, na madrugada de amanhã, a Fonte da Várzea da Figueira?
         Ranchos alegres que apregoam, nas cantigas repassadas de côr, a alegria salutar do amor, da vida, da felicidade!...
         Cântaros à cabeça, transformados em maciços de flôres, elas lá vão em busca da água fresquinha que hão de trazer no regresso, depois de bailarem a alegria que lhes vai nas almas e de folgarem tôda a mocidade que vive nos seus corações amorosos.
         É que aquela Várzea é bem, neste dia, um altar onde as moças poisam as melhores preces de seu amor feliz, e onde fazem as preces da sua alegria venturosa.
         Reboam ali, naquele largo, pertinho da Fonte, cantigas desfiadas por fieiras de oiro, correndo, como veios de água cantante e fresca, cada vez mais felizes, cada vez com mais encantos.
         E quando o sol se ergue para doirar a folhagem tenra dos arbustos, a desafiar o viço e a roubar a frescura das rosas – manchas de neve, pintas de oiro ou pontos vermelhos, sensuais, de fogo aveludado -, em que a palidez da madrugada empresta às moças desaparece, para as fazer de olhar mais perturbante, mais amoroso e mais feiticeiro, a ventura, a saúde, o prazer de gosar a liberdade, de cantar e de viver, assim, à sôlta, - viver que não extenua, que não cansa, que perturba e entontece, - então os corações erguem-se mais altos, tão altos como a alegria juvenil da mocidade – tal qual como os braços espinhosos das roseiras, e contam á água fresca que os cântaros levam, a sua alegria que, por ser muita, é sempre pouca – tão curta é a hora feliz que os venturosos julgam descuidadamente viver!
         Pudessem muitos mentir, e na madrugada de amanhã, o riso a florir nos lábios, a alma, lá dentro, a brincar contente, satisfeita e feliz, ir até à Várzea, nos ranchos alados da mocidade, e dizer às rosas, no seu dia, o que sentem e o que não podem dizer!...
         Se assim fôsse, todos seriamos felizes, todos seriamos alegres, contentes, pelo menos, aparentemente.
         E as rosas, no dia do seu culto, teriam, naturalmente, mais beleza, mais frescura e mais perfume!...”.


         Finalmente, mais uma vez recorro a Mestre José Ribeiro. Aliás, foi ele quem em 1950, na sua peça “Chá de Limonete”, fez reviver o rancho dos potes floridos de Tavarede.

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