A matança do porco e vindima
Eram
sempre, para mim, dois dias em cheio. Primeiro , em Setembro, eram as vindimas e,
já no inverno, era a matança do porco. Vou começar por esta e nada melhor do
que copiar o que se escreve no livro “Figueira do Passado ao Presente –
Gastronomia e Culinária”.
“Não há
muitos anos ainda, as famílias dos arredores da cidade criavam o seu porco,
alimentado com as sobras das refeições e para o qual se cozinhava
propositadamente a “lavagem”, com água, couves e farinha ou sêmea, o que
permitia que o toucinho entremeado ficasse mais gostoso.
A matança,
geralmente em Dezembro e escolhida a fase da lua conveniente, segundo a boa
tradição popular, era pretexto para a reunião de toda a família. Faziam-se os
bolos de sangue, as morcelas, as papas de moado, e conservavam-se na salgadeira
os ossos e o toucinho. Preparavam-se os negritos, os chouriços e os presuntos
que haviam de chegar para todo o ano, sem falar na banha, nos rojões, no sal de
unto e nos torresmos. Os lombos assados no forno eram conservados em banha e
comiam-se parcimoniosamente nos dias de festa. Até a cabeça era aproveitada,
juntamente com as queixadas, a língua, as orelhas e os miolos, de que se
preparava um prato requintado com ovos, pedaços de carne e miolo de pão”.
Recordo
três épocas. Primeiro, nos meus tempos de rapazito, era a matança anual em casa
de meus avós paternos, em
Tavarede. Já rapazote, passei a ir, todos os anos, a Reveles
às matanças em casa de meus tios maternos. Posteriormente, e outra vez em
Tavarede, nunca deixarei de recordar a matança do porco, numa casa cujos donos
não quero nem posso deixar de recordar nestas histórias, pois sempre foram para
mim de uma bondade e de um carinho verdadeiramente excepcionais. Gratamente,
evoco as figuras do senhor Elói e da senhora Pureza, em cuja casa, durante
tantos anos, fui sempre bem recebido no grupo de amigos que ali se reuniam
nestes dias e não só.
Algumas vezes assisti a todos os
preparativos que antecedem a matança. O preparar da forte tábua inclinada, o ir
buscar o animal ao curral e ao amarrá-lo, fortemente, para estrebuchar o menos
possível enquanto era sangrado. O sangue, que corria em esguicho da facada,
caía num alguidar de barro vidrado, onde estava um pouco de sal e vinagre e era
constantemente mexido com uma colher de pau, para não coalhar.
Ainda o dia
mal tinha rompido e já o porco se encontrava chamuscado e muito bem lavado e
esfregado. Era chegado o momento da primeira paragem. Se ao chegarem, os homem
“matavam o bicho” com figos secos e aguardente, havia agora petisco de garfo,
que constava sempre de bacalhau assado na brasa, temperado em abundância com
bom azeite e no qual sobressaíam muitas lascas de alho. A travessa era colocada
em cima da carcaça do pobre animal. Para acompanhar, o vinho tinto caseiro.
Acabado o
petisco era o porco amanhado. Nesta altura já havia sido aceso um fogareiro,
onde, enquanto trabalhavam, iam grelhando pequenos pedaços de carne. Algumas
mulheres encarregavam-se da lavagem das tripas, para os enchidos, enquanto
outras iam preparando o almoço. Depois de devidamente amanhado, o animal era
pendurado para o enxugo e com as mantas da carne bem abertas e separadas com
pedaços de cana, para melhor escorrerem os restos de sangue. Muitas vezes, e
quando não a aproveitavam para qualquer enchido, davam-me a bexiga. Vazia e com
um fino canudo de cana, enchia-a de ar e servia para brincar, como se fosse uma
bola.
O almoço
constava, habitualmente, da tradicional sopa à lavrador, couves com feijão,
pedaços de toucinho entremeado e rodelas de bom chouriço, que nadavam em
abundância no caldo e que faziam a delícia de todos, comendo-se, até, por
gulodice…
Seguia-se o
inevitável sarrabulho, com batatas cozidas. Comia-se até mais não e bebia-se
melhor, pois o vinho era bom e à discrição.
A digestão
era feita, pelos homens, na costumada “garujada”. Ao redor da comprida mesa,
jogadores e assistentes ali passavam a tarde, ouvindo-se constante cantar de
seis, nove e acaba-se a moca… para mais depressa se beber outro copo. É que as
taçadas de freiras, entretanto trazidas para a mesa, secavam a boca…
À noite, o
jantar era composto de canja de galinha caseira, febras fritas com batatas
igualmente fritas e ovos estrelados, e, como sobremesa, as gostosas papas de
moado, polvilhadas com canela. É extraordinário como se comia e bebia naquele
dia!
No dia
seguinte era o desmanchar do porco, com as carnes para a salgadeira, e a
preparação dos presuntos e dos enchidos, que logo iam para o fumeiro.
Os dias das
vindimas também eram passados no meio da maior alegria. Grupos de homens e
mulheres, mais novos ou mais idosos, iam manhã cedo para as vinhas. Pequeno
cesto numa mão e tesoura na outra, lá
iam de cepa em cepa colhendo os cachos cuidadosamente. Cesto cheio iam vazá-lo
à dorna, que estava em cima do carro de bois à entrada do terreno. Cantava-se
muito. E, de vez em quando, molhava-se a goela…
Eu gostava
muito de, com um pequeno cesto enfiado no braço e uma velha tesoura de costura,
ir vindimar os corrimões. Cortavam-se melhor os cachos. Depois, quando o carro
dos bois vinha trazer as uvas à adega, lá vinha eu sentado ao lado da dorna e a
comer cachos doces. Quando a vindima acabava e regressavam todos a casa, era a
ocasião da pisa, no enorme balseiro. Eram três ou quatro homens que procediam a
esta tarefa. Algumas vezes, agarrando-me por baixo dos braços, também me metiam
lá dentro. Diziam que dava força às pernas! Mas eu gostava, de verdade.
E o mosto
lá ficava a fermentar, até ser trasfegado para as pipas, onde continuava a
fermentação. Depois era feita a água-pé, juntando uns canecos de pura água ao
bagaço e prensando o mesmo, pois ainda continha muito vinho. Ficava sempre uma
bela água-pé. A faina ainda não terminava, pois havia que levar o bagaço para o
alambique, para destilar e fazer aguardente. Algumas vezes, num pequeno barril,
metiam mosto e aguardente e faziam jeropiga, a que juntavam algum açúcar
amarelo, o que tornava aquilo numa bebida doce e agradável, embora um pouco
alcoólica.
Enquanto
fervia o mosto nas pipas elas não eram fechadas, tinham só um marmelo em cima
para não entrar pó. Quando acabava a fermentação, eram então as pipas
devidamente fechadas e aguardava-se, com alguma impaciência, que chegasse o dia
de S. Martinho para, com um pequeno “espicho”, provar o vinho. Normalmente, era
sempre bom…
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