sábado, 14 de novembro de 2015

Tavarede no Teatro - 22

         Vem, depois, a fita do Zé Relaxado. É interessante a sua história. Tem um filho a estudar em Coimbra. A estudar leis. E porquê?

         “Preciso de ter à minha ilharga um home que saiba disto das taxas, das avenças, das décimas e dessas coisas todas que a gente tem de pagar. Bom dinheiro me custa. Mas mais do que me custa a inducação do rapaz, tenho eu gasto em custas, juros e relaxes. Volta e meia, zás! Tenho um relaxe em cima de mim; quando não estou relaxado, estou multado; quando não estou multado, estou colectado. Eu cá não me entendo com isto. Viro-me p’rá direita, tenho um relaxe da predial; volto-me p’rá esquerda, é o relaxe da indústria; são relaxes por todos os lados, estou relaxado pela direita e pela esquerda, pela frente e pela rectaguarda. Até me chamam o Zé Relaxado”.

         Realmente, para acabar com esta fita, nada melhor que um homem de leis!

         E continuam a passar as fitas da aldeia. Passam as dos três Estados vizinhos: Brenha, Quiaios e Buarcos; da hortaliça, com a bela couve e o gostoso nabo do Saltadouro; a da rua Direita e a do Caminho dos Canos.

         A da rua Direita lamenta-se, e talvez com razão. É que o Caminho dos Canos, agora, estava irreconhecível, bem arranjado. “Lá porque eu era um triste caminho envergonhado, por onde só passava a gente do Praso e Azenhas, sem falar nos burros com estrume para as fazendas, não tinha direito a modernizar-me?” E não se esquecessem que o Caminho dos Canos era o Caminho do Céu, “porque ninguém vai para o céu sem ser pela mão do sr. Vigário e o sr. Vigário mora no Caminho dos Canos”.

         Bem podia reclamar a rua Direita, “eu, que chego do Paço ao Rio; que tenho de dar passagem às criancinhas quando vão a baptizar; aos noivos quando vão casar; e aos velhos quando vão a enterrar. Não querem saber de mim e continuo num estado vergonhoso, tornada lama quando chove, cheia de covas quando faz sol”. Enfim, as fitas do costume, bem pouco diferentes das de hoje.

         E cheio de curiosidade pela colecção de fitas coloridas que a Princesa promete mostrar-lhe, o Tio Joaquim acompanha-a ao seu palácio, um palácio encantado, todo feito de flores e sempre repleto de perfumes.

         O velho Joaquim, admiradíssimo, arregala os olhos à medida que as várias fitas lhe vão sendo apresentadas:

Princesa - Minhas queridas fitas. Trago-vos aqui a pessoa mais importante, mais sabedora e mais considerada nesta florida terra de Tavarede. Tenho o prazer de vos apresentar o Tio Joaquim.
Fitas - Tio Joaquim...
Tio Joaquim - Minhas meninas...
Princesa - Quis ver o nosso palácio e sobretudo, deliciar-se com a vossa beleza, deslumbrar a vista com a policromia estonteante das minhas fitas.
Tio Joaquim - E palavrinha de honra, princesinha, estou de boca aberta! Isto não é um palácio, é um jardim daqueles onde dizem que moram as fadas. E estas fitas - Ai Joaquina, ai Joaquina, ai Joaquina, para onde veio o teu Joaquim - são fitas de enfeitiçar um homem. O Mercúrio pôs-se a voar com as bruxas, se ele tem visto estas fitas coloridas, ai Nossa Senhora! que grande fita que ele fazia lá no planeta.
Princesa - Bonitas não é verdade? Repare no seu brilho. Têm a maciesa do veludo e do cetim.
Tio Joaquim - Lá que são bonitas: são-no a valer; agora se são de veludo ou de setim, isso não sei porque não apalpei. Mas... mas devem ser. Se houvesse destas fitas lá em casa, não queria doutras nas ceroulas. Lindas, lindas a acabar.
Princesa - Nem admira. São tingidas com flores, recebem delas a cor e o perfume. A fita vermelha é colorida com os cravos rubros, e chama-se Amor.
Tio Joaquim - Que lindo Amor para trazer ao peito.
Princesa - A fita verde chama-se Esperança, - faço-a com as folhas do limonete.
Tio Joaquim - Acautele-se que a podem comer. Há por aí muito quem goste do verde.
Princesa - (Apontando a fita cor de rosa) A Delicadeza - tem o colorido e a macieza da rosa. - Azul - sente-se nesta fita a súplica humilde dos miosótis. Por isso lhe chamam “Não te esqueças de mim”.
Tio Joaquim - Não me esqueço, esteja descansada. (áparte) Da minha Joaquina é que eu me esqueço se aqui me demoro muito tempo.
Princesa - (Apontando a fita lilás) Melancolia - O colorido brando da glicínia e do lilás. E aqui tem a fita branca.
Tio Joaquim - Quer dizer, a fita em que não sai nada.
Princesa - Não. Isso é na lotaria. A fita branca tem grande utilidade na minha tinturaria. Faço misturas com ela.
Tio Joaquim - Ná... misturas é que eu não quero.
Princesa - É a Pureza, por isso é que as noivas vão vestidas de branco e levam a branca flor de laranjeira.
Tio Joaquim - Às vezes não é bonito. Nalgumas noivas assentava melhor uma sardinheira encarnada.
Princesa - Faço com as minhas fitas lindíssimas combinações. Quer ver? A fita verde e a vermelha. (as fitas vão formando grupos à medida que vão sendo chamadas) A bandeira da Pátria.
Tio Joaquim - Cores lindas de Portugal. Símbolo da Pátria e da República. Foi sob estas cores gloriosas que os nossos soldados lutaram, souberam morrer e vencer na África e em França ao lado dos Aliados.
Princesa - Vermelho e azul - A Sociedade de Instrução Tavaredense, conhece?
Tio Joaquim - Quem é que não conhece a Sociedade de Instrução, que tantos benefícios tem prestado à educação dos meus patrícios? Faz hoje vinte e quatro anos. Parabéns! Parabéns!
Princesa - Verde e branco - As cores Navalistas.
Tio Joaquim - Atrás delas na Figueira segue uma multidão entusiasmada.
Princesa - E mudando o verde pelo vermelho - assim - teremos o Ginásio.
Tio Joaquim - Conheço muito bem. O seu nome levou-o o Zé Bento até muito longe.
Princesa - E aqui temos ainda o azul e branco, de que eu muito gosto.
Tio Joaquim - Ai que a princesinha é talassa...
Princesinha - Ora essa! Porque diz isso?
Tio Joaquim - Essa fita azul e branca...
Princesa - Ah! Não é o que supõe. A fita azul e branca a que alude é fita que já não passa em Portugal. Quebrou-se há dezassete anos e já não é possível colá-la de novo.
Tio Joaquim - Sim, sim, não cola.
Princesa - Isto são muito simplesmente as cores do Sporting Clube Figueirense!
Tio Joaquim - Ah! Isso é outra coisa.

         A Princesa, depois da apresentação, convida-o para jantar e passar a noite no palácio. Mas... e a Tia Joaquina? Como é que havia de a avisar? Facílimo. Lá no palácio tinham um telefone sem fios. Bastava carregar na mola e falar. Tudo o que dissesse ao aparelho seria ouvido no Largo da Igreja.

         Entusiasmado com as histórias das fitas, resolve-se e vai telefonar. E espera que a mulher vá na fita!

Tio Joaquim - Ora aí está. Não temos fios para o telefone, mas há telefone sem fios. Como diabo pode isto ser? Não será fita das Fitas? Vamos experimentar. (ao aparelho) Está lá? (pausa) Eh! Tanto barulho! Malcriadas! São as mulheres de Quiaios que vieram à sardinha. Línguas porcas... está lá? Olha lá? Pst! Pst! Tu não ouves? Ó rapaz!... sou eu, o Tio Joaquim! (pausa) Sim, o Tio Joaquim, pois quem? Olha: Vai dizer à minha mulher que chegue aí ao largo da Igreja para me falar. (deixando o aparelho) Ai a minha Joaquina, se ela soubesse... E o povinho de Tavarede, se soubesse que eu passava uma noite fora de casa para andar embrulhado com as fitas... E é uma boa embrulhada... (ouvindo o aparelho) Ahn! És tu? Sim, sim, sou eu. Fui, fui... (rindo) Ah! Ah! Ah! Não é nenhuma alma do outro mundo, mulher. Sou eu mesmo, o teu homem, o teu Joaquim. Isto é uma coisa nova, a telefonia sem fios. Olha, sabes? É para te dizer que não esperes por mim para a ceia! (áparte) Ai Jesus! (pausa; alto) Não, mulher, olha que disparate. Estou no Palácio da Princesa das Fitas. Ela pediu-me para eu cá vir para lhe fazer uns enxertos no jardim, e não me posso ir embora sem deixar tudo acabado. (pausa; áparte) Bonito! Que alarve que eu sou! (recordando-se) Espera que eu te digo. (alto) Cala a boca, mulher, que o que estás a dizer é uma heresia. Eu era lá homem para te fazer uma dessas? Enxertos, sim, sim senhor, são umas roseiras especiais que só se enxertam de noite que é para a flor abrir melhor. (pausa; áparte) Engoliu-a! (alto) Olha! Eu vou cedo, em sendo dez..  ou onze horas... Mas às vezes, a enxertia pode correr mal e demorar até de manhã. Em todo o caso não te esqueças de recomendar ao José Serra que vá logo de manhã buscar uma carrada de pilado para o quintal do Ferreira. Está bem. Até logo. (deixando o aparelho) E agora, visto que a minha mulher foi na fita - vamos às Fitas!

         E acaba esta pequena fantasia com a apoteose das fitas, das fitas de Tavarede!


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