Vem, depois,
a fita do Zé Relaxado. É interessante a sua história. Tem um filho a estudar em
Coimbra. A estudar leis. E porquê?
“Preciso de
ter à minha ilharga um home que saiba disto das taxas, das avenças, das
décimas e dessas coisas todas que a gente tem de pagar. Bom dinheiro me custa.
Mas mais do que me custa a inducação do rapaz, tenho eu gasto em custas,
juros e relaxes. Volta e meia, zás! Tenho um relaxe em cima de mim; quando não
estou relaxado, estou multado; quando não estou multado, estou colectado. Eu cá
não me entendo com isto. Viro-me p’rá direita, tenho um relaxe da predial;
volto-me p’rá esquerda, é o relaxe da indústria; são relaxes por todos os
lados, estou relaxado pela direita e pela esquerda, pela frente e pela
rectaguarda. Até me chamam o Zé Relaxado”.
Realmente,
para acabar com esta fita, nada melhor que um homem de leis!
E continuam
a passar as fitas da aldeia. Passam as dos três Estados vizinhos: Brenha,
Quiaios e Buarcos; da hortaliça, com a bela couve e o gostoso nabo do
Saltadouro; a da rua Direita e a do Caminho dos Canos.
A da rua
Direita lamenta-se, e talvez com razão. É que o Caminho dos Canos, agora,
estava irreconhecível, bem arranjado. “Lá porque eu era um triste caminho
envergonhado, por onde só passava a gente do Praso e Azenhas, sem falar nos
burros com estrume para as fazendas, não tinha direito a modernizar-me?” E não
se esquecessem que o Caminho dos Canos era o Caminho do Céu, “porque ninguém
vai para o céu sem ser pela mão do sr. Vigário e o sr. Vigário mora no Caminho
dos Canos”.
Bem podia
reclamar a rua Direita, “eu, que chego do Paço ao Rio; que tenho de dar
passagem às criancinhas quando vão a baptizar; aos noivos quando vão casar; e
aos velhos quando vão a enterrar. Não querem saber de mim e continuo num estado
vergonhoso, tornada lama quando chove, cheia de covas quando faz sol”. Enfim,
as fitas do costume, bem pouco diferentes das de hoje.
E cheio de
curiosidade pela colecção de fitas coloridas que a Princesa promete
mostrar-lhe, o Tio Joaquim acompanha-a ao seu palácio, um palácio encantado,
todo feito de flores e sempre repleto de perfumes.
O velho
Joaquim, admiradíssimo, arregala os olhos à medida que as várias fitas lhe vão
sendo apresentadas:
Princesa - Minhas
queridas fitas. Trago-vos aqui a pessoa mais importante, mais sabedora e mais
considerada nesta florida terra de Tavarede. Tenho o prazer de vos apresentar o
Tio Joaquim.
Fitas - Tio
Joaquim...
Tio Joaquim - Minhas
meninas...
Princesa - Quis ver o
nosso palácio e sobretudo, deliciar-se com a vossa beleza, deslumbrar a vista
com a policromia estonteante das minhas fitas.
Tio Joaquim - E
palavrinha de honra, princesinha, estou de boca aberta! Isto não é um palácio,
é um jardim daqueles onde dizem que moram as fadas. E estas fitas - Ai
Joaquina, ai Joaquina, ai Joaquina, para onde veio o teu Joaquim - são fitas de
enfeitiçar um homem. O Mercúrio pôs-se a voar com as bruxas, se ele tem visto
estas fitas coloridas, ai Nossa Senhora! que grande fita que ele fazia lá no
planeta.
Princesa - Bonitas não
é verdade? Repare no seu brilho. Têm a maciesa do veludo e do cetim.
Tio Joaquim - Lá que são
bonitas: são-no a valer; agora se são de veludo ou de setim, isso não sei
porque não apalpei. Mas... mas devem ser. Se houvesse destas fitas lá em casa,
não queria doutras nas ceroulas. Lindas, lindas a acabar.
Princesa - Nem admira.
São tingidas com flores, recebem delas a cor e o perfume. A fita vermelha é
colorida com os cravos rubros, e chama-se Amor.
Tio Joaquim - Que lindo
Amor para trazer ao peito.
Princesa - A fita
verde chama-se Esperança, - faço-a com as folhas do limonete.
Tio Joaquim - Acautele-se
que a podem comer. Há por aí muito quem goste do verde.
Princesa - (Apontando
a fita cor de rosa) A Delicadeza - tem o colorido e a macieza da rosa. - Azul -
sente-se nesta fita a súplica humilde dos miosótis. Por isso lhe chamam “Não te
esqueças de mim”.
Tio Joaquim - Não me
esqueço, esteja descansada. (áparte) Da minha Joaquina é que eu me esqueço se
aqui me demoro muito tempo.
Princesa - (Apontando
a fita lilás) Melancolia - O colorido brando da glicínia e do lilás. E aqui tem
a fita branca.
Tio Joaquim - Quer dizer,
a fita em que não sai nada.
Princesa - Não. Isso é
na lotaria. A fita branca tem grande utilidade na minha tinturaria. Faço
misturas com ela.
Tio Joaquim - Ná...
misturas é que eu não quero.
Princesa - É a Pureza,
por isso é que as noivas vão vestidas de branco e levam a branca flor de
laranjeira.
Tio Joaquim - Às vezes
não é bonito. Nalgumas noivas assentava melhor uma sardinheira encarnada.
Princesa - Faço com as
minhas fitas lindíssimas combinações. Quer ver? A fita verde e a vermelha. (as
fitas vão formando grupos à medida que vão sendo chamadas) A bandeira da
Pátria.
Tio Joaquim - Cores
lindas de Portugal. Símbolo da Pátria e da República. Foi sob estas cores
gloriosas que os nossos soldados lutaram, souberam morrer e vencer na África e
em França ao lado dos Aliados.
Princesa - Vermelho e
azul - A Sociedade de Instrução Tavaredense, conhece?
Tio Joaquim - Quem é que
não conhece a Sociedade de Instrução, que tantos benefícios tem prestado à
educação dos meus patrícios? Faz hoje vinte e quatro anos. Parabéns! Parabéns!
Princesa - Verde e
branco - As cores Navalistas.
Tio Joaquim - Atrás delas
na Figueira segue uma multidão entusiasmada.
Princesa - E mudando o
verde pelo vermelho - assim - teremos o Ginásio.
Tio Joaquim - Conheço
muito bem. O seu nome levou-o o Zé Bento até muito longe.
Princesa - E aqui
temos ainda o azul e branco, de que eu muito gosto.
Tio Joaquim - Ai que a
princesinha é talassa...
Princesinha - Ora essa!
Porque diz isso?
Tio Joaquim - Essa fita
azul e branca...
Princesa - Ah! Não é o
que supõe. A fita azul e branca a que alude é fita que já não passa em Portugal.
Quebrou-se há dezassete anos e já não é possível colá-la de novo.
Tio Joaquim - Sim, sim,
não cola.
Princesa - Isto são
muito simplesmente as cores do Sporting Clube Figueirense!
Tio Joaquim - Ah! Isso é
outra coisa.
A Princesa,
depois da apresentação, convida-o para jantar e passar a noite no palácio.
Mas... e a Tia Joaquina? Como é que havia de a avisar? Facílimo. Lá no palácio
tinham um telefone sem fios. Bastava carregar na mola e falar. Tudo o que
dissesse ao aparelho seria ouvido no Largo da Igreja.
Entusiasmado
com as histórias das fitas, resolve-se e vai telefonar. E espera que a mulher
vá na fita!
Tio Joaquim - Ora aí está. Não temos fios para o telefone, mas há telefone sem
fios. Como diabo pode isto ser? Não será fita das Fitas? Vamos experimentar.
(ao aparelho) Está lá? (pausa) Eh! Tanto barulho! Malcriadas! São as mulheres
de Quiaios que vieram à sardinha. Línguas porcas... está lá? Olha lá? Pst! Pst!
Tu não ouves? Ó rapaz!... sou eu, o Tio Joaquim! (pausa) Sim, o Tio Joaquim,
pois quem? Olha: Vai dizer à minha mulher que chegue aí ao largo da Igreja para
me falar. (deixando o aparelho) Ai a minha Joaquina, se ela soubesse... E o
povinho de Tavarede, se soubesse que eu passava uma noite fora de casa para andar
embrulhado com as fitas... E é uma boa embrulhada... (ouvindo o aparelho) Ahn!
És tu? Sim, sim, sou eu. Fui, fui... (rindo) Ah! Ah! Ah! Não é nenhuma alma do
outro mundo, mulher. Sou eu mesmo, o teu homem, o teu Joaquim. Isto é uma coisa
nova, a telefonia sem fios. Olha, sabes? É para te dizer que não esperes por
mim para a ceia! (áparte) Ai Jesus! (pausa; alto) Não, mulher, olha que
disparate. Estou no Palácio da Princesa das Fitas. Ela pediu-me para eu cá vir
para lhe fazer uns enxertos no jardim, e não me posso ir embora sem deixar tudo
acabado. (pausa; áparte) Bonito! Que alarve que eu sou! (recordando-se) Espera
que eu te digo. (alto) Cala a boca, mulher, que o que estás a dizer é uma
heresia. Eu era lá homem para te fazer uma dessas? Enxertos, sim, sim senhor,
são umas roseiras especiais que só se enxertam de noite que é para a flor abrir
melhor. (pausa; áparte) Engoliu-a! (alto) Olha! Eu vou cedo, em sendo
dez.. ou onze horas... Mas às vezes, a
enxertia pode correr mal e demorar até de manhã. Em todo o caso não te esqueças
de recomendar ao José Serra que vá logo de manhã buscar uma carrada de pilado
para o quintal do Ferreira. Está bem. Até logo. (deixando o aparelho) E agora,
visto que a minha mulher foi na fita - vamos às Fitas!
E acaba esta pequena fantasia com a
apoteose das fitas, das fitas de Tavarede!
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