sexta-feira, 25 de julho de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 86

         E no ano de 1963, a Sociedade de Instrução participou, no Casino da Figueira e a convite da Biblioteca Pública da Figueira, nas primeiras comemorações do Dia Mundial do Teatro. Esforço colossal, ao mesmo tempo ingrato, o de Mestre José Ribeiro, ao encenar Teatro Vicentino ao correr a cortina do Peninsular para apresentar o seu grupo de amadores, dizendo e mimicando os versos do criador do Teatro Português, do Género Satírico e Causticante, por vezes Sentimental e Poético de Mestre Gil Vicente. Esforço colossal, porque dar vida a qualquer das obras Vicentinas, conseguir de amadores – embora de grande categoria – o ritmo, a dicção, a sobriedade mímica, a simplicidade ingénua – que é dificuldade ingénita – a cor, a graça e o espírito essenciais nesta classe de espectáculos, é tarefa árdua e ousada, cometimento não conseguido por muitos profissionais de teatro, não só na visão geral, como na interpretação dos textos, difíceis de destrinçar, pois que, de peça para peça, surgem novos enigmas, géneros diferentes, momentos de puro lirismo, de audaciosa fantasia, um expressões do mais puro realismo, que obrigam o realizador a um estado especial para cada peça e às vezes para cada cena. 
         Ingrato, dissemos, porque infelizmente, os grupos dramáticos são pobres, não têm qualquer auxílio e as receitas das bilheteiras raras vezes dão para satisfazer os pesados encargos da representação. Ora, para a apresentação destes espectáculos, as despesas são avultadas e... Gil Vicente não consegue afluência à bilheteira, porque, só os raros que sabem ver Gil Vicente, vão ver Gil Vicente.
         José Ribeiro é talvez o último abencerragem para cometimentos heróicos no tablado. A sua direcção e o seu saber, deram-nos um admirável espectáculo, triunfaram com mérito absoluto no teatrinho do Peninsular. Parabéns e um grande abraço.
         Não podemos nem nos atreveríamos a apreciar as obras do Grande Mestre agora representadas. Sobre Gil Vicente, os maiores investigadores e mais notáveis literatos, têm escrito milhares de páginas. Nós que andamos sempre de braço dado com a saudade, recordamos as interpretações dos nossos mais notáveis artistas. Quem viu Augusto Rosa, no “Diabo da barca do Inferno”, jamais pode esquecer, a satânica figura, estilizada a seu modo, a musicalidade cantarolante da sua voz, o jeito cénico, ondulante e felínico que dava a impressão de uma figura irreal, as pausas, ou os gestos! Notável! Grandioso, simplesmente!
         No Pranto de Maria Parda, Adelina Abranches – a Grande Adelina – encarnou a simbólica figura, com tanta inspiração e tanta verdade, deu um tão variado claro escuro ao fatigante trabalho, que, caso raro em espectáculos desta natureza, todo o público da plateia aos camarotes se pôs de pé para lhe tributar uma das mais expontâneas e formidáveis ovações, a que assistimos no nossa longa vida teatreira.
         Ainda há poucos anos, o distinto actor Assis Pacheco, no Auto do Velho da Horta, obteve um estrondoso e justificado sucesso. Dicção, mímica e composição de figura, tudo sabiamente detalhado e estudado, artisticamente realizado!
         Muito se dedicou a Gil Vicente, um grande artista há tempos afastado da cena, Joaquim de Oliveira, que publicou, e algumas vezes nos deixou ler, as suas valiosissimas encenações. E mais não diremos, pois que, se nos alongássemos, teriamos de encher tal número de linguados, que não caberiam no nosso jornal.

         Os distintos amadores de Tavarede, que há dez anos tanto temos apreciado, elevaram a espinhosa incumbência de José Ribeiro, a um verdadeiro caso no Teatro Português, no à vontade do desempenho, no diapasão das vozes e no ritmo dos movimentos. Velhos e novatos, mestres e discípulos, todos bem, homogéneos, sem um desfalecimento ou uma nota discordante.
         Contudo, permito-me destacar a – Amadora Grande Actriz – Violinda Medina, no seu admirável trabalho, da Maria Parda, difícil de aguentar em todo o extensíssimo monólogo, sem caír no grotesto, mas sem desfalecimentos, sem diminuir o interesse, medindo as pausas e os movimentos, com a Arte e o Saber de uma verdadeira profissional. Simplesmente notável!
         No Velho da Horta, João Medina Junior atingiu um nível superior no protagonista, secundado magistralmente por Maria Tereza de Oliveira, que foi uma figura Vicentina, perfeita nas atitudes, na dicção e nos gestos. Os outros, todos, em uma bela afinação de conjunto.
         Guarda-roupa rico de Anahory. Cenários adequados, sendo por sua sobriedade, digno de relevo, o da Maria Parda. A todos, os nossos parabéns!

         Igualmente nos despertou a atenção  uma notícia, que um jornal figueirense publicou, a qual havia sido transcrita do jornal Litoral, de Aveiro. Mal pensávamos nós que o Dia Mundial de Teatro, de 63, nos iria proporcionar a surpresa que nos proporcionou naquela noite invernosa do passado dia 27 de Março, na sala de espectáculos do Grande Casino Peninsular, na Figueira da Foz.
         Valerá a pena deslocarmo-nos de noite e a tão longe, - monologávamos nós, enquanto a chuva inclemente batia raivosa nos vidros mansos do carro veloz -, valerá a pena tudo isto para irmos ver um Mestre Gil representado por um grupo de amadores duma aldeia que nem em todos os mapas aparece?
         É certo que se sabe, nós sabemos, que dos bastidores sombrios do amadorismo, subiram para a ribalta nomes como Chaby Pinheiro, de ontem, e de Gina Santos, de hoje. É certo que se sabe, nos sabemos, que o grande Taborda foi tipógrafo, António Pedro, aprendiz de pedreiro, e Adelaide Douradinha, para não citarmos mais, mulher a dias.
         Pois apesar de tudo isto ser sabido, de tudo isto sabermos, nós, desconfiados, ainda nos perguntávamos se de Tavarede nos podia vir um Gil Vicente, como se fosse possível que melindrosa peça de porcelana nos chegasse às mãos, arrancada do fundo de velha arca de pinho carunchento, após longa viagem de muitos baldões e sem uma arranhadura.
         Não vamos esboçar sequer uma ligeira apreciação crítica do espectáculo que o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense nos deu, sobre três textos vicentinos. Não ousamos esboçar a crítica, mas não resistimos a registar o exemplo. Em Tavarede, humilde lugarejo escondido à sombra da resplandecente Figueira, arde em olímpica chama um acendrado culto à divina arte de Talma. Famílias, de geração em geração, entregam-se devotadamente à cultura teatral. À frente de toda esta pleiade de artistas, (aquela Maria Parda há-de ficar-nos para sempre guardada na galeria das melhores interpretações por nós vistas, conquanto o Teatro não seja, para nós, apenas uma arte de bem interpretar), se encontra um nome emérito no panorama do teatro amador em Portugal. Um homem, José Ribeiro, que nem a idade, nem o trabalho, nem o destreino impediram de aprender o inglês só para saborear Shakespeare na própria língua.

         E regressamos ao primeiro de Maio e ao rancho dos potes floridos, revividos pelo Grupo. A manter uma velha tradição, brindou a nossa Terra com as suas magníficas exibições folclóricas, de cunho castiçamente regionalista, na passado dia 1 de Maio, o simpático Rancho 1º. de Maio, da ridente povoação de Tavarede.
         O excelente agrupamento folclórico constituido por gentis rapariga e garbosos rapazes, com os trajos característicos da formosa terra do limonete, percorreu em impecável marcha, algumas das principais artérias da cidade, oferecendo à nossa gente, danças e cantares de muito apreço, pelo que, mais uma vez, é digna de louvores aquela mocidade que alegremente mantém tão bela tradição de sabor popular.

         A propósito, vamos transcrever a notícia da participação, no ano anterior, do tavaredense António Medina Júnior. Botem-lhe as contas: em 21 de Abril, tombam em riba das minhas lombeiras, nada menos de 65 “primaveras” de “fundação”; e em 2 de Maio – 53 anos de trabalho permanente!
         Datas inesquecíveis. Contas certíssimas... O que, traduzido, quer dizer que bem cedo comecei a esgaravatar a vida, na sempre lembrada Imprensa Lusitana, tipografia própria da saudosa “Gazeta da Figueira”, que foi abençoado alfobre de artífices gráficos e magnífica escola de jornalistas, guiados – todos – pela vigorosa inteligência e pela sábia “bússola” de um Grande Mestre e de um extraordinário carácter que se chamava Augusto Veiga – cuja memória recordo sempre com o máximo respeito, profunda saudade e inesquecível gratidão, pelo muitíssimo que lhe fiquei devendo na minha formação moral e profissional, que de tão bom proveito me tem servido pela vida fora.
         Em Sintra desde 1 de Junho de 1927 (há, portanto, 36 anos – se a matemática não é uma batata...-, e dado que os santos de ao pé da porta não fazem milagres..., para aqui me chamaram e para aqui vim; aqui soube dar conta do recado; aqui montei a minha vida; aqui criei e eduquei os meus dois filhos (tavaredenses, como eu e como a mãe); aqui nasceram os meus netinhos; aqui adquiri relações e amizades e – finalmente – aqui me estou desgastando e envelhecendo, agarrado com unhas e dentes ao “pau do leme” da honrada “barcaça” que soube arquitectar e construir, através de muitos sacrifícios, de muita persistência, de muita coragem e de muita fé, a qual continua a sulcar, com a maior dignidade, os “mares”, nem sempre isentos de procelas, da incógnita época em que estamos, de duras e enervantes incertezas, em que os homens inconsequentes e maus persistem em lançar o abalado mundo.
         É certo que a “lancha” do meu ganha-pão continua na sua faina diária. Pois continua. Felizmente. Mas as responsabilidades, incluindo nesta a da respectiva e numerosa “tripulação, apresentam-se cada vez maiores, os problemas surgem cada vez mais dificeis e o “homem do leme” vai quebrando com coragem e energias – sem poder dispor de si, sem ter tempo para estar doente, sem ter direito a férias, sem ter ócios para deglutir leituras salutares e suculentas, nem avesar “dispensas” para, sequer ao menos, se dar ao prazer de ir, uma vez por outra, matar saudades ao adorável cantinho onde nasceu e por onde andam, dispersos, os momentos mais felizes e despreocupados da sua mocidade radiante, cantinho esse – aliás sempre presente no seu impenitente coração bairrista – de onde um dia se viu obrigado a afastar-se pelo imperioso da vida, mas onde deixou e mantém, cada vez mais vinculadamente, o coração e a própria alma...
         Que analogia tem este piegas e insulso “paleio” saloio com o Rancho 1º de Maio de Tavarede? – ajuizarão os benévolos e pacientes ledores da minha despretenciosa, bamba e lassa prosa...
         ... que só à reconhecida generosidade e velha amizade dos manos Matos deve o grato privilégio de ser transformada em letra de forma, a ocupar precioso espaço nas colunas do seu “Figueirense”.
         Pois eu teimo em que esta descolorida Sinfonia de abertura – revestida da maior sinceridade -, se tornava indispensável aos fins em vista, pois traduz verdade e constitui oportuna justificação, devida a um amável conterrâneo meu que, botando entusiasmada prosa neste jornal, acerca do afamdo Rancho 1º de Maio de Tavarede, se lembrou de evocar o meu nome, envolvendo-o em carinhosa e desvanecedora prova de amistosa consideração e estima, que muito me sensibilizou, afirmando, em síntese, quanto aos músicos que hão-de acompanhar a alegre e garbosa embaixada da mocidade tavaredense, na madrugada em que desponta o próximo Maio, se contava com a presença do sempre jovem violinista (que barbaridade!...) Medina Junior, que mais uma vez se deslocaria da sua adorada Sintra para reforçar a tuna do Grupo Musical e de Instrução, desta forma indicando aos mais novos o caminho do dever, a favor da terra que o viu nascer e à qual muito quer.
         Ora, amigos, a coisa não é assim tão fácil como muitos julgam, sobretudo pelos contrariantes problemas que acima foco.
         É certo que, por esta via, muita vezes verberei – e combati – a inconcebível e acomodatícia transigência da boa, laboriosa e ordeira gente da minha terra, na medida em que ela, vencida não sei porque motivos ou razões, doentiamente se conformou, durante uns poucos de anos, com a condenável, inconcebível – e criminosa – má vontade e derrotismo de uns tantos “coveiros” das boas ideias que atentaram contra a vida de um tão inocente movimento folclórico, cultural e cívico, que outra missão não tinha que não fosse a de proclamar, entre flores e cantares alegres, as tradições de uma aldeia que continua a dar cartas, vistas as coisas pelas janelas amplas dos persistentes e salutares princípios da Devoção, da Ordem, da Disciplina...
         ... e pelos sagrados direitos que o seu bom povo tem direito em “viver” à sua maneira, amando e sentindo, em plenas cavernas do peito, mais íntima e acrisoladamente, aquela vida que sabe que lhe é precisa e lhe faz bem, precisamente porque, além do mais, consubstancia culto pela tradição e traduz fortaleza espiritual; que aproxima os homens e revigora as almas...
         ... e que impõe, prestigia e dignifica os meios.
         Não pelos meus escritos, nem pelos meus estímulos, mas pelo seu louvável “querer”, o certo é que a rapaziada da minha terra, cuja reacção mais corajosa se verificou no Grupo Musical e de Instrução – instituição de recreio e cultura popular que me orgulho de ter ajudado a fundar, em 1911, ao lado de meus saudosos e queridos Pai e Tio José Medina -, caprichou em acordar da pesada letargia, o sempre desejado, aplaudido, afamado e glorioso Rancho das Cantarinhas floridas da mocidade radiante da “pátria do limonete”.
         Deu-se este fenómeno no passado ano. Eu havia prometido, então, que iria de abalada até Tavarede – se dependesse da minha presença o “renascimento” de tão simpático, humano e tradicional movimento local. E que, se fosse necessário, formaria com a malta da música, e acompanharia a alegre e bizarra embaixada, procurando arrancar ao meu inesusado e roufenho violino, se não pelos dedos das mãos, pelos dedos da alma, as notas da linda Marcha do rancho 1º de Maio, que tem o condão de inundar de alegria e de recordações saudosas os peitos de todos aqueles que nasceram e sentem Tavarede como eu a sinto e amo...
         E lá fui cumprir a palavra dada – e desfazer a “blague”, visto que ninguém queria acreditar que tudo quanto eu havia escrito, neste capítulo, não passava de mero desabafo jornalístico...
         Ainda madrugada não era sonhada quando, após umas curtas horas mal dormidas, saltei da Figueira para Tavarede. Já no Grupo Musical havia movimento, entusiasmo, vida. Logo aí comecei a experimentar os primeiros sabores da deliciosa felicidade espiritual que me estava reservada nesse memorável dia – que não tinha igual há aproximadamente 30 anos.
         Notei – sensibilizado – que a minha presença causava satisfação e alegria nos meus conterrâneos “grupistas”, que ainda não queriam crer que eu acompanhasse o Rancho na jornada da praxe (fonte da Várzea, ruas, praças, mercado da Figueira, etc.) que - para a minha idade – representava, de facto, um grande esticão...
         Gostei do reforço, por parte de alguns “rapazes” do meu tempo, como o Manuel “Tamau”, o Zé Grilo, o meu primo João Medina, e outros, que também se dispuzeram a tomar parte na tuna.
         As lantejoulas do manto escuro da noite foram desaparecendo no céu; as flexas ignescentes do divino astro-rei começaram a inundar de luz os serros e os campos, onde o orvalho matutino fizera abrir as pétalas das flores, produzindo no espaço odorâncias embriagadores...
 ... e o Rancho, revestido daquela contagiante alegria que caracterizou sempre a mocidade, saiu para a rua...
         De violino nos queixos – espírito remoçado, tempos revividos, evocações e saudades presentes -, que me provocaram (porque não confessá-lo) uma tremenda comoção -, acompanhei a garbosa embaixada do Maio florido na sua clássica peregrinação festiva. E – coisa curiosa! – as notas da linda Marcha, que creio dever-se a uma feliz inspiração de meu irmão José, “sairam” todas, como se entre elas e os largos anos que separaram os meus dedos do violino nunca tivessem existido. O pior é que, quando cheguei ao fim da jornada, em que se calcorrearam bastantes quilómetros, quase foi necessaria uma “padiola” para me transportarem para o ponto de partida.
         Estava que nem uma passa, constituindo tal facto um primoroso “pratinho” para a minha irmã Violinda e para a minha ditadora conjugal, que me havia acompanhado de Sintra, as quais me “repassaram” de sarcasmos durante o resto do dia e o menos que me chamaram foi “velho-gaiteiro”!... “Inveja” de duas gêbas, claro – uma ainda com alguma geiteira e genica para o teatro; outra com enorme propensão para implacável carcereira da eterna jovialidade de um “marido exemplar” que persiste em não ceder à verdade de determinadas e desoladoras efemérides...
         Como o insulto é o recurso dos vencidos – vinguei-me, insultando, daquelas galhofeiras...
         ... que – ao fim e ao cabo – sentiram íntima satisfação e alegria em verem envolvido o seu “Antoninho” – já careca – em tão felizes e remoçadas andanças.
         Parar é morrer. E quem tiver pressa de morrer, que vá andando... De resto, como dos fracos não reza a história...
         ... Cumpre-me informar os rapazes e raparigas da minha terra que sinto “cócegas” em voltar de novo a Tavarede – para colaborar no tradicional e lindo Rancho do 1º de Maio.
         Desde já intimo o meu “sobrinho” Alfredo Cardoso, de Brenha, para deixar o seu violino na “Nau”, evitando-me, assim, a massada de levar daqui um dos meus...

         ... que “ensurdeceram” – enquanto que o dele sabe “falar” e “cantar”...

Sem comentários:

Enviar um comentário