A evocação, de António Broeiro
A segunda descrição,
de António da Silva Broeiro (sobrinho), é bastante mais recente e muito
diferente. Data de 1938. Antecedo-a de um pequeno comentário sobre os tão
falados “Broeiros”, pois também eles merecem uma recordação nestas minhas
histórias e esta é uma oportunidade muito aproveitável para esse efeito.
Ainda hoje,
apesar de já ter decorrido mais de meio século sobre a data do seu falecimento,
os Broeiros, de Tavarede, são recordados pelos mais idosos como dois dos
maiores amadores dramáticos que passaram pelo palco da Sociedade de Instrução Tavaredense.
Referimo-nos, é claro, aos irmãos António e Jaime da Silva Broeiro.
Como
reconhecimento e preito de gratidão pela sua actividade teatral, aquela
colectividade tem os seus retratos expostos no salão nobre da sua sede.
Pode
dizer-se que, desde sempre, os tavaredenses tiveram uma origem bastante
humilde. Os Broeiros não foram excepção. Seus pais, Henrique Broeiro e Emília
Silva viviam modestamente, com os seus 4 filhos, aqueles dois mais outros dois
mais novos, Manuel e José, numa pequena casa sita na Rua do Outeiro.
Sobre o
mais velho, António, escreveu mestre José Ribeiro no livro “50 Anos ao Serviço
do Povo”:
“Escrevemos
estas notas (referia-se à escola nocturna na S.I.T.) e vemos surgir diante de
nós a figura de António da Silva Broeiro. Estamos a ouvi-lo naquela sessão solene em que, pouco
tempo antes de morrer, a todos surpreendeu e comoveu com a sua espontânea e
impressionante confissão. Apresentava-se como
produto da Sociedade de Instrução
Tavaredense. “Eu sou, dizia ele, o que a Sociedade de Instrução Tavaredense
de mim fez. Devo-lhe
tudo. Comecei lá em baixo, na escola da noite, onde me ensinaram a ler,
escrever e contar. Só à noite podia ir à escola: teria ficado analfabeto se não
fosse a escola nocturna. Depois trouxeram-me para o teatro (e recordava o nome
de João dos Santos), ensinaram-me a compreender o que lia, ensinaram-me a
falar, a conversar, a ouvir. Aqui fui instruído e educado. Recebi lições,
aprendi coisas, tive ensinamentos, fixei exemplos que me serviram pela vida
fora. A acção da Sociedade de Instrução Tavaredense exemplifico-a em mim
próprio”.
“António
Broeiro viera da mais humilde condição, vivia na extrema pobreza quando o
mandaram à escola da noite, porque de dia aprendia o ofício de sapateiro;
trabalhou, fez-se homem, conquistou estima, consideração e bem estar. Quando a morte o surpreendeu, aos 59 anos,
em Março de 1945, era um dos primeiros elementos do grupo cénico e, comerciante
muito estimado, dirigia o seu bem montado estabelecimento de sapataria na
Figueira da Foz”.
Seu irmão Jaime, casado com Ana
Rôla, viveu na então chamada Rua de Cima. Teve três filhos, António, Joaquim e
Celeste. Também ele foi um profissional de sapataria. Faleceu em Lisboa, a 19
de Agosto de 1945, ficando o seu corpo sepultado no cemitério do Alto de S.
João. Tinha 58 anos de idade. Como se vê estes dois irmãos faleceram ainda
bastante novos e, curiosamente, no mesmo ano, com poucos meses de permeio.
O filho
mais velho deste último, António da Silva Broeiro, do mesmo nome que seu tio,
nasceu em Tavarede em 1909. Bastante novo, começou a trabalhar como tipógrafo,
na Tipografia Popular, na Figueira da Foz, tendo sido um dos fundadores do
jornal “Domingo”, que teve existência curta. Chegou a secretário do jornal
“Gazeta da Figueira, que era composto e impresso naquela tipografia.
Procurou
outro destino. Tendo concorrido à função pública, foi admitido como funcionário
administrativo na Colónia Penal António Macieira, em Sintra, onde passou a
residir com sua esposa, Laura Cândida Mendes da Silva Broeiro. Tiveram um
filho.
O seu
espírito jornalístico levou-o a colaborar activamente no Jornal de Sintra, do
seu conterrâneo e amigo António Medina Júnior, tendo sido, em determinada
ocasião, nomeado chefe da redacção deste periódico. Escreveu para outros
jornais, tendo-se ainda dedicado à poesia e ao teatro.
Vitimado
por doença, faleceu em Lisboa, no Hospital de S. José, em Dezembro de 1943.
Contava somente 34 anos de idade. Talvez tenha sido o desgosto por esta morte
tão prematura que, pouco mais de um ano depois, terá motivado o falecimento de
seu tio e de seu pai.
É dele o
artigo a seguir, publicado no Jornal de Sintra, em 20 de Julho de 1938, e em
que recorda a sua terra. Ao recordá-lo, nada mais fazemos do que prestar uma
singela homenagem à memória destes saudosos tavaredenses.
Saudades -
Quando se ronda pela casa dos trinta, falar da nossa terra, forçoso é que se
evoque.
Ainda que não queiramos.
O nosso coração, o nosso sentimento, há-de por força trazer
a lume as recordações que estão algemadas à nossa vida...
A saudade aviventa, dá forma a essas recordações, que já se
desfaziam na bruma do tempo, e surgem, enriquecidas pela nossa imaginação, as
imagens dos nossos tempos de criança...
O nosso primeiro amor! Como ele anda ligado à saudade da
nossa terra!?
Quem é que, ao lembrar os tempos ditosos da mocidade, não
tem a ela ligado, por laços indeléveis, a lembrança do primeiro amor!? Quem!?
E eu lembro a minha aldeia! A aldeia onde nasci, onde me
criei, onde corri, despreocupado e feliz, pelos outeiros e pelos serrados; pela
várzea e pela colina; ora caçando rãs nos valeiros, ora subindo aos choupos à
caça de ninhos de pardal!...
... e as manhãs doiradas do sábado de aleluia em que os sinos repicavam
festivos, e eu e os cachopitos da minha idade, esbaforidos, corríamos à igreja
com uma caneca de água colhida no rio para que o senhor vigário Manuel Vicente
no-la benzesse para as nossas mães borrifarem as casas para que o espírito
maldito do bruxedo lá não entrasse...
... e nas manhãs radiosas de domingo de Páscoa, eu ia, de
fato novo à marinheira, de colar engomado muito branco e laçarote pendente do
pescoço, até à igreja, ouvir missa e beijar o menino Jesus que estava deitado
numas palhinhas...
... mas meia hora depois, quando eu estivesse farto de andar
na brincadeira, com o fato enxovalhado e porco, eu dava um doce a quem fosse
capaz de olhar para mim sem sentir vontade de me bater... Era uma
dó! Um fato tão bonito...
Como eu brinquei! Como eu fui feliz...
Era uma criança e a vida não me preocupava.
Mas agora outras cadeias me prendem! Outros amores me
preocupam!...
Mas a saudade da minha aldeia, de Tavarede, essa subsiste, e
tão intensa, que daqui, eu vejo, com os olhos da alma, a casa onde nasci, e
onde minha mãe me aconchegou, me deu os primeiros beijos, e os primeiros
açoites...
E bem merecidos eles foram, pelo visto, porque, homem feito
já, eu não os esqueço, para me servirem de estímulo em acções presentes...
Lúcia-Lima!
Tavarede, que fica a dois quilómetros e meio da Figueira,
dos puxados, aconchega-se na várzea ubérrima, entre encostas verdejantes e
floridas.
Quem vai da Figueira pela estrada, depara, sem esforço, com
o antigo palácio dos Condes de Tavarede, pitoresca construção solarenga, com os
seus pináculos ornamentados, as gárgulas e as janelas ogivais, em pedra
magnificamente rendilhada.
Já esqueceu ao povo o déspota que em remotos tempos ali
viveu intra-muros.
Agora, a apalaçada construção, morre, desprezada, com a sua
arquitectura a esboroar-se com o rodar do tempo.
Mas Tavarede tem uma coisa mais pitoresca ainda que o seu
histórico palácio: a Lúcia-Lima.
Em noites de verão, os banhistas que se afastam do bulício
da cidade, são, quando se aproximam da ridente aldeia, deslumbrados por um
perfume intensíssimo que se desprende desta planta.
O limonete, como
lhe chamam, na sua linguagem chã, os tavaredenses, é a graça da terra..
Quando vêm, pelo S. João, as cavalhadas de Brenha ou
Buarcos, as moças enfeitadas com ramilhetes de limonete no peito gracioso, têm encanto, têm frescura...
O ar rescende! E o aroma da Lúcia-Lima no ar embalsamado, faz crer a quem o respira que aquela
planta ali se cria com fértil prodigalidade...
E é verdade! Com tanta fartura, tanta, que até já alcunharam
a minha linda aldeia de terra do limonete!
Teatro
de amadores Os furiosos
do teatro, foram sempre, em Tavarede, dos mais ferrenhos...
Grata lembrança tenho eu na minha mente, a respeito de
espectáculos de amadores...
Mas sem ser do meu tempo, já em mil oitocentos e setenta e
tal se representavam em Tavarede, as mais difíceis peças no Teatro do Palácio.
A sala de espectáculos de então, é agora uma estrebaria...
O entusiasmo era de tal ordem já nesse tempo, que a
autoridade teve que mandar encerrar a sala de espectáculos por causa das
desordens que os despiques provocavam...
A sala encerrou-se mas os amadores redobraram de capricho...
... e foi então que, em 1904, se fundou a actual Sociedade de Instrução
Tavaredense.
Os seus fundadores foram: Manuel Rodrigues
Tondela, Augusto Biscaia, Manuel Fernandes Júnior, César da Silva Cascão, João
Miguens Fadigas, João d’Oliveira, José Cardoso, António Jorge da Silva, António
Luiz Motta, Joaquim Saraiva, Fradique Baptista Loureiro, António Gomes
d’Apolónia, Manuel dos Santos Vargas e Francisco Cordeiro.
A nova associação propunha-se manter uma escola nocturna que
tem funcionado ininterruptamente até aos nossos dias. Para a sua manutenção,
angariação de fundos se impunha.
E foi então que se criou um grupo de amadores que, num
teatro que era pertença da referida associação, dava espectáculos cujo produto
se destinava á subsistência da referida escola, fornecendo material escolar aos
alunos, etc.
A instrução aos alunos, nos quais se contavam alguns já
homens, era ministrada gratuitamente por amigos dedicados da associação, dos
quais é justo destacar Manuel Tondela, já falecido, pai da esposa do distinto
artista figueirense e nosso prezado amigo sr. António Piedade.
Actualmente as aulas nocturnas da Sociedade de
Instrução têm uma frequência superior a 80 alunos.
O Grupo Dramático da Sociedade de Instrução Tavaredense,
melhorou consideravelmente desde que o brilhante jornalista e orador José
Ribeiro foi nomeado ensaiador.
Espírito culto, conhecedor profundo da arte teatral, ele
guindou o grupo de amadores de Tavarede a uma altura que, muito poucos, talvez
mesmo nenhum grupo de amadores da província, tenham atingido.
Falam a esse respeito, e melhor do que nós, a quem podem
acoimar de suspeito, os críticos das cidades onde se tem exibido, como Figueira
da Foz, Porto, Coimbra, Tomar, Viseu, Leiria, etc.
Críticos exigentes não lhe regatearam louvores.
O Primeiro de Janeiro,
O Século, o Diário de Notícias, o Diário
de Coimbra, etc. destacaram valores dentro do grupo; e os nomes de Violinda
Medina, Emília Monteiro, Maria Teresa, João Cascão, Jaime Broeiro, António da
Silva Broeiro, Manuel Nogueira, António Graça, António Santos, etc. surgem aureolados
de fama.
O Grupo Dramático da Sociedade de Instrução Tavaredense
conta no seu activo com enorme quantidade de espectáculos de beneficência a
favor do Asilo S. João do Porto, Ninho dos Pequeninos, Asilo da Infância
Desvalida, Diabéticos Pobres, Maternidade, Associação de Socorros Mútuos dos
Artistas e Grémio dos Empregados no Comércio e Indústria, de Coimbra,
Misericórdia e Jardim Escola João de Deus, da Figueira da Foz, Santa Casa da
Misericórdia e Sopa dos Pobres, de Tomar, e Jardim Escola das Alhadas.
O Grupo Dramático da Sociedade de Instrução Tavaredense teve
já um convite para representar em Lisboa, em récita de gala, convite que não
pôde ser aceite por imperiosos motivos.
Peças representadas pelo Grupo Dramático da Sociedade de
Instrução Tavaredense:
O Sonho do Cavador,
com 32 representações; A Cigarra e a
Formiga, com 12 representações; Em
busca da Lúcia-Lima, com 8
representações; Grão-Ducado de Tavarede;
Evocação; Noite de Agoiro; Má Sina;
A Espadelada (infantil), com 14
representações; Frei Tomaz; Os fidalgos da Casa Mourisca; As três gerações; As pupilas do Sr. Reitor; A
canção do Berço; A Morgadinha dos
Canaviais; Justiça de Sua Magestade;
A Morgadinha de Val-flor; O Grande Industrial; Entre Giestas;
Génio Alegre, etc.
O trabalho dessa gente, gente humilde, que trabalha de dia e
à noite se instrui no teatro, sofre comparação com o trabalho de artistas...
E os críticos não se cansam!
E o grupo segue, na sua carreira triunfal.
Actualmente ensaia a Recompensa,
oferta gentilíssima ao grupo do grande dramaturgo Dr. Ramada Curto. Esta oferta
foi um triunfo para o grupo, porque a gentileza do Dr. Ramada Curto,
distinguindo o grupo de Tavarede para a interpretação da sua famosa peça, fala
mais, e mais alto, do que toda a crítica portuguesa...
Mais
outro grupo! Mas quando era mais acesa a rivalidade entre os
amadores tavaredenses, outro grupo se fundou: o Grupo Musical de Instrução
Tavaredense.
Foram seus fundadores, António Medina, José Medina, Ricardo
Simões Nunes, respectivamente pai e tios do director deste jornal, Joaquim
Severino dos Reis, Manuel Vigário, José Maria da Silva, José Migueis Fadigas,
João Jorge da Silva, A. Medina Júnior, etc.
Lembro-me, de que, quando ainda era um garotelho, fugia de
casa para ir assistir aos espectáculos.
António Medina Júnior, António Medina, José Medina, Emília
Pedrosa Medina, Violinda Medina e Silva, Manuel Nogueira, etc., representavam
então no novo grupo, num despique tão renhido com os de lá de cima, que só a eles se deve sem dúvida a magnífica plêiade
actual de amadores que se esforçaram, à porfia, por fazer melhor uns que
outros. E o resultado, pode dizer-se que foi maravilhoso...
Dele saíram amadores que se podem classificar de grandes, em qualquer parte.
A Sociedade de Instrução Tavaredense mantém actualmente, em
casa própria, um grupo de amadores teatral e uma escola onde recebem instrução
para cima de oitenta alunos.
O Grupo Musical Tavaredense, instalado no Palácio dos Condes
de Tavarede, mantém uma aula de música que é frequentada por mais de 40 alunos,
não contando com a sua afamada e bem organizada Tuna - a popular Tuna de
Tavarede.
Qualquer das associações tavaredenses marcaram já o seu
lugar exuberantemente, a pontos de Alguém - com A grande - afirmar,
solenemente, que Tavarede, em educação músico-teatral, caminhava na vanguarda
de todas as terras suas semelhantes de Portugal!
Pic-Nics
Entre os componentes dos dois grupos tavaredenses cada
vez são mais estreitas e afáveis as relações.
E assim, todos os anos se juntam, num passeio de franca
confraternização, que pode ser para a Serra da Boa Viagem, ou para o pinhal do
Sr. Dr. Cruz, na Borlateira. Para lá foi o deste ano, e lá tirámos os
pitorescos motivos fotográficos que publicamos.
As panelas fumegam, e refervem, e os pitéus, feitos ali, num alegre convívio e à sombra amiga dos
pinheiros amigos, parece que têm outro sabor, o sabor da liberdade com que são
comidos...
Depois
há baile. Alegre baile, em que se bate, com mestria, o vira e o estalado.
E é vê-los, os pares, novos e velhos numa porfia, rodopiando
e lançando ao ar embalsamado pela seiva dos pinheiros, as cantigas que dizem da
alegria dos seus corações sempre moços...
São assim, alegres, os pic-nics
da minha terra...
... E eu relembro-os, porque tenho saudades, saudades dos
tempos em que, descuidoso, enlaçava a cintura das raparigas, airosas, risonhas,
cheirando a limonete...
... e dançava, alegre, o vira
e o malhão...
Água
fresquinha - Na várzea, mesmo na várzea, em pitoresca fonte,
limpa, encantadora, brota a linfa cristalina... A água de Tavarede, famosa já
pela sua pureza, leve e macia, de temperatura agradabilíssima tanto no verão
como no inverno, caudal uniforme, é uma das preciosidades da aldeia.
A fonte tem poesia! À tardinha, ao morrer do sol no poente
afogueado, as raparigas vão, airosas, de bilha à cabeça, colher a água pela
fresca...
Em noites de luar, quando o ar está perfumado de limonete a
frescura da fonte e os seus assentos de pedra convidam o banhista a um
agradável repouso...
E a linfa murmura, murmura sempre, correndo das duas bicas
da fonte, e no ar, rescendendo a limonete, a sua canção, canção que não se
extingue, é doce inspiração para corações de namorados que adregam de refrescar
suas bocas na água múrmura e cristalina da Fonte de Tavarede...
Paisagem! Passeio magnífico, cheio de beleza, é o que se
efectua indo para a Serra da Boa Viagem, passando por Tavarede e Brenha.
A várzea vicejante cortada por frescos canaviais, os
ribeiros cantando no leito pedregoso, os vinhedos e os campos de trigo,
cortados por extensas fileiras de esguios choupos, dão à paisagem tavaredense o
aspecto das várzeas minhotas...
... e lá mais para cima, nos Canos,
onde a água, a chapinar na roda das azenhas as faz mover, no rodar bendito que
alimenta a mó que há-de transformar o trigo em farinha branca de neve, os
salgueiros, delicados, a guardar as hortas, tornam a paisagem diáfana, com a
sua folhagem tão mimosa...
... e as velas brancas dos moinhos a rodarem sem parança, no
cimo dos montes, e lá dentro a mó rom-rom-rom,
sempre, sempre sem descanso, dão ao bucólico panorama, movimento, vida...
... e dão o pão e a fartura aos lares dos aldeões...
... dos aldeões da minha terra!
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