Vida da aldeia
Se pretendo fazer uma descrição
da vida em Tavarede, por volta dos anos 1940/1950, também se torna necessário
recordar um pouco a maneira de viver das famílias aldeãs. Já sabemos que a
nossa terra, sendo uma freguesia rural, tinha grande dependência da
agricultura. No entanto, e excepto três ou quatro casos, em que tinham quintas
um pouco maiores, a grande maioria da população tavaredense que vivia das
terras, não eram mais do que pequenos, mesmo pequeníssimos lavradores. Tanto assim
que bem cedo se aperceberam da necessidade de mandarem seus filhos trabalhar na
cidade, aprender um ofício, uma forma de enfrentar a vida mais segura do que o
cultivo e amanho das leiras de terra, que, tantas vezes isso acontecia, bastava
uma intempérie mais fora do tempo, para dar cabo do esforço de tantos meses.
Feita a quarta classe, o que nem
todos conseguiam, não por falta de capacidade intelectual mas, sim, de recursos
económicos, logo procuravam emprego nas oficinas, armazéns e obras. Alguns, com
enorme esforço, conseguiam continuar os seus estudos e tiravam o curso
comercial ou industrial na Escola Dr. Bernardino Machado, durante o período do
Estado Novo denominada Escola Industrial e Comercial Tomás Bordalo Pinheiro. A
Figueira também possuía o curso liceal, até ao quinto ano, e a Academia
Figueirense, na rua de Santo António, particular, mas que só davam aulas
diurnas. Por isso, trabalhando de dia, somente naquela escola era possível
estudar à noite.
E se muitos aprenderam e
exerceram os misteres de ferreiro, serralheiro, sapateiro e tantas outras
profissões, uma grande parte conseguiu, graças ao estudo nocturno, empregar-se
nos escritórios da Companhia dos Caminhos de Ferro da Beira Alta, principal
empregadora local, noutros escritórios e em estabelecimentos comerciais, ramo
bastante florescente na época. Recordo que, já no meu tempo, muitos eram os
rapazes e raparigas que prosseguiram os seus estudos na Figueira, durante o
dia, e, nas férias grandes, empregavam-se como marçanos nas lojas comerciais
que, durante a época balnear, abriam as suas sucursais no Bairro Novo, onde,
durante o Inverno, praticamente não havia actividade comercial. Como mantinham
abertos os seus estabelecimentos sede na Baixa, recorriam aos alunos para irem
trabalhar durante aqueles três meses. Por mim, foram três épocas que ali
trabalhei, desempenhando a tarefa de marçano na Sapataria Quaresma, na sucursal que então abria na Rua Cândido
dos Reis, frente ao antigo Hotel Portugal.
Outra profissão para a qual
Tavarede sempre deu um grande contingente, foi a de tipógrafo. Havia várias
tipografias na Figueira, algumas com jornais semanais ou bi-semanais, e o
trabalho não faltava, pois a composição, impressão e encadernação, etc., eram
tudo tarefas manuais. Meu padrinho, Manuel Nogueira, tinha uma tipografia no
Pinhal, mesmo em frente ao portão do Liceu. Durante as férias do Natal e da
Páscoa, era certo e sabido que lá ia eu “ajudar” nas tarefas necessárias, muito
especialmente a numerar impressos e fazer intercalações. Também aprendi a
“caixa” e fazia a distribuição dos tipos das chapas já utilizadas. Ainda hoje
me lembro alguns dos cacifos, mas muito vagamente. O que recordo muito bem é
que, como marçano, o meu primeiro ordenado foi de 120$00 por mês, e como
aprendiz de tipógrafo 1$00 por dia. Isto em 1945/1946.
Regressemos a Tavarede. Algumas
famílias, já o disse, tinham a agricultura como principal actividade. Mas as
suas terras não eram suficientemente grandes para uma ocupação total, pelo que,
sendo cavadores, trabalhavam nas quintas vizinhas ou para outros pequenos
lavradores, nas sementeiras e, em especial, nas ocasiões da cava e tratamento
das vinhas. Havia umas famílias tavaredenses, os Migueis e os Fadigas que,
tendo bois de trabalho, além de lavrarem as terras, faziam os transportes na
cidade das mercadorias que chegavam pelo caminho de ferro.
Por melhor conhecimento, e porque
não haveria grandes diferenças, vou recorder, muito resumidamente, um pouco de
como se vivia em Tavarede, naqueles já distantes tempos, servindo-me da
lembrança de meus avós paternos. Moravam na rua Direita, um pouco abaixo do
largo do Paço, numa casa igual a tantas outras. A casa tinha duas portas, uma,
a principal, que, por uma escada em dois lances, conduzia ao primeiro andar, e
uma outra, bastante mais larga, que era a chamada porta da adega.
Ao lado da casa ficava o quintal.
Quando entrávamos o portão, tínhamos à nossa direita o poço, cuja água, muito
boa, era puxada por uma bomba manual. Diziam que era o mesmo veio que fornecia
a fonte. A seguir ficavam as escadas, em pedra, com corrimão em grade de ferro,
por onde se subia ao primeiro andar. A escada dava para uma varanda a toda a
largura da casa, donde se avistava toda a fértil zona sul da aldeia.Do outro lado do quintal, junto à
entrada estava a casota do enorme cão de guarda, e encostado ao fundo, ficava
um curral onde tinham os animais, duas vacas leiteiras, um burrito e o porco. À
vontade, pelo curral e quintal, andavam as galinhas e galos. No curral ainda
ficavam guardadas algumas alfaias agrícolas, uma carrocita e a palha, de
produção própria e comprada, para sustento dos animais.
Na loja, que era transformada em
adega, na devida ocasião, para a venda do vinho, como noutro local refiro,
estavam os canteiros com as pipas, tendo a um dos lados um enorme balseiro,
onde as uvas eram pisadas e o bagaço prensado, na velha prensa manual, montada
depois de trasfegado o mosto. Por baixo da escada, estava a salgadeira, de
madeira, onde se guardavam as carnes da matança do porco. Poceiros, cestos e
medidas espalhavam-se pelo espaço restante. Com uma tosca divisória, ficava ao
fundo o quarto do criado, o S’Tóino.
O primeiro andar era a residência,
com a cozinha e sala de jantar viradas para a varanda. Mais três quartos
compunham as divisões da casa. No corredor ficava a entrada para o sótão, para
o qual se subia por uma estreita escada que tinha um corrimão daqueles que nós,
rapazes, tanto gostávamos de descer ao escorrega.
O sótão era amplo, com duas
janelas, e não tinha nada de especial. Era ali que eram guardados os cereais
das colheitas e as leguminosas. Lá se viam os poceiros com milho, trigo,
centeio, feijão, de várias espécies, grão de bico e chícharos, tão usuais
naquela altura e que agora rarissimamente aparecem, apesar de fazerem uma sopa
deliciosa. Também ali guardavam a fruta. Num canto, sobre palha, amadureciam as
peras francesas ou de Inverno que, assim amadurecidas, tinham um sabor
maravilhoso. Por ocasião das vindimas, estendiam diversos cordéis, onde
penduravam muitos cachos de uvas brancas que ali secavam e se transformavam nas
passas utilizadas, por ocasião do Natal, para as tortas doces.
Como se pode avaliar, era uma casa
absolutamente idêntica a todas as outras casas de pequenos lavradores. Modesta,
como todas, mas uma casa onde, felizmente, havia sempre relativa fartura.
Meu avô havia trabalhado como
serralheiro ou ferreiro na Companhia do Gaz, mas sempre o conheci na situação
de reforma. Minha avó tratava das lides da casa e dos gados. Manhã cedo, Verão
ou Inverno, ia ela a caminho da Figueira, com o S’Tóino, fazer a venda do leite
às clientes habituais. Quando tinham venda para o mercado, couves, nabos ou
quaisquer novidades, levavam a carrocita puxada pelo burrico.
As fazendas da Sinceira, na Chã,
e a Matioa, eram cuidadosamente tratadas por meu avô e pelo criado, recorrendo,
quando das lavras, ao serviço de fora. Os filhos também ajudavam, nas suas
horas vagas. Não vou descrever nada da vida agrícola naquelas fazendas. Era
tudo normal. O que melhor me recorda são os figos negritos de uma enorme
figueira que lá havia e que, quando bem maduros, muitas vezes foram a minha
merenda, com uma fatia de broa. Também me não esquecem os enormes morangos que
se criavam nas valas, no meio da altas ervas. Eram todos para os netos e netas.
Eu passava muito tempo em casa de
meus avós, por isso me recordo muito bem das diversas tarefas, como as
vindimas, a venda do vinho e a matança do porco. Noutro local procurarei evocar
estas cenas.
Uma coisa, entre outras, nunca me
esqueceu. A minha merenda era habitualmente uma grossa fatia de broa, com uma
espessa camada de manteiga, feita por minha avó, e um púcaro de leite. Outras
vezes era um valente prato de papas de farinha cobertas por açúcar e uma boa
dose de leite. Simplesmente, uma pequena maravilha.
“Tavarede, pequena mas
interessante aldeia, a dois quilómetros e meio da Figueira, é a terra natal do
nosso director e onde vive a sua família. Foi lá, num alegre convívio, cheios de atenções, que
passámos a tarde. Sentíamo-nos ali verdadeiramente felizes. Naquela aldeia
pequenina, fóra do bulício da grande urbe, entre aquela gente simples, de
coração puro, reside o verdadeiro bem-estar, aquele optimismo que varre do
cérebro a atmosfera pesada das nossas quotidianas preocupações”, escreveu-se no
“Jornal de Sintra, por ocasião da excursão de sintrenses já citada.
Mas, embora tenham sido
proferidas uns anos mais tarde, não posso deixar de aqui transcrever, pois se
enquadra perfeitamente neste capítulo, um pequeno extracto de um discurso feito
pelo nosso Amigo Padre António Matos, numa sessão solene local:
“…….E
queria lembrar, à maneira de uma vivência pessoal deste pouco tempo em que
estou aqui em Tavarede, queria lembrar alguma coisa desta gente. Queria lembrar
que é gente simples, trabalhadora, que não vem aqui para o palco tecer um hino
trabalho apenas de uma maneira teórica, mas porque o sente bem nas suas mãos,
nos seus campos, na sua casa, nas oficinas, nos escritórios, sente o peso do
trabalho, mas porque não encara o trabalho como um peso, tece um hino ao
trabalho, esse trabalho que pode transformar o Mundo e que tem de ser, ele, o
único a transformar este Portugal em que nós estamos. É gente bem educada,
gente correcta, gente delicada, atenciosa. E eu digo isto tudo, não é para que
eles depois digam que eu estive a dizer bem deles, não é por uma questão de
emulação, mas é numa atitude de sinceridade, porque no convívio com eles em cada
um tenho um amigo, por isso posso testemunhar todos estes predicados da boa
gente de Tavarede.
Gente com um certo nível de cultura.
Que ultrapassou um pouco aquele tempo da instrução primária, nós já sabemos
porquê e já diremos porquê.
Gente polida nas suas maneiras, é gente
que sabe viver em grupo, em
comunidade. Eu considero este ponto importantíssimo para uma
comunidade em que as pessoas se isolam, em que cada uma não pensa única e
simplesmente nas suas coisas, na sua casa. Tantas vezes à noite eu os vejo
passar para esta casa, deixando as suas coisas. Mas é uma sociedade, é um
grupo, é uma comunidade, é uma família. E até ainda neste aspecto de família,
eu queria dar um testemunho muito grande. Quando há trabalho na Igreja, e
independentemente das suas profissões religiosas, independentemente dos seus
credos políticos, damo-nos as mãos mutuamente e tantas vezes eu tenho vindo
aqui e eles me perguntam: - Então, Senhor Padre, quando é trabalho, tal coisa?
Veja lá, marquemos com tempo, para depois podermos ser todos a trabalhar.
Isto é importantíssimo numa terra, e é
consolador para mim que sou o Pároco desta terra que é a minha.
Gente que trabalha em comum. Eu não tenho
dúvidas nenhumas em dizer que todos estes valores humanos se devem a uma
espécie de pequena Universidade que temos cá na terra, e a um magnífico Reitor.
Eu refiro-me à Sociedade de Instrução Tavaredense e ao meu grande amigo José
Ribeiro…”.
(Avô António Medina)
Sem comentários:
Enviar um comentário