sábado, 23 de maio de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 7

Vida da aldeia


Se pretendo fazer uma descrição da vida em Tavarede, por volta dos anos 1940/1950, também se torna necessário recordar um pouco a maneira de viver das famílias aldeãs. Já sabemos que a nossa terra, sendo uma freguesia rural, tinha grande dependência da agricultura. No entanto, e excepto três ou quatro casos, em que tinham quintas um pouco maiores, a grande maioria da população tavaredense que vivia das terras, não eram mais do que pequenos, mesmo pequeníssimos lavradores. Tanto assim que bem cedo se aperceberam da necessidade de mandarem seus filhos trabalhar na cidade, aprender um ofício, uma forma de enfrentar a vida mais segura do que o cultivo e amanho das leiras de terra, que, tantas vezes isso acontecia, bastava uma intempérie mais fora do tempo, para dar cabo do esforço de tantos meses.

Feita a quarta classe, o que nem todos conseguiam, não por falta de capacidade intelectual mas, sim, de recursos económicos, logo procuravam emprego nas oficinas, armazéns e obras. Alguns, com enorme esforço, conseguiam continuar os seus estudos e tiravam o curso comercial ou industrial na Escola Dr. Bernardino Machado, durante o período do Estado Novo denominada Escola Industrial e Comercial Tomás Bordalo Pinheiro. A Figueira também possuía o curso liceal, até ao quinto ano, e a Academia Figueirense, na rua de Santo António, particular, mas que só davam aulas diurnas. Por isso, trabalhando de dia, somente naquela escola era possível estudar à noite.

E se muitos aprenderam e exerceram os misteres de ferreiro, serralheiro, sapateiro e tantas outras profissões, uma grande parte conseguiu, graças ao estudo nocturno, empregar-se nos escritórios da Companhia dos Caminhos de Ferro da Beira Alta, principal empregadora local, noutros escritórios e em estabelecimentos comerciais, ramo bastante florescente na época. Recordo que, já no meu tempo, muitos eram os rapazes e raparigas que prosseguiram os seus estudos na Figueira, durante o dia, e, nas férias grandes, empregavam-se como marçanos nas lojas comerciais que, durante a época balnear, abriam as suas sucursais no Bairro Novo, onde, durante o Inverno, praticamente não havia actividade comercial. Como mantinham abertos os seus estabelecimentos sede na Baixa, recorriam aos alunos para irem trabalhar durante aqueles três meses. Por mim, foram três épocas que ali trabalhei, desempenhando a tarefa de marçano na Sapataria Quaresma,  na sucursal que então abria na Rua Cândido dos Reis, frente ao antigo Hotel Portugal.

Outra profissão para a qual Tavarede sempre deu um grande contingente, foi a de tipógrafo. Havia várias tipografias na Figueira, algumas com jornais semanais ou bi-semanais, e o trabalho não faltava, pois a composição, impressão e encadernação, etc., eram tudo tarefas manuais. Meu padrinho, Manuel Nogueira, tinha uma tipografia no Pinhal, mesmo em frente ao portão do Liceu. Durante as férias do Natal e da Páscoa, era certo e sabido que lá ia eu “ajudar” nas tarefas necessárias, muito especialmente a numerar impressos e fazer intercalações. Também aprendi a “caixa” e fazia a distribuição dos tipos das chapas já utilizadas. Ainda hoje me lembro alguns dos cacifos, mas muito vagamente. O que recordo muito bem é que, como marçano, o meu primeiro ordenado foi de 120$00 por mês, e como aprendiz de tipógrafo 1$00 por dia. Isto em 1945/1946.

Regressemos a Tavarede. Algumas famílias, já o disse, tinham a agricultura como principal actividade. Mas as suas terras não eram suficientemente grandes para uma ocupação total, pelo que, sendo cavadores, trabalhavam nas quintas vizinhas ou para outros pequenos lavradores, nas sementeiras e, em especial, nas ocasiões da cava e tratamento das vinhas. Havia umas famílias tavaredenses, os Migueis e os Fadigas que, tendo bois de trabalho, além de lavrarem as terras, faziam os transportes na cidade das mercadorias que chegavam pelo caminho de ferro.

Por melhor conhecimento, e porque não haveria grandes diferenças, vou recorder, muito resumidamente, um pouco de como se vivia em Tavarede, naqueles já distantes tempos, servindo-me da lembrança de meus avós paternos. Moravam na rua Direita, um pouco abaixo do largo do Paço, numa casa igual a tantas outras. A casa tinha duas portas, uma, a principal, que, por uma escada em dois lances, conduzia ao primeiro andar, e uma outra, bastante mais larga, que era a chamada porta da adega.

Ao lado da casa ficava o quintal. Quando entrávamos o portão, tínhamos à nossa direita o poço, cuja água, muito boa, era puxada por uma bomba manual. Diziam que era o mesmo veio que fornecia a fonte. A seguir ficavam as escadas, em pedra, com corrimão em grade de ferro, por onde se subia ao primeiro andar. A escada dava para uma varanda a toda a largura da casa, donde se avistava toda a fértil zona sul da aldeia.Do outro lado do quintal, junto à entrada estava a casota do enorme cão de guarda, e encostado ao fundo, ficava um curral onde tinham os animais, duas vacas leiteiras, um burrito e o porco. À vontade, pelo curral e quintal, andavam as galinhas e galos. No curral ainda ficavam guardadas algumas alfaias agrícolas, uma carrocita e a palha, de produção própria e comprada, para sustento dos animais.

Na loja, que era transformada em adega, na devida ocasião, para a venda do vinho, como noutro local refiro, estavam os canteiros com as pipas, tendo a um dos lados um enorme balseiro, onde as uvas eram pisadas e o bagaço prensado, na velha prensa manual, montada depois de trasfegado o mosto. Por baixo da escada, estava a salgadeira, de madeira, onde se guardavam as carnes da matança do porco. Poceiros, cestos e medidas espalhavam-se pelo espaço restante. Com uma tosca divisória, ficava ao fundo o quarto do criado, o S’Tóino.

O primeiro andar era a residência, com a cozinha e sala de jantar viradas para a varanda. Mais três quartos compunham as divisões da casa. No corredor ficava a entrada para o sótão, para o qual se subia por uma estreita escada que tinha um corrimão daqueles que nós, rapazes, tanto gostávamos de descer ao escorrega.

O sótão era amplo, com duas janelas, e não tinha nada de especial. Era ali que eram guardados os cereais das colheitas e as leguminosas. Lá se viam os poceiros com milho, trigo, centeio, feijão, de várias espécies, grão de bico e chícharos, tão usuais naquela altura e que agora rarissimamente aparecem, apesar de fazerem uma sopa deliciosa. Também ali guardavam a fruta. Num canto, sobre palha, amadureciam as peras francesas ou de Inverno que, assim amadurecidas, tinham um sabor maravilhoso. Por ocasião das vindimas, estendiam diversos cordéis, onde penduravam muitos cachos de uvas brancas que ali secavam e se transformavam nas passas utilizadas, por ocasião do Natal, para as tortas doces.

Como se pode avaliar, era uma casa absolutamente idêntica a todas as outras casas de pequenos lavradores. Modesta, como todas, mas uma casa onde, felizmente, havia sempre relativa fartura.

Meu avô havia trabalhado como serralheiro ou ferreiro na Companhia do Gaz, mas sempre o conheci na situação de reforma. Minha avó tratava das lides da casa e dos gados. Manhã cedo, Verão ou Inverno, ia ela a caminho da Figueira, com o S’Tóino, fazer a venda do leite às clientes habituais. Quando tinham venda para o mercado, couves, nabos ou quaisquer novidades, levavam a carrocita puxada pelo burrico.

As fazendas da Sinceira, na Chã, e a Matioa, eram cuidadosamente tratadas por meu avô e pelo criado, recorrendo, quando das lavras, ao serviço de fora. Os filhos também ajudavam, nas suas horas vagas. Não vou descrever nada da vida agrícola naquelas fazendas. Era tudo normal. O que melhor me recorda são os figos negritos de uma enorme figueira que lá havia e que, quando bem maduros, muitas vezes foram a minha merenda, com uma fatia de broa. Também me não esquecem os enormes morangos que se criavam nas valas, no meio da altas ervas. Eram todos para os netos e netas.

Eu passava muito tempo em casa de meus avós, por isso me recordo muito bem das diversas tarefas, como as vindimas, a venda do vinho e a matança do porco. Noutro local procurarei evocar estas cenas.

Uma coisa, entre outras, nunca me esqueceu. A minha merenda era habitualmente uma grossa fatia de broa, com uma espessa camada de manteiga, feita por minha avó, e um púcaro de leite. Outras vezes era um valente prato de papas de farinha cobertas por açúcar e uma boa dose de leite. Simplesmente, uma pequena maravilha.

“Tavarede, pequena mas interessante aldeia, a dois quilómetros e meio da Figueira, é a terra natal do nosso director e onde vive a sua família. Foi lá, num alegre convívio, cheios de atenções, que passámos a tarde. Sentíamo-nos ali verdadeiramente felizes. Naquela aldeia pequenina, fóra do bulício da grande urbe, entre aquela gente simples, de coração puro, reside o verdadeiro bem-estar, aquele optimismo que varre do cérebro a atmosfera pesada das nossas quotidianas preocupações”, escreveu-se no “Jornal de Sintra, por ocasião da excursão de sintrenses já citada.

Mas, embora tenham sido proferidas uns anos mais tarde, não posso deixar de aqui transcrever, pois se enquadra perfeitamente neste capítulo, um pequeno extracto de um discurso feito pelo nosso Amigo Padre António Matos, numa sessão solene local:
“…….E queria lembrar, à maneira de uma vivência pessoal deste pouco tempo em que estou aqui em Tavarede, queria lembrar alguma coisa desta gente. Queria lembrar que é gente simples, trabalhadora, que não vem aqui para o palco tecer um hino trabalho apenas de uma maneira teórica, mas porque o sente bem nas suas mãos, nos seus campos, na sua casa, nas oficinas, nos escritórios, sente o peso do trabalho, mas porque não encara o trabalho como um peso, tece um hino ao trabalho, esse trabalho que pode transformar o Mundo e que tem de ser, ele, o único a transformar este Portugal em que nós estamos. É gente bem educada, gente correcta, gente delicada, atenciosa. E eu digo isto tudo, não é para que eles depois digam que eu estive a dizer bem deles, não é por uma questão de emulação, mas é numa atitude de sinceridade, porque no convívio com eles em cada um tenho um amigo, por isso posso testemunhar todos estes predicados da boa gente de Tavarede.
         Gente com um certo nível de cultura. Que ultrapassou um pouco aquele tempo da instrução primária, nós já sabemos porquê e já diremos porquê.
         Gente polida nas suas maneiras, é gente que sabe viver em grupo, em comunidade. Eu considero este ponto importantíssimo para uma comunidade em que as pessoas se isolam, em que cada uma não pensa única e simplesmente nas suas coisas, na sua casa. Tantas vezes à noite eu os vejo passar para esta casa, deixando as suas coisas. Mas é uma sociedade, é um grupo, é uma comunidade, é uma família. E até ainda neste aspecto de família, eu queria dar um testemunho muito grande. Quando há trabalho na Igreja, e independentemente das suas profissões religiosas, independentemente dos seus credos políticos, damo-nos as mãos mutuamente e tantas vezes eu tenho vindo aqui e eles me perguntam: - Então, Senhor Padre, quando é trabalho, tal coisa? Veja lá, marquemos com tempo, para depois podermos ser todos a trabalhar.
         Isto é importantíssimo numa terra, e é consolador para mim que sou o Pároco desta terra que é a minha.

         Gente que trabalha em comum. Eu não tenho dúvidas nenhumas em dizer que todos estes valores humanos se devem a uma espécie de pequena Universidade que temos cá na terra, e a um magnífico Reitor. Eu refiro-me à Sociedade de Instrução Tavaredense e ao meu grande amigo José Ribeiro…”.

(Avô António Medina)





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