domingo, 31 de maio de 2015

Tavarede- A terra de meus avós - 8

As nossas brincadeiras e passatempos


         Vou começar o capítulo das minhas recordações pelas brincadeiras, que ocupavam os nossos tempos livres. E digo livres, porque, mesmo antes de iniciarmos a escola primária, aos Quatro Caminhos, muitos de nós tinham obrigações a cumprir, quer ajudando nas tarefas caseiras, quer nas terras, arrancando as ervas daninhas dos canteiros ou fazendo regas, nomeadamente no encaminhamento da água. Mas, mesmo assim, os nossos tempos para brincar não faltavam.   

Eram bem escassos, no entanto, os brinquedos que naquele tempo existiam para a rapaziada brincar. Nos dias em que havia festa da Igreja, era usual aparecerem, no Largo do Rio, os feirantes que, armando tenda com panos e colchas, penduravam as flores de papel, as santinhas feitas de açúcar, os fios de pinhões e outras guloseimas e um ou outro brinquedo de lata ou de madeira, como, por exemplo, aqueles trapezistas articulados, que faziam ginástica no trapézio, quando apertávamos as bases ou os lados do brinquedo. No chão, em seiras, estavam aquelas bolas coloridas que, presas com um elástico, terão sido as antecessoras dos modernos “yo-yos”.

         Mas isto acontecia uma ou duas vezes por ano, aqueles brinquedos nem todos podíamos comprar, e nós queríamos brincadeira todos os dias, embora sem prejuízo dos trabalhos escolares e do estudo das lições que o professor Coelho, primeiro, e depois o professor Constantino Tomé marcavam para casa.

         Claro que as brincadeiras estavam condicionadas ao estado do tempo. Com bom tempo, não parávamos em casa, mas se chovia, lá tínhamos de ir para os sítios abrigados. Posso dizer que, naquela época, não havia quaisquer problemas em a rapaziada andar a brincar fora de casa. O trânsito era diminuto e nos brincávamos nos largos, praticamente desertos.

         Jogávamos muito às escondidas. Um desses jogos chamava-se, salvo erro, a “Cruz de Guerra” e consistia em que o grupo escondido, ou fugitivo, ia assinalando, de forma discreta, com uma cruz riscada no chão ou feita em ramos de árvores, a direcção que tinham tomado. Todos conhecíamos muito bem os caminhos e terrenos aqui à volta e, muitas das vezes, a busca levava-nos até para cima dos Condados, etc. Eram tardes de campo, acontecendo algumas vezes os perseguidores não conseguirem decifrar as pistas deixadas, retirando de mãos vazias. Quando, ao fim do tempo combinado, apareciam, havia sempre grande gozo com os perdedores.

         O futebol já era a principal brincadeira. A bola era feita com uma velha meia, surripiada em casa, que enchíamos de trapos muito bem apertados. No meio, e para fazer peso, colocávamos uma pequena pedra. Devidamente enrolada e arredondada, a bola era cozida e estava apta para a jogatina. Quatro ou cinco de cada lado, muda aos seis e acaba aos doze, disputava-se rija partida.

         Outros jogos tradicionais eram o pião e o berlinde. Todos conhecem estes jogos. Para o jogo do pião, escolhíamos um lugar mais ou menos plano e com o piso mais firme, fazíamos uma circunferência, cujo tamanho dependia do número de jogadores. Havia piões de vários tamanhos. Neste aspecto eu tinha relativa sorte, pois meu tio Ricardo era torneiro nas oficinas do caminho de ferro, e frequentemente me fazia alguns piões. Para o nosso jogo, cada um lançava o pião à vez. Bem enrolado o cordel a partir do bico, normalmente com “gajim”, um fio utilizado nas redes de pesca e que os pescadores nos davam grandes pedaços, escolhíamos o melhor local para o lançamento. Depois, era aguardar que o pião acabasse de rodopiar e, ao deitar-se, fosse impelido, pelo seu movimento rotativo, a sair da circunferência. Se saía, tudo bem, de contrário eram os nossos adversários que lançavam o deles apontados ao nosso, procurando acertar-lhe até ele acabar por sair da roda. Algumas vezes conseguiam acertar em cheio e, visto os bicos bem aguçados, era certa a marca que ficava.

         O berlinde, aquelas bolinhas de vidro que serviam de rolha aos pirolitos, também nos entretinha muito tempo. Recordo-me que jogávamos aos castelos, quatro circunferências em quadrado, distantes umas das outras e uma outra ao centro. Todas elas tinham uma pequena cova ao meio, onde procurávamos enfiar os berlindes. Ganhava o que primeiro conquistasse os castelos.

         Outros brinquedos eram feitos por nós. As tradicionais fisgas, para atirar aos passaritos, mas mais usadas para torneios de tiro ao alvo, as carretas de madeira velha, mais ou menos capazes de rolarem nas descidas, etc.

         No tempo das laranjas, naquele tempo só havia laranjas dos nossos pomares e isto nos primeiros meses do ano, fazíamos grandes disputas com os estoques. Junto ao ribeiro, haviam grandes salgueiros. Nós cortávamos alguns ramos de grossura média. Depois recortávamos canudos, bem direitos, com uns dez a quinze centímetros de comprido. Com muito cuidado, tirávamos a casca e o sabugo do interior. Enquanto uma das pontas ficava direita, a outra era aguçada, para cortar a casca de laranja, que fazia de bucha. O êmbolo era feito com um pau de salgueiro ou vime, que desbastávamos com cuidado para ficar à grossura do interior do canudo. A pressão de ar, provocada por uma pancada seca no êmbolo, atirava a casca de laranja direita ao alvo. Bem infantis eram as nossas brincadeiras. E antes de passar para dentro de casa, ainda vou lembrar uma outra.

         A rua Direita, como as outras, aliás, era feita de terra, pedra, saibro e barro. Se o piso não era grande coisa em tempo bom, no Inverno tornava-se um verdadeiro problema para as pessoas circularem, no meio de autêntico lamaçal.

         Para a rapaziada, o tempo de chuva era ocasião para estas brincadeiras. Dos lados das ruas, junto às casas, havia uma espécie de valetas, que mais eram carreiros que escoavam as águas para as vielas que davam para o ribeiro.

         Mesmo em frente à casa de meus avós, e numa extensão de alguns metros, havia um desses carreiros mais regulares. Fazíamos, então, uma represa, limpávamos as areias e formava-se um lago. Era a nossa pista para as corridas de barcos. E estes, de que eram feitos? De carrasca de pinheiro. Procurávamos pelos pinhais vizinhos os pedaços de carrasca que abundavam, escolhendo os maiores e os mais grossos. Depois era a nossa imaginação e habilidade. Com um pequeno canivete, íamos lentamente desbastando de um lado e outro, dando o formato ao navio. Fazíamos a quilha, aguçávamos a proa e na ré não esquecíamos o pequeno leme. Moldávamos os bancos e se o tamanho o permitisse, até fazíamos a pequenita casita do pescador. Um ou dois mastros completavam a obra.

Na represa, púnhamos um canudo de cana para ir dando escoamento á água, o que fazia com que se formasse uma ligeira corrente. Escolhidos os limites para a corrida era dada a partida. Para dar mais velocidade aos barcos, nós íamo-nos ajoelhando para assoprar o nosso. É de calcular o belo estado em que ficavam as roupas ao arrastarmo-nos pelo chão para as assopradelas…

         Um outro entretenimento muito apreciado era as corridas de bicicleta. Aliás, eram sempre tardes de festa quando se realizavam as afamadas “voltas dos campeões”, em que os ciclistas passavam por Tavarede dez vezes. Íamos em ranchada, rapazes e raparigas, para os pinhais da estrada de Mira vê-los passar. Era um delírio a bater palmas. Mas a nossa brincadeira não metia bicicletas a sério. Cada um de nós tinha vários corredores, montados na bicicleta, desenhados em cartão. Cuidadosamente recortados do mesmo tamanho, eram pintados com as corres da nossa equipa. Escolhíamos, então, um sítio onde houvesse areia e marcávamos a distância para a corrida. Alinhados os corredores, lançávamos, à vez, um dado. O número de pintas que calhava era o número de comprimentos que cada corredor avançava. E, assim, se apurava o jogador e a equipa vencedores.

         Não vale a pena falar nas bolas de sabão e nos papagaios. Ainda hoje estão muito em voga, embora muito mais sofisticados.   Os nossos eram feitos com tiras de cana secas e com papel de jornal… Haviam mais brincadeiras, como corridas de arcos e outras que agora me não ocorrem.

         Mais difícil era quando o tempo estava de chuva e nos obrigava a ficar dentro de casa. Mas nem por isso deixávamos de brincar. As casas, quase todas, tinham amplas lojas ou enormes sótãos. Juntávamo-nos em casa de um ou outro. Gostávamos, por exemplo, de ler. Havia, naquele tempo, um pequeno jornal infantil, “O Mosquito”, que fazia as nossas delícias com as aventuras do “Capitão Meia-Noite”, do “Serafim e Malacuéco”, do “Cuto” e de tantos outros heróis, cujas histórias eram lidas e relidas vezes sem conta. Também um jornal diário, julgo que “O Século”, publicava às quintas-feiras o suplemento “Pim-Pam-Pum”, que, no dia seguinte, nos davam na barbearia, onde assinavam o jornal. Estes jornalinhos traziam, de quando em vez, uma folha de construções de armar. Colávamos em cartolina aqueles desenhos, a cola fazíamo-la nós com resina das cerejeiras e ameixieiras dissolvida em água, e depois de bem secos eram recortados e feitas as respectivas montagens. Tenho a ideia de um grande forte, com os índios a atacarem, a cavalo, e os soldados a defenderem-se nas trincheiras. Ao meio, na torre maior estava a bandeira. Eram vários os motivos e faziam uma colecção bastante engraçada.

         Também fazíamos montagens de casas e de grandes torres e castelos com bilhetes de caminho de ferro usados, de que tínhamos sempre grande fornecimento. Também nos serviam para jogar.

         Um outro passatempo gostaria de aqui deixar recordado. Na antiga casa da Sociedade, no lado norte, viviam o ti Manél do Casal e a Ti Maria Augusta, com sua família. Durante muitos anos ele foi o electricista da Sociedade e ela era a encarregada das limpezas.

         Quando se entrava pela porta da rua dos Condados, a que dava para esta residência, ficava, do lado esquerdo do corredor e com uma pequena janela para a rua, um quarto de arrumações de velhas coisas do teatro. Entre estas velharias havia uma máquina de projectar filmes, certamente que era a máquina que a Sociedade utilizou durante uns tempos para projecções, e que ainda funcionava. Com a parede a fazer de écran, ligávamos a máquina com uma bobine de filme que também lá havia, e tínhamos grandes sessões de cinema, embora muito repetitivas. O cinema era mudo, mas também tínhamos fundo musical, com a velha grafonola que lá havia e que, depois de darmos corda com uma manivela, arrancava música de alguns velhos discos que igualmente lá estavam. Muitas das agulhas da grafonola, algumas já bem ferrugentas, serviam para fazermos setas, com um pedaço de pau, para atirarmos a um alvo.

         A propósito de cinema, recordo uma outra das nossas brincadeiras. Numa caixa de cartão, das utilizadas para os sapatos, abríamos um rectângulo no fundo, que cobríamos com um bocado de papel de seda branco, colado à caixa. Entretanto recortávamos as figuras de jornais velhos, especialmente de animais, ou desenhávamos nós mesmos. Então, às escuras, acendíamos um pequeno couto de vela que colocávamos na caixa e íamos passando as figuras junto ao improvisado écran iluminado pela vela. Os assistentes estavam sentados no chão, frente à caixa. Era como que uma história de sombras, cuja exibição era acompanhada pela narração de uma história improvisada pelo “projectista”, de acordo com as figuras mostradas.

         Que ingenuidade a nossa! Com bem pouco nos contentávamos, Mas, na verdade, éramos felizes com as nossas brincadeiras. Algumas vezes, para termos mais assistência, anunciávamos o espectáculo com alguma antecedência. E, então, preparávamos convenientemente a sala para receber os espectadores nas melhores condições. Até chegávamos a ornamentar a “sala”! E um dos habituais adornos íamos buscá-los ao velho caminho do Robim, junto ao Selão.

         Eram bonitos e farfalhudos os penachos brancos. Bem lindos, por sinal. Mas era preciso muito cuidado para os apanhar. É que as folhas das canas, rijas e finas, cortavam como lâminas!”…

         Também eram de costume antigo realizarem-se os chamados “jogos tradicionais”. As notícias das antigas festas das festas sanjoaninas, na nossa terra, dizem que, na segunda feira seguinte, a tarde era dedicada a estes jogos e que tinham sempre farta concorrência de assistentes e participantes. Talvez o número mais apreciado fosse a rosquilhada, mas outros jogos tinham lugar, como corridas diversas, malha, pela, etc.

         Em Setembro de 1950, um tavaredense que havia regressado à nossa terra havia pouco tempo, resolveu reviver este costume. Eis a notícia:

         “TARDE DESPORTIVA - O sr. António Nunes Cruz, impenitente amigo do desporto, organizou no passado domingo, de colaboração com vários amigos, diversas provas desportivas, que constaram de “2 voltas pedestres ao Pêso”, “corridas de sacos”, de “ovos” e “rosquilhada”.
         Pelas 15,40 horas os “atletas” largaram em vertiginosa corrida. O resultado desta prova foi o seguinte: 1º. prémio, José Esteves; 2º., João Gil; 3º., José Rodrigues Gil (todos de Caceira); 4º., João Júlio, de Tavarede.
         Desistiu João da Silva Maltez, em face dum “laço de corda” que sua mãe, traiçoeiramente, lhe deitou às pernas no momento em que concluia a primeira volta.

A seguir realizou-se a prova dos ovos – percurso de 100 metros, com uma colher das de sopa na boca e um ovo -, que teve o seguinte resultado: 1º. prémio, Francisco Cardoso; 2º., Júlio Manta; 3º., José Rodrigues Dias; 4º., Júlio Rodrigues.
         Seguiu-se a “corrida de sacos”, cujo resultado foi como segue: 1º. prémio, Francisco Cardoso; 2º., António da Silva Maltez; 3º., Manuel Vitorino; 4º., o menino António Manuel de Figueiredo.
         Por fim, teve lugar a “rosquilhada”, apresentando-se os “desportistas” montados em bicicletas, com excepção de Pedro Medina que, comodamente, se fez conduzir num carro de mão.
         Nesta prova registou-se um acidente, já no final: uma queda que provocou injustificada agressão por parte de quem tinha o dever de se mostrar disciplinado e disciplinador.
         A entrega dos prémios fez-se no Grupo Musical, onde se realizou uma “matinée” dançante…”.

          Como última evocação dos jogos tradicionais que tanto se praticavam em Tavarede, recordo o jogo da pela, em que, nas tardes domingueiras e na rua Direita, se disputavam grandes desafios. Com o pequeno banco deitado no chão e uma pequena bola, raparigas e rapazes dividiam-se em dois grupos e eram os intérpretes desta engraçada diversão. Bons tempos aqueles!



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