As nossas brincadeiras e passatempos
Vou começar
o capítulo das minhas recordações pelas brincadeiras, que ocupavam os nossos
tempos livres. E digo livres, porque, mesmo antes de iniciarmos a escola
primária, aos Quatro Caminhos, muitos de nós tinham obrigações a cumprir, quer
ajudando nas tarefas caseiras, quer nas terras, arrancando as ervas daninhas
dos canteiros ou fazendo regas, nomeadamente no encaminhamento da água. Mas,
mesmo assim, os nossos tempos para brincar não faltavam.
Eram bem escassos, no entanto, os
brinquedos que naquele tempo existiam para a rapaziada brincar. Nos dias em que
havia festa da Igreja, era usual aparecerem, no Largo do Rio, os feirantes que,
armando tenda com panos e colchas, penduravam as flores de papel, as santinhas
feitas de açúcar, os fios de pinhões e outras guloseimas e um ou outro
brinquedo de lata ou de madeira, como, por exemplo, aqueles trapezistas
articulados, que faziam ginástica no trapézio, quando apertávamos as bases ou
os lados do brinquedo. No chão, em seiras, estavam aquelas bolas coloridas que,
presas com um elástico, terão sido as antecessoras dos modernos “yo-yos”.
Mas isto
acontecia uma ou duas vezes por ano, aqueles brinquedos nem todos podíamos
comprar, e nós queríamos brincadeira todos os dias, embora sem prejuízo dos
trabalhos escolares e do estudo das lições que o professor Coelho, primeiro, e
depois o professor Constantino Tomé marcavam para casa.
Claro que
as brincadeiras estavam condicionadas ao estado do tempo. Com bom tempo, não
parávamos em casa, mas se chovia, lá tínhamos de ir para os sítios abrigados.
Posso dizer que, naquela época, não havia quaisquer problemas em a rapaziada
andar a brincar fora de casa. O trânsito era diminuto e nos brincávamos nos
largos, praticamente desertos.
Jogávamos
muito às escondidas. Um desses jogos chamava-se, salvo erro, a “Cruz de Guerra”
e consistia em que o grupo escondido, ou fugitivo, ia assinalando, de forma
discreta, com uma cruz riscada no chão ou feita em ramos de árvores, a direcção
que tinham tomado. Todos conhecíamos muito bem os caminhos e terrenos aqui à
volta e, muitas das vezes, a busca levava-nos até para cima dos Condados, etc. Eram tardes de campo, acontecendo algumas
vezes os perseguidores não conseguirem decifrar as pistas deixadas, retirando
de mãos vazias. Quando,
ao fim do tempo combinado, apareciam, havia sempre grande gozo com os
perdedores.
O futebol já era a principal
brincadeira. A bola era feita com uma velha meia, surripiada em casa, que
enchíamos de trapos muito bem apertados. No meio, e para fazer peso,
colocávamos uma pequena pedra. Devidamente enrolada e arredondada, a bola era
cozida e estava apta para a jogatina. Quatro ou cinco de cada lado, muda aos
seis e acaba aos doze, disputava-se rija partida.
Outros
jogos tradicionais eram o pião e o berlinde. Todos conhecem estes jogos. Para o
jogo do pião, escolhíamos um lugar mais ou menos plano e com o piso mais firme,
fazíamos uma circunferência, cujo tamanho dependia do número de jogadores.
Havia piões de vários tamanhos. Neste aspecto eu tinha relativa sorte, pois meu
tio Ricardo era torneiro nas oficinas do caminho de ferro, e frequentemente me
fazia alguns piões. Para o nosso jogo, cada um lançava o pião à vez. Bem
enrolado o cordel a partir do bico, normalmente com “gajim”, um fio utilizado
nas redes de pesca e que os pescadores nos davam grandes pedaços, escolhíamos o
melhor local para o lançamento. Depois, era aguardar que o pião acabasse de
rodopiar e, ao deitar-se, fosse impelido, pelo seu movimento rotativo, a sair
da circunferência. Se saía, tudo bem, de contrário eram os nossos adversários
que lançavam o deles apontados ao nosso, procurando acertar-lhe até ele acabar
por sair da roda. Algumas vezes conseguiam acertar em cheio e, visto os bicos
bem aguçados, era certa a marca que ficava.
O berlinde,
aquelas bolinhas de vidro que serviam de rolha aos pirolitos, também nos
entretinha muito tempo. Recordo-me que jogávamos aos castelos, quatro
circunferências em quadrado, distantes umas das outras e uma outra ao centro.
Todas elas tinham uma pequena cova ao meio, onde procurávamos enfiar os
berlindes. Ganhava o que primeiro conquistasse os castelos.
Outros
brinquedos eram feitos por nós. As tradicionais fisgas, para atirar aos
passaritos, mas mais usadas para torneios de tiro ao alvo, as carretas de
madeira velha, mais ou menos capazes de rolarem nas descidas, etc.
No tempo
das laranjas, naquele tempo só havia laranjas dos nossos pomares e isto nos
primeiros meses do ano, fazíamos grandes disputas com os estoques. Junto ao
ribeiro, haviam grandes salgueiros. Nós cortávamos alguns ramos de grossura
média. Depois recortávamos canudos, bem direitos, com uns dez a quinze
centímetros de comprido. Com muito cuidado, tirávamos a casca e o sabugo do
interior. Enquanto uma das pontas ficava direita, a outra era aguçada, para
cortar a casca de laranja, que fazia de bucha. O êmbolo era feito com um pau de
salgueiro ou vime, que desbastávamos com cuidado para ficar à grossura do
interior do canudo. A pressão de ar, provocada por uma pancada seca no êmbolo,
atirava a casca de laranja direita ao alvo. Bem infantis eram as nossas
brincadeiras. E antes de passar para dentro de casa, ainda vou lembrar uma
outra.
A rua
Direita, como as outras, aliás, era feita de terra, pedra, saibro e barro. Se o
piso não era grande coisa em tempo bom, no Inverno tornava-se um verdadeiro
problema para as pessoas circularem, no meio de autêntico lamaçal.
Para a
rapaziada, o tempo de chuva era ocasião para estas brincadeiras. Dos lados das
ruas, junto às casas, havia uma espécie de valetas, que mais eram carreiros que
escoavam as águas para as vielas que davam para o ribeiro.
Mesmo em
frente à casa de meus avós, e numa extensão de alguns metros, havia um desses
carreiros mais regulares. Fazíamos, então, uma represa, limpávamos as areias e
formava-se um lago. Era a nossa pista para as corridas de barcos. E estes, de
que eram feitos? De carrasca de pinheiro. Procurávamos pelos pinhais vizinhos
os pedaços de carrasca que abundavam, escolhendo os maiores e os mais grossos.
Depois era a nossa imaginação e habilidade. Com um pequeno canivete, íamos
lentamente desbastando de um lado e outro, dando o formato ao navio. Fazíamos a
quilha, aguçávamos a proa e na ré não esquecíamos o pequeno leme. Moldávamos os
bancos e se o tamanho o permitisse, até fazíamos a pequenita casita do
pescador. Um ou dois mastros completavam a obra.
Na represa, púnhamos um canudo de
cana para ir dando escoamento á água, o que fazia com que se formasse uma
ligeira corrente. Escolhidos os limites para a corrida era dada a partida. Para
dar mais velocidade aos barcos, nós íamo-nos ajoelhando para assoprar o nosso.
É de calcular o belo estado em que ficavam as roupas ao arrastarmo-nos pelo
chão para as assopradelas…
Um outro
entretenimento muito apreciado era as corridas de bicicleta. Aliás, eram sempre
tardes de festa quando se realizavam as afamadas “voltas dos campeões”, em que
os ciclistas passavam por Tavarede dez vezes. Íamos em ranchada, rapazes e
raparigas, para os pinhais da estrada de Mira vê-los passar. Era um delírio a
bater palmas. Mas a nossa brincadeira não metia bicicletas a sério. Cada um de
nós tinha vários corredores, montados na bicicleta, desenhados em cartão. Cuidadosamente
recortados do mesmo tamanho, eram pintados com as corres da nossa equipa.
Escolhíamos, então, um sítio onde houvesse areia e marcávamos a distância para
a corrida. Alinhados os corredores, lançávamos, à vez, um dado. O número de
pintas que calhava era o número de comprimentos que cada corredor avançava. E,
assim, se apurava o jogador e a equipa vencedores.
Não vale a
pena falar nas bolas de sabão e nos papagaios. Ainda hoje estão muito em voga,
embora muito mais sofisticados. Os
nossos eram feitos com tiras de cana secas e com papel de jornal… Haviam mais brincadeiras, como corridas de arcos e outras que agora me
não ocorrem.
Mais difícil era quando o tempo
estava de chuva e nos obrigava a ficar dentro de casa. Mas nem por isso
deixávamos de brincar. As casas, quase todas, tinham amplas lojas ou enormes
sótãos. Juntávamo-nos em casa de um ou outro. Gostávamos, por exemplo, de ler. Havia,
naquele tempo, um pequeno jornal infantil, “O Mosquito”, que fazia as nossas
delícias com as aventuras do “Capitão Meia-Noite”, do “Serafim e Malacuéco”, do
“Cuto” e de tantos outros heróis, cujas histórias eram lidas e relidas vezes
sem conta. Também um jornal diário, julgo que “O Século”, publicava às
quintas-feiras o suplemento “Pim-Pam-Pum”, que, no dia seguinte, nos davam na
barbearia, onde assinavam o jornal. Estes jornalinhos traziam, de quando em
vez, uma folha de construções de armar. Colávamos em cartolina aqueles
desenhos, a cola fazíamo-la nós com resina das cerejeiras e ameixieiras
dissolvida em água, e depois de bem secos eram recortados e feitas as
respectivas montagens. Tenho a ideia de um grande forte, com os índios a
atacarem, a cavalo, e os soldados a defenderem-se nas trincheiras. Ao meio, na
torre maior estava a bandeira. Eram vários os motivos e faziam uma colecção
bastante engraçada.
Também
fazíamos montagens de casas e de grandes torres e castelos com bilhetes de
caminho de ferro usados, de que tínhamos sempre grande fornecimento. Também nos
serviam para jogar.
Um outro
passatempo gostaria de aqui deixar recordado. Na antiga casa da Sociedade, no
lado norte, viviam o ti Manél do Casal e a Ti Maria Augusta, com sua família.
Durante muitos anos ele foi o electricista da Sociedade e ela era a encarregada
das limpezas.
Quando se
entrava pela porta da rua dos Condados, a que dava para esta residência,
ficava, do lado esquerdo do corredor e com uma pequena janela para a rua, um quarto
de arrumações de velhas coisas do teatro. Entre estas velharias havia uma
máquina de projectar filmes, certamente que era a máquina que a Sociedade
utilizou durante uns tempos para projecções, e que ainda funcionava. Com a
parede a fazer de écran, ligávamos a máquina com uma bobine de filme que também
lá havia, e tínhamos grandes sessões de cinema, embora muito repetitivas. O
cinema era mudo, mas também tínhamos fundo musical, com a velha grafonola que
lá havia e que, depois de darmos corda com uma manivela, arrancava música de
alguns velhos discos que igualmente lá estavam. Muitas das agulhas da
grafonola, algumas já bem ferrugentas, serviam para fazermos setas, com um
pedaço de pau, para atirarmos a um alvo.
A propósito
de cinema, recordo uma outra das nossas brincadeiras. Numa caixa de cartão, das
utilizadas para os sapatos, abríamos um rectângulo no fundo, que cobríamos com
um bocado de papel de seda branco, colado à caixa. Entretanto recortávamos as
figuras de jornais velhos, especialmente de animais, ou desenhávamos nós
mesmos. Então, às escuras, acendíamos um pequeno couto de vela que colocávamos
na caixa e íamos passando as figuras junto ao improvisado écran iluminado pela
vela. Os assistentes estavam sentados no chão, frente à caixa. Era como que uma
história de sombras, cuja exibição era acompanhada pela narração de uma
história improvisada pelo “projectista”, de acordo com as figuras mostradas.
Que
ingenuidade a nossa! Com bem pouco nos contentávamos, Mas, na verdade, éramos
felizes com as nossas brincadeiras. Algumas vezes, para termos mais
assistência, anunciávamos o espectáculo com alguma antecedência. E, então,
preparávamos convenientemente a sala para receber os espectadores nas melhores
condições. Até chegávamos a ornamentar a “sala”! E um dos habituais adornos
íamos buscá-los ao velho caminho do Robim, junto ao Selão.
Eram
bonitos e farfalhudos os penachos brancos. Bem lindos, por sinal. Mas era
preciso muito cuidado para os apanhar. É que as folhas das canas, rijas e
finas, cortavam como lâminas!”…
Também eram
de costume antigo realizarem-se os chamados “jogos tradicionais”. As notícias
das antigas festas das festas sanjoaninas, na nossa terra, dizem que, na
segunda feira seguinte, a tarde era dedicada a estes jogos e que tinham sempre
farta concorrência de assistentes e participantes. Talvez o número mais
apreciado fosse a rosquilhada, mas outros jogos tinham lugar, como corridas
diversas, malha, pela, etc.
Em Setembro
de 1950, um tavaredense que havia regressado à nossa terra havia pouco tempo,
resolveu reviver este costume. Eis
a notícia:
“TARDE DESPORTIVA - O sr. António Nunes
Cruz, impenitente amigo do desporto, organizou no passado domingo, de
colaboração com vários amigos, diversas provas desportivas, que constaram de “2
voltas pedestres ao Pêso”, “corridas de sacos”, de “ovos” e “rosquilhada”.
Pelas 15,40 horas os “atletas”
largaram em vertiginosa corrida. O resultado desta prova foi o seguinte: 1º.
prémio, José Esteves; 2º., João Gil; 3º., José Rodrigues Gil (todos de Caceira);
4º., João Júlio, de Tavarede.
Desistiu
João da Silva Maltez, em face dum “laço de corda” que sua mãe, traiçoeiramente,
lhe deitou às pernas no momento em que concluia a primeira volta.
A seguir realizou-se a prova dos ovos – percurso de 100 metros , com uma
colher das de sopa na boca e um ovo -, que teve o seguinte resultado: 1º.
prémio, Francisco Cardoso; 2º., Júlio Manta; 3º., José Rodrigues Dias; 4º.,
Júlio Rodrigues.
Seguiu-se a
“corrida de sacos”, cujo resultado foi como segue: 1º. prémio, Francisco
Cardoso; 2º., António da Silva Maltez; 3º., Manuel Vitorino; 4º., o menino
António Manuel de Figueiredo.
Por fim,
teve lugar a “rosquilhada”, apresentando-se os “desportistas” montados em
bicicletas, com excepção de Pedro Medina que, comodamente, se fez conduzir num
carro de mão.
Nesta prova
registou-se um acidente, já no final: uma queda que provocou injustificada
agressão por parte de quem tinha o dever de se mostrar disciplinado e
disciplinador.
A entrega
dos prémios fez-se no Grupo Musical, onde se realizou uma “matinée” dançante…”.
Como última
evocação dos jogos tradicionais que tanto se praticavam em Tavarede, recordo o
jogo da pela, em que, nas tardes domingueiras e na rua Direita, se disputavam
grandes desafios. Com o pequeno banco deitado no chão e uma pequena bola,
raparigas e rapazes dividiam-se em dois grupos e eram os intérpretes desta
engraçada diversão. Bons tempos aqueles!
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