Tavarede – anos quarenta…
Nasci em Tavarede,
numa pequena casa da rua Direita, um pouco abaixo do Largo do Paço, nos já
distantes anos trinta do século passado. Aqui me criei e vivi a minha infância
e a minha juventude, tempos felizes e despreocupados, até ao ano de 1958,
quando, por motivos profissionais, abalei para Lisboa. Quando regressei, anos
mais tarde, fixei a residência familiar na Figueira. Mas, e quase que
diariamente, as nossas visitas a Tavarede sucediam-se. A família mais chegada
continuava a aqui residir e, se eles desejavam a presença familiar, nós
igualmente nos sentíamos aqui muito bem. Afinal de contas eramos filhos da
terra…
Talvez por isso, não
deixo de ter uma certa apreensão ao começar a recordar os meus tempos de
infância. Mas, e isso quero desde já afirmar, não é por uma questão de
saudosismo. É verdade que, uma vez por outra, não poderei deixar de sentir uma
certa “saudade”, mas, no caso, será mais correcto falar em “sentimentalismo”.
Desde
sempre, e isso mesmo tenho observado nas minhas recolhas, os tavaredenses
tiveram, e têm, fama de serem uns “sentimentalões”, especialmente em questões
de bairrismo. Claro que eu não sou a excepção à regra. Mas, e disso estou bem
convicto, esta viagem aos meus tempos de menino e moço vai saber-me muito bem.
Para
me não alongar em demasia, e porque o período escolhido é mais do que
suficiente para os meus propósitos, vou viajar até à década dos anos quarenta
do século passado, digamos, portanto, mais de sessenta anos atrás. Certamente
que algumas das minhas lembranças me levarão fora daquele período, mas evitarei
fazê-lo o mais possível.
Começo
por recordar, uma vez mais, que a terra do limonete era, naquele tempo, muito
diferente daquilo que é nos nossos dias. Curiosamente, pode dizer-se que a
aldeia mudou mais em vinte ou trinta anos, do que nos seus primeiros nove
séculos de existência. Vista, por exemplo, da velha estrada de Mira, o casario
de Tavarede apresentava uma forma de um triângulo quase perfeito, bem marcado
nos seus vértices: Igreja, Paço e Terreiro. Bastará atentar na antiquidade
daqueles três edifícios para confirmação do que referimos.
Circunscrevendo a aldeia, e começando
pelo lado nascente, tínhamos a quinta da Mentana, onde, nos princípios daqueles
anos, ainda vivia o seu proprietário, João Gaspar de Lemos Amorim, poeta que tão bem cantou a nossa terra e a sua vida agrícola. Depois,
contornando o burgo até ao Terreiro, tínhamos a quinta do Nabal, da parte de
cima do cemitério, o
início das Azenhas, o Carriço e a encosta até ao Pezo, seguindo-se depois, para
poente, a caminho do Paço, os terrenos do dr. Cruz, a quinta do Pezo e
a quinta de José
Duarte. Do lado sul, havia a quinta do Paço, com a sua frondosa mata, na
Várzea, e até ao Largo da Igreja, ficavam as verdejantes e viçosas hortas do
Serrado e do Quintal do Ferreira, com todos os bocadinhos amorosamente
amanhados.
Fora
destes limites, uma ou outra casa. Os lugares da Simôa, Nabal, Azenhas, Pezo,
Senhor da Arieira e Várzea, ainda se encontravam perfeitamente destacados.
Estes eram os mais próximos mas, como referi, ainda isolados do velho burgo.
Naquele
tempo a vida na aldeia era bastante calma e serena. Os maiores ruídos que se
ouviam, era de manhã bem cedo e à noitinha, e eram feitos pelos carros de bois
que atravessavam a povoação a caminho das fazendas, muitas vezes carregados de
estrume e dos apetrechos e alfaias agrícolas. No regresso, traziam os produtos
colhidos da terra fecunda e o pasto para alimento do gado. Muitos destes
carros, também frequentemente iam de madrugada à estação do caminho de ferro,
em busca de algum rendimento no carrego das encomendas vindas nos comboios e
que se destinavam ao comércio e armazéns da cidade.
É inevitável a
recordação da passagem dos carros de bois gandarezes que, da estrumeira da
Várzea ou das areias de Buarcos, levavam o “adubo” tão necessário ao cultivo
das suas terras areentas. Às vezes formavam uma enorme caravana que, vinda de
Buarcos, atravessava pachorrentamente a aldeia, pela velha rua Direita, subindo
depois, com esforço, pela estrada do Saltadouro a caminho da Cova da Serpe e
lugares mais distantes.
Quando
passavam por Tavarede, corríamos todos à espreita para ver se caíam alguns
pilados com os balanços dos carros, ao percorrerem a rua esburacada. Já
conhecíamos os melhores sítios e mal víamos um pilado a correr no chão, logo
saltávamos a apanhá-lo, apesar dos ralhos do dono. Depois de cozidos, eram uma
bela merenda.
Também
manhã cedo, algumas carroças puxadas a burricos, atravessavam a aldeia a
caminho da Figueira, levando enormes carradas de hortaliças e flores ao
mercado, de que eram os principais fornecedores. Muitas mulheres, que tinham
menos produção, transportavam, em cestas que levavam à cabeça, as couves e as
novidades apanhadas na véspera, pela fresquinha. Tinham fama as couves de
Tavarede. “Não surgem no mercado da Figueira – nem haverá por essa bola do
mundo – hortaliças e novidades mais apaladadas e gostosas. Que aquilo é campo
bendito – que Deus fadou para regalo e gozo dos eleitos”, escrevia-se no
boletim do Turismo, em 1945.
E
quanto a flores, lembro um dito do saudoso professor Doutor Joaquim de
Carvalho, que dizia “as mulheres de Tavarede, com o seu bom gosto, têm uma arte
especial para construírem um ramo de flores”.
Também
pelas manhãs e ao entardecer, a aldeia era sacudida da sua modorra, com a
passagem dos dois rebanhos de cabras que então cá existiam. No Paço,
albergava-se o rebanho do sr. Marcelino, proprietário e talhante na Figueira, e
que tinha como cabreiro ao seu serviço, o Diogo, da Chã. Um pouco adiante da
fonte, no caminho da Várzea, vivia Joaquim Lopes, mais conhecido por Joaquim
Tarouco, que igualmente tinha um rebanho de cabras que, com o filho, Evaristo,
levava a apascentar aos valados ou pousios dos arredores. Na Figueira, no
Bairro Novo, eram bem conhecidos os pregões do Joaquim Tarouco, quando ali ia
vender leite.
As
noites eram silenciosas. E no verão, nas quentes noites estivais, era grande a
concorrência de pessoas à fonte, onde gozavam de uma fresquidão muito
agradável, depois de se refrescarem com a água pura e cristalina que, sem
cessar, caía dos seus canos em leve murmúrio. Outros iam até ao Largo da
Igreja, onde se sentavam no velho muro, respirando gostosamente a fresca brisa,
olorosamente perfumada a limonete, enquanto, tantas vezes, ouviam deliciados os
doces trinados dos rouxinóis e dos pintassilgos, que ainda abundavam por ali,
nos salgueirais do ribeiro.
Ao
recordar isto, vem à minha memória a “caça” que os rapazes faziam aos
pirilampos, que voejavam à nossa volta num constante pisca-pisca. Apanhávamos
quantos podíamos. Chegados a casa, metíamo-los num copo, voltado com a boca
para baixo, acompanhados de um pequeno punhado de pedras de sal. De manhã, era certo. Lá estava a pequena
moeda que, trabalhando o sal, os pirilampos haviam produzido durante a noite.
Que ingenuidade a nossa!
* * *
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