A mobília do senhor conde
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Sinto
na alma saudades torturantes
Dos
serões e das festas ruidosas,
Com
luzes, flor’s e pratas cintilantes,
Veludos,
sedas, pedras preciosas.
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Era assim
que, na fantasia “Chá de Limonete”, de Mestre José da Silva Ribeiro, a nobre e
envelhecida figura do palácio dos senhores de Tavarede, recordava o seu
passado.
Como
sabemos, o paço de Tavarede foi sempre a residência permanente da fidalga
família dos Quadros, desde a sua construção, ainda na primeira metade do século
XVI.
A 10ª
Senhora de Tavarede, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa, casou, no dia 26
de Dezembro de 1791, com o célebre fidalgo D. Francisco de Almada e Mendonça,
corregedor da cidade do Porto, onde realizou importantes obras. A família
“Quadros e Almada” passou a ter a sua residência naquela cidade nortenha,
fazendo, no entanto, frequentes visitas à nossa terra, onde, no dizer de Pinho
Leal, no seu “Dicionário Portugal Antigo e Moderno”, “era a providência dos
povos desta terra”.
Tendo enviuvado no ano de 1804, é
de presumir que tenha voltado a fixar residência em Tavarede, onde faleceu no
dia 25 de Fevereiro de 1835, encontrando-se sepultada na cripta do convento de
Santo António, na Figueira da Foz.
Vem isto a propósito para referir
que, sendo o palácio de Tavarede residência permanente, ou simplesmente
temporária, o mesmo deveria estar mobilado, senão com luxo, pelo menos com as
comodidades necessárias ao alojamento da, habitualmente numerosa, família
Quadros.
O único filho varão de D. Antónia
Madalena e de D. Francisco de Almada e Mendonça, que se chamou João de Almada
Quadros Sousa de Lencastre, casou, em 1810, com D. Maria Francisca Emília da
Fonseca Pinto de Albuquerque Araújo e Meneses, filha e herdeira do
superintendente das coudelarias da comarca de Trancoso, possuidor de largas
propriedades naquela terra, que constituíam um morgado, e que, pelo casamento,
se uniram à casa de Tavarede.
Passou, entretanto, a residir em
Trancoso, com sua família, fazendo, especialmente na época balnear, frequentes
e demoradas visitas à nossa terra, instalando-se no seu velho solar de
Tavarede.
De igual modo terá procedido o
seu filho e herdeiro, o segundo conde de Tavarede, de quem, por seu falecimento
em Novembro de 1853, foi herdeiro seu filho primogénito, D. João Carlos Emílio
Vicente Francisco d’Almada Quadros Sousa Lencastre Saldanha e Albuquerque que,
igualmente, herdou o título de conde de Tavarede.
Esta história tem, como um dos
protagonistas, precisamente este titular. “Fidalgo no sangue, no aprumo, na
ilustração, no carácter, no sentimento e invariável nas acções, o grande amigo
imprimia feição a Trancoso, dava-lhe a sua vida, do seu tom, dos seus nervos,
da sua qualificação social, anímica e mental: alma de luz, propagava a luz”,
escreveu o jornal A Folha de Trancoso, tempos depois da sua morte.
Como curiosidade, e somente para
reforço do que se disse sobre as suas deslocações a Tavarede, recorda-se que o
conde, em Setembro de 1883, tomou posse como presidente da Direcção da
Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz. Certamente
que, se aceitou essa nomeação, seria porque aqui estava o tempo necessário para
o desempenho do mesmo ou, talvez, porque tencionava mudar a sua residência para
a nossa terra, uma vez que, por essa ocasião, mandou fazer importantes obras de
transformação no palácio.
Não deixa de ser interessante, e
relativamente a esta história de “A mobília do senhor conde”, o que Ernesto
Tomás escreveu na sua reportagem sobre Tavarede, de que já fiz algumas
transcrições, agora sobre o palácio da nossa terra:
“Quando por essa época (1865) entrei, pela primeira vez, no
edifício do Paço, velho alcácer onde esteve D. Maria Mendes Petite, mãe de Pêro
Coelho, um dos que fizeram de D. Inês de Castro uma vítima, condenada pelo seu
amor clandestino; quando subi aquelas escadas de pedra, frias e húmidas,
que iam dar ao andar nobre do edifício e
percorri aquelas salas vastas, mas sem conforto, lembrou-me mais do que uma vez
que por ali teriam andado os passos do
velho soldado da Índia, D. Francisco de Almada (referia-se ao pai do marido de D. Antónia Madalena), que por lá
teria pisado António Pereira (?) de Quadros, e a última habitante do velho
solar, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa.
……………
Percorrendo aquela antiquíssima
habitação, ainda encontrámos os restos de um altar, numa das divisões ao lado
do corredor principal que se dirige, no andar nobre, do norte ao sul. Um
oratório, apresentando o seu esqueleto em madeira, tosca, conserva ainda
ligados uns restos de forro de pano escuro, com umas linhas de galão sem brilho
já. De resto nada de importante”.
Surpreende bastante esta descrição.
Ponho, no entanto, uma hipótese. Esta visita terá ocorrido relativamente pouco
tempo antes do início das obras de transformação do velho edifício que acima
referi, das quais as mais importantes terão sido o desmantelamento da altaneira
torre com ameias e a modificação da
frontaria do lado poente, com os novos torreões e os rendilhados estilo
manuelino, que ainda bem conhecemos. Estariam, então, as mobílias devidamente
guardadas em qualquer armazém? É de admitir que sim, e que seriam utilizadas
quando a família fidalga aqui vinha passar as suas férias balneares e, talvez,
acompanhar o andamento das obras.
Vamos, agora, passar ao segundo
protagonista da história: o reverendo pároco Joaquim da Costa e Silva. No ano
de 1894, o padre António Augusto Nobreza, também ele protagonista de uma outra
história igualmente contada neste caderno, havia sido transferido para outra
paróquia e, como era uso naqueles tempos, a diocese de Coimbra abriu concurso
para provimento deste cargo, tendo sido provido no mesmo, em Junho de 1894, o
padre Costa e Silva, até então coadjutor na paróquia de Paião.
Foi uma figura bastante
controversa. Devemos recordar, porém, que naqueles já recuados tempos, as lutas
políticas eram assaz violentas. Os militantes de um partido político sofriam,
frequentemente, ataques dos partidos adversários. A imprensa, então, explorava
ao mais pequeno pormenor todas as possíveis fraquezas e falhas dos responsáveis
partidários. Os correspondentes locais, concretamente refiro-me ao caso de
Tavarede, muitas vezes se excediam, chegando, até, à difamação e ao insulto, o
que resultava, de vez em quando, em desmentidos públicos, quase sempre
ordenados pelo Tribunal.
O padre Joaquim da Costa e Silva
era natural da Ereira, concelho de Montemor-o-Velho. Como já referi, foi
provido na igreja de Tavarede em Junho de 1894. Os próprios adversários
políticos reconheciam-no como pessoa bastante inteligente e denodado lutador
pelo bem-estar dos povos das paróquias onde esteve, como Paião, Tavarede e, por
último, Quiaios.
Recordo, somente, o que o jornal “A Voz da Justiça” escreveu, no dia 4
de Janeiro de 1924, noticiando o seu falecimento: “o padre Joaquim da Costa e
Silva que, antes de paroquiar Quiaios, esteve a dirigir a igreja de Tavarede,
foi sempre um político activo, pondo a sua influência ao serviço dos homens que
aqui defendiam a política regeneradora, antes da proclamação da república e, na
vigência desta, dos que, monárquicos ou republicanos, combatiam a política
democrática.
Foi sempre nosso adversário. Isto
não obsta que, esquecendo nesta hora certos actos por ele praticados e que nós
aqui atacámos, digamos que, nas vezes em que o padre Joaquim da Costa e Silva
ocupou na Câmara Municipal o lugar de vereador, procurou sempre obter
benefícios para a localidade onde paroquiava”.
Estão feitas as apresentações dos
dois protagonistas desta história. Vamos, agora, à mesma: “A mobília do senhor
conde”.
* * *
Na edição de 20 de Janeiro de
1899 o jornal “O Povo da Figueira” escreveu, em correspondência de Tavarede:
“…….. Quando o conde de Tavarede
resolveu vender a casa que aqui tinha (o Paço), e onde havia mobília valiosa, o
nosso Papa-jantares (alcunha
atribuída ao padre Costa e Silva, não sei a que propósito), dirigiu-se logo a
Trancoso a falar com ele, afim de lhe pedir um guarda-roupa para uma aplicação
religiosa………..”.
O conde, que era uma pessoa
religiosa e bastante generosa, vendo o fim a que se destinava essa peça de
mobília, não hesitou e de imediato escreveu um pequeno bilhete, dirigido ao seu
feitor, que tinha mandado a Tavarede precisamente para embalar todas as
mobílias existentes no palácio, e no qual ordenava para “…. lhe dar o que fosse
preciso para a igreja”.
Com aquele bilhete na mão, logo
que chegado a Tavarede, o pároco foi ter com o feitor e exigiu o cumprimento
das ordens do conde. Reconhecendo a letra do patrão, de imediato o homem se
prontificou a cumprir o que lhe era ordenado e logo se disponibilizou para
fazer a entrega “de tudo o que fosse preciso para a igreja”. Era, assim, que
estava a ordem escrita.
Realizada, entretanto, a venda do
palácio e da quinta, o conde veio à Figueira para ultimar tudo. O comprador foi
o sr. Luís João Rosa, de quem também conto, neste caderno, uma pequena
história.
Depois de tudo
tratado com a venda, foi o conde a Tavarede para concluir as providências que
havia ordenado ao seu feitor, quanto à embalagem da mobília, que tencionava
enviar, pelo caminho de ferro, para a sua casa de Trancoso. Calcule-se, agora,
o seu espanto quando o seu empregado lhe disse que a mobília havia-a levado o
padre Joaquim da Costa e Silva, a quem a havia entregado em obediência às
ordens do sr. conde, conforme o bilhete que lhe mandou e no qual dizia para
“entregar o que fosse preciso para a igreja”.
Após dar umas voltas pelas salas,
então já praticamente vazias, o conde, vendo que o padre, que lhe tinha pedido
unicamente um guarda-roupa, lhe levara as principais peças de mobília que ainda
cá tinha, teve o seguinte desabafo: “se a casa tivesse rodas também era capaz
de a levar para casa dele”!
Alma bondosa, porém, nada mais
disse ou empreendeu, e como não haviam restado senão umas “fracas coisas de
mobília”, deu-as ao feitor e regressou a Trancoso de mãos vazias, relativamente
à mobília que viera buscar a Tavarede.
O jornal, explorando o caso,
acrescenta: “Quem for à igreja só lá vê um guarda-roupa, mas se forem a casa do
meu amiguinho (o padre Costa e Silva), lá encontram um bom aparador e muitas
outras coisas. O resto da mobília, como lhe não cabia toda em casa, tratou de
mobilar a casa de um amigo”!
Entre outras peças, o jornal
acrescenta que o pároco levou: “dois guarda-roupas, um importante aparador,
duas boas mesas, um lavatório, uma banquinha, uma excelente mesa de jogo (até
isto!!!) e não sei que mais”.
O padre, depois do conde se ter
ido embora, tomou conhecimento da reacção do titular e comentou para com uns
amigos que “a mobília tinha sido levada por ordem do conde”.
Comentário final: se a tinha
dado, porque razão mandou o conde a Tavarede um seu empregado (Francisco Pires)
com a incumbência de empalhar e embalar a mobília para a despachar pelo caminho
de ferro? E porque razão, ao tomar conhecimento do caso, o conde havia
comentado “se a casa tivesse rodas também a levava para casa dele?”. Estas
palavras foram ouvidas por pessoas da terra, que as confirmaram ao
correspondente do jornal.
Adianta ainda o referido
correspondente que, depois, o pároco mandou chamar o feitor para que lhe
contasse o que se havia passado e sabendo que o conde tinha ficado bastante
zangado, principalmente por causa do aparador, que era um móvel muito valioso e
pelo qual tinha particular estima, disse ao homem que estava pronto a devolver
tudo que o conde quisesse, embora sempre
insistindo que ele lhe havia dado toda a mobília que havia trazido.
Não sei se o feitor comunicou
para Trancoso esta informação do pároco mas, na verdade, o conde não quis mais
saber do caso nem da mobília.
Alguns anos mais tarde, é o
correspondente em Quiaios, do jornal “A Voz da Justiça”, que fala na mobília,
numa pequena local daquela povoação, em Junho de 1905: “…….no jantar dado (pelo padre Joaquim da Costa e Silva, que
fora, entretanto, transferido para Quiaios) foram muito apreciados uns
pastéis com recheio de mogno, do conde de
Tavarede, e uns pãezinhos feitos de milho da congrua que pertencia ao padre
Manuel Vicente, actual pároco de Tavarede”.
Será que, na verdade, “a mobília
do senhor conde” foi acabar a sua existência em Quiaios?
Ruínas do palácio dos Condes de Tavarede
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