Naquele referido ano de 1907, certamente porque a comissão
de festeiros não teria obtido donativos suficientes, não se efectuaram cavalhadas.
Uma nota de um dos correspondentes jornalísticos em Tavarede, publicada no dia
19 de Julho, indica que “começaram os trabalhos de ornamentação no largo
fronteiro à casa do sr. Luís João Rosa, para as festas a que chamam “de S.
João”, e que constam de iluminações e danças no sábado e arraial e corridas de
jericos no domingo de tarde. Dizem-nos que haverá carreiras de trens entre essa
cidade e Tavarede, a preços reduzidos, e por isso é de presumir que seja grande
a concorrência”.
Não encontrei referência às práticas religiosas, mas presumo
que terão sido as habituais: novenas, sermões e missa solene.
Parece, pelas notas encontradas, que, mesmo assim, as festas
estiveram bastante animadas, pois “as danças prolongaram-se até à manhã de
domingo e de tarde foi grande a concorrência, apesar de não haver corrida de
jericos, como se anunciou, nem qualquer outra diversão”. Pelos vistos, naquele
ano, houve crise de jericos e outras “alimárias”, pois nem cavalhadas nem
corridas.
Como já referi anteriormente, para as
danças populares armavam-se dois pavilhões, variando os locais. Naqueles
tempos, eram organizados ou melhor, eram reactivados para as festas, dois
ranchos que existiram durante bastantes anos: o Rancho da Alegria e o Rancho
Flor da Mocidade. Por sinal foi o primeiro que, em 1912, venceu o concurso dos
ranchos do 1º de Maio, organizado na Figueira pela primeira vez naquele ano.
Pois em
1907 houve duas comissões e, por conseguinte, dois pavilhões. Curiosamente,
estas duas comissões eram “chefiadas” por dois irmãos, os quais, diz a notícia,
“eram dois verdadeiros amigos!”. Um, o mais novo, de nome Francisco Cordeiro,
instalou o pavilhão junto do seu estabelecimento de mercearias e vinhos, que
ficava mais ou menos a meio da rua principal, entre a Igreja e o Paço. Embora
pequeno, por a largura da rua não o permitir maior, “estava instalado a
capricho”, e era ali que dançava o Rancho da Alegria.
A outra comissão, sob a chefia do irmão José Maria Cordeiro,
montou o seu “no Paço, perto do Palácio dos antigos Condes de Tavarede, num
recinto, portanto, muito mais espaçoso para as respectivas funções do que o seu
rival”. Naturalmente, importa dizer que, bem perto a esses pavilhões, ficavam
os seus estabelecimentos comerciais, pois ambos eram comerciantes do mesmo
ramo: mercearia e vinhos e, nestas alturas,
também de “comes e bebes”, chegando a publicitarem os seus petiscos e os
mais afamados “vinhos do lavrador”, na imprensa figueirense, numa feroz
concorrência, apesar de, como referi, “serem dois verdadeiros amigos!”. Neste
pavilhão dançava o Rancho Flor da Mocidade e era muito frequentado pelos
rapazes e raparigas de Buarcos e da Praia. Os músicos, de um e outro,
pertenciam à tuna de Tavarede.
Ora esta história teve a sua origem precisamente com os
músicos: No ano anterior, o mano Francisco “promoveu umas festas defronte de
casa. Havia contratado os músicos, mas estes à hora faltaram, porque foram raptados por uma outra comissão de
festejos. Este ano, sucedeu-lhe o mesmo caso, tendo à hora de arranjar uma
fanfarra composta de homens de antes
quebrar que torcer”. E, então, lembrou-se de afixar no pavilhão um enorme
letreiro em que se escrevia: “NEM ASSIM!”.
Pois era verdade. O mano “Zé Maria” havia-lhe pregado uma
valente partida, deixando-o sem música. Como se vê, também naquele ano o
tentou, mas não o conseguiu. Em Tavarede havia, realmente, muitos e bons
músicos.
Claro que o irmão Francisco fez aquilo “no firme propósito
de susceptibilizar o mano mais velho e lembrou-se de o mimosear com uma inocente surpresa, destas de levarem
água no bico, mandando afixar no seu coreto aquela legenda, que não passava de
um singelo devaneio bairrístico”.
E a notícia desta “guerra” continua:
“O ti’Zé Maria, de temperamento mais de quebrar que torcer,
acusando o toque e tendo em consideração o velho adágio de que amigos, amigos, mas a categoria dos ranchos à parte,
respondeu ao irmão – improvisadamente
– de que maneira? Começou por lançar no espaço uma dúzia de restolhentos
foguetes de morteiros com três respostas, que tinha para vender, deitou as mãos
a uma gaveta da cómoda e dela ripou um lençol de muita estimação que, pelos
modos, fôra uma prenda de casamento, e fê-lo em tiras, colou-as umas às outras,
mandando-as descerrar, a todo o comprimento do avantajado pavilhão do seu
apreciado rancho, ornamentado a capricho com verdura, grinaldas de flores e
bandeiras em profusão, muitos balões e cordas
com papéis de cores garridas, onde se dançava e cantava, alegremente, até ao romper
de alva, e juntou-lhe, em letras garrafais, a seguinte legenda, em resposta à
tendenciosa falácia do seu querido mano Francisco: ATÉ AQUI CHEGUEI EU!...
Era inevitável que o festeiro ti’Zé Maria Cordeiro levasse
com uma “tesíssima descompostura, no próprio arraial”, da senhora Aninhas, sua
esposa e colaboradora nos negócios do estabelecimento, pois, com o seu
irreflectido gesto de esfacelar uma estimada prenda do enxoval, arruinara o
“aludido lençol bordado que constituia, segundo disseram, uma velha prenda de
estimação do apartado dia de noivado de ambos...”.
Para acabar esta curiosíssima história de uma “terrível”
rivalidade festeira, entre dois irmãos, que até eram verdadeiros amigos,
transcrevo a última parte da notícia:
“Tal ocorrência redundou numa deprimente barraca para o popularíssimo e simpático
promotor do célebre e tão acreditado Rancho da Mocidade, que depois se viu
obrigado a mercar um lençol semelhante ao transformado, num ímpeto de nervos
descontrolados, na referida legenda, que lhe causara um dos mais íntimos
prazeres da vida, só dessa maneira fazendo calar a consorte, que acabou por dar
grande gáudio, ao ter disso conhecimento, ao seu cunhado Francisco, inveterado rival nas festas são joaninas do seu
marido...”.
* * * * *
A outra história que me propuz contar sobre as festas ao S.
João, na terra do limonete, é bem diferente da anterior. Como se irá ver, neste
caso, um dos “festeiros” era bem poderoso, tão poderoso que... conseguiu fazer
com que se acabassem em Tavarede tais festejos.
Foi no ano de 1927. No ano anterior, o movimento militar,
iniciado em Braga e que seguira até Lisboa, no 28 de Maio, uma vez vencedor,
derrubou o regime republicano. Não interessa aqui, pormenorizar o acontecimento
histórico, que acabou, pouco depois, por instaurar a ditadura de Salazar, a
qual se manteria até ao 25 de Abril de 1974.
Desde a implantação da República, em Outubro de 1910, que o
partido republicano, no poder, travou dura luta contra a igreja católica, até
então detentora de grandes privilégios e que tinha enorme influência política
nos destinos do país. Foi natural,
portanto, que, com o movimento atrás referido, imediatamente procurasse
reconquistar o seu anterior poder e influência.
Como habitualmente, naquele ano de 1927, a comissão promotora
das tradicionais festas sanjoaninas, tratou da organização e marcou-as para os
dias 30 e 31 de Julho. Do programa previsto, para além das costumadas
cerimónias religiosas, previam-se as “ornamentações, iluminações, fogo de
artíficio, concertos pela filarmónica contratada, danças populares com
acompanhamento da tuna, cavalhadas com ida à Figueira e a Buarcos, corridas de
prémios, etc.”. O tradicional.
Acontece, porém, que semanas antes, o Bispo de Coimbra
resolvera comunicar aos padres da sua diocese, que proibissem, pura e
simplemente, que as cavalhadas fizessem parte do programa, pois as considerava
“pagãs” e, como tal, indignas dos festejos a um santo, por mais popular que o
S. João fosse. E, claro, logo pairou a ameaça de excomunhão para quem não
obedecesse à deliberação do senhor Bispo...
A Figueira, de que na altura era pároco o bem conhecido
reverendo Palrinhas, acatou a ordem sem discussão. Buarcos procedeu do mesmo
modo. Até a nossa vizinha Brenha, embora muito lamentosa, não teve as suas
cavalhadas, aliás, de pouca tradição naquela freguesia. Restava Tavarede e, com
o aproximar da data, redobrava a curiosidade sobre a atitude que tomariam os
tavaredenses, tanto mais que tinham anunciado, no seu programa, a realização
das mesmas.
Aconteceu, então, o impensável. A comissão dos festeiros,
com o apoio da população, resolveu não atender à ordem do senhor Bispo, apesar
de todas as tentativas que o nosso padre Manuel Vicente fez para impedir a
realização das cavalhadas. Mas ainda foram mais longe no seu atrevimento e
desafio à Igreja.
Normalmente, as festas eram abrilhantadas por uma das
filarmónicas da Figueira e, algumas vezes, pela das Alhadas ou de Santana.
Naquele ano, porém, e ao terem conhecimento das ordens do Bispo de Coimbra, os festeiros
tomaram uma atitude verdadeiramente reaccionária: contrataram a célebre
filarmónica do Troviscal que, pouco tempo antes, havia sido excomungada pela
Diocese de Coimbra, com proibição total de participar em festejos desta
natureza. É verdade, ainda agora custa a crer como é que a comissão das festas,
que até era composta por alguns católicos praticantes, tenha tido tal ousadia.
Contratar uma banda excomungada!!!
E, então, divulgou um programa em que se lia: “Sábado, 30,
às 18,39 – Recepção, na estação do caminho de ferro da Figueira, da banda do
Troviscal, com a comparência da comissão promotora dos festejos, bandas da
Figueira e outras associações”. Parece que foi uma recepção triunfal, a que o
povo deu colaboração aparecendo em enorme número.
Realizaram-se as festas. Eis um comentário publicado a 3 de
Agosto: “O reverendíssimo sr. Bispo de Coimbra está fulo com o povo de Tavarede
– e não tardará a despejar sobre a terra do limonete, a sua abençoada
excomunhão. Temos de concordar que sua reverendíssima excelência tem razão: -
uma comissão de rapazes quiz fazer a festa a S. João, com a função da Igreja –
novenas, missa, sermão, etc. – e a tradicional cavalhada; o sr. Bispo exigiu
que do programa fosse suprimida a cavalhada – que se fazia desde há muitas
dezenas de anos, com as bandeiras da igreja e repiques dos sinos – com o
fundamento de que era um número pagão; os festeiros resolveram a questão com
grande facilidade, dispensando pura e simplesmente a colaboração da Igreja,
arranjando bandeiras não benzidas e, para completar, mandando vir a banda
excomungada do Troviscal. E a música veio, a Igreja esteve fechada, e a
cavalhada fez-se, correndo tudo na melhor ordem”.
O programa cumpriu-se, com a exclusão da parte religiosa. E
as cavalhadas, conforme a tradição, lá foram até à Figueira. “Era uma cavalgada
numerosa, com ordem, precedida do ruidoso Zé Pereira, e vendo-se nela também
muitos trens cheios de gente alegre”. E lá estava, junto à Igreja de S. Julião,
a banda do Troviscal, que tocou enquanto se cumpria a praxe das voltas à
igreja, desta vez sem o repique dos sinos.
E, passados os festejos e com os ânimos certamente mais
calmos, a imprensa figueirense noticiou:
“Tiveram grande luzimento os festejos populares de S. João,
que se realizaram nos dias 30 e 31 do mês findo, com os números tradicionais.
Não houve desta vez função religiosa, porque, tendo o sr. Bispo de Coimbra
imposto a supressão da tradicional cavalhada, que é, de há longos anos, a
característica das festas de S. João em Tavarede, os organizadores dos festejos
resolveram, e muito bem, fazer as cavalhadas e dispensar pura e simplesmente a
parte religiosa. Para compensar esta falta, veio a excelente banda do
Troviscal, que foi apreciadíssima, tanto no concerto que realizou na noite de
sábado para domingo, com programa de responsabilidade que teve primorosa
execução e foi muito aplaudido, como no de domingo.
Das 2 horas até à madrugada de domingo houve danças
populares, que se repetiram no domingo à noite, e na segunda-feira realizou-se
a rosquilhada.
As cavalhadas foram muito concorridas,
e visitaram a Figueira, onde os esperava a banda do Troviscal, e Buarcos.
A Tavarede veio muita gente dessa cidade e dos lugares
vizinhos.
A banda do Troviscal foi aqui alvo de manifestações de simpatia.
Cumprimentou as duas associações locais, onde se trocaram saudações calorosas e
foi servido aos visitantes um copo-de-água. O regente da banda sr. Oliveira,
afirmou-nos que ia penhoradíssimo com as amabilidades que ele e os executantes
da sua banda foram alvo.
A igreja esteve fechada em todo o dia, e os católicos
ficaram privados da missa.
A-pesar-das prédicas do pároco da freguesia para que ninguém
se aproximasse da banda excomungada, não faltou uma enorme multidão a ouvi-la e
a aplaudi-la.
E tudo correu na melhor ordem”.
A título de curiosidade, refiro que a mencionada banda havia
sido excomungada unicamente por ter acompanhado um funeral civil. É verdade! E
sofre dolorosamente a sua “ousadia”. Deixou de ter contratos para abrilhantar
as festas populares. Tempos mais tarde encontrei, publicados aqui na Figueira,
anúncios para a venda do seu instrumental. Alguns anos depois, voltou a
reorganizar-se mas, segundo as notas que colhemos, nunca mais teve a fama e a
projecção que havia obtido, especialmente devido à atitude drástica do senhor
Bispo de Coimbra.
E, em Tavarede?
Bem, em Tavarede, acabaram para sempre os festejos ao S.
João. Nunca mais se realizaram e acabaram por cair no esquecimento de todos. No
“Chá de Limonete”, mestre José Ribeiro, no bairrista “Tavarede-Marca”, recorda
“Pois quando ressuscitaram o São João, (por
volta de 1940) o grande número das festas foram as cavalhadas. Porquê?
Porque lá estava Tavarede em peso! A freguesia mandou uma burricada... mais
comprida que desde o Rio ao Paço! Os burros eram tantos que a gente nem se via
no meio deles... Ganhámos o prémio! Tavarede marca!”...
Com os naturais exageros de uma fantasia teatral, acredito
que, efectivamente, Tavarede tenha marcado uma vez mais! Foi a última, neste
campo, diga-se.
Rancho da Alegria
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