“Pátria Livre”
“Está
solenemente proclamada a independência desta freguesia, que fica constituída em
República”. É com estas palavras que o Comandante das Tropas se dirige ao povo
que se encontra reunido nos Paços da República.
E, depois de
cantarem o coro de abertura desta fantasia:
“Neste
dia abençoado
Caíram
nossas cadeias
É
façanha que dá brado
Por
todas essas aldeias.
A
tropa audaz e valente
Tornou
nossa Pátria forra.
Soltemos
um viva ingente
À
República de Andorra.
Saudemos
todos
Com
alegria.
Ela
nos trouxe
Paz
e alforria.
Os
da Figueira tirana
Que
se não façam pimpões;
Que
esta tropa duma cana
Vai-lhe
outra vez aos fungões!”
o povo desata em altos vivas e aclamações à nova república
do Limonete! No meio de todo aquele entusiasmo, o Comandante proclama: “o
cidadão Agostinho Pandorgas, que está presente, fica sendo, pelos seus
merecimentos e mais partes, Presidente da República e nomeará ministério”.
O cidadão
indicado aceita, comovido e grato, o cargo para que o escolhem. “Obrigado!
Muito obrigado! Bravo Comandante: agora que estamos libertos do jugo odioso,
consinta que em nome deste povo lhe agradeça o heroísmo com que levou do rabo a
cabo esta façanha imortal. Bendito e louvado seja o vosso nome, agora e na hora
da nossa morte”. E parafraseando Napoleão Bonaparte, termina: “dos altos da
Chã, dos cimos da Vergieira e do Casal da Robala, do cume do Peso e das
encostas do Saltadouro, mais de 40 laparotos o contemplam!”.
Pois é
verdade! Quem diria que, mais de cento e cinquenta anos depois de ter perdido
todo o seu poderio em favor da nova vila da Figueira da foz do Mondego, a terra
do limonete, num heróico golpe das suas tropas revolucionárias, reconquistaram,
não o seu poder antigo, a sua câmara e as suas justiças, mas muito mais do que
isso. Conquistaria a sua independência!
O seu
território era pequeno, sem dúvida, mas era mais ou menos do mesmo tamanho
dessa outra república a que se comparavam, a república de Andorra. É que, como
o bravo comandante disse logo a seguir:
“Este nobre
povo não podia por mais tempo gramar a tirania que pesava sobre ele. Acabaram
os vexames, as contribuições, as licenças do carro e caça, o serviço braçal!
Quebraram-se os grilhões que nos prendiam à maldita Figueira. Já era tempo de
dar liberdade a este povo, que andava pelas azinhagas a gemer as suas
dores...”. De barriga, completa o governador.
É claro que
tal acontecimento teria que dar brado. Rapidamente a notícia chegou a Lisboa e
um jornal de grande circulação nacional, “A Bomba Social”, logo mandou a
Tavarede um dos seus jornalistas mais qualificados, para averiguar e noticiar a
situação real do acontecimento.
Delfim
Pirolito, o jornalista, logo que chegado à terra do limonete, pediu audiência
ao presidente nomeado, que lha concedeu de imediato. Vejamos como correu:
Presidente - Queira
dizer.
Jornalista - Venho,
comissionado pelo meu jornal, a indagar as causas da revolução que há dias rebentou
em Tavarede e que, pelo que agora me disseram e eu estou vendo, saiu
triunfante.
Presidente - Aqui tem o
heróico comandante das nossas tropas que lhe põe tudo em pratos limpos.
Comandante - É simples.
Fartos dos mandões da pátria do caranguejo, fizemos a revolução enquanto o
diabo esfrega um olho e implantámos a República.
Governador - É p’rá
frente é que é o caminho, que p’ra traz mija a burra.
Comandante - O sr.
Presidente lhe explicará o resto.
Presidente - Ora vá
tomando nota no canhenho. Primeiro do que tudo tenho a dizer-lhe que da
Figueira não precisamos nem da ponta dum chavelho. Aqui temos tudo o que é
preciso e para dar e vender.
Governador - Pois a
Figueira ainda apanha o que nos cresce...
Presidente - A boa couve
tronchuda, e bom nabo, o rico pepino, o belo tomate, repolhos grandes como
nádegas de raparigas, e um fartote do bendito fruto...
Jornalista - ... Do
vosso ventre?
Governador - Qual? Esse
é todo apanhado pelas gandaresas...
Comandante - De peras é
tal a fartura que comemos duas de cada vez.
Jornalista - Que lhe
faça bom proveito.
Comandante - Belíssimos
pêssegos...
Jornalista - Pêssegos
também?
Governador - É
riquíssimas pêssegas! Daqui!
Presidente - Finalmente,
nem a verdura dos campos escapa.
Jornalista - Manducam
também o verde?
Presidente - Como vê,
não precisamos da Figueira para nada. Temos tudo: a estação do caminho de
ferro, o matadouro, o Hospital Militar...
Comandante - E até o
próprio cemitério é do nosso território.
Governador - Para
encurtar razões: não teem onde cair mortos.
Presidente - Mas há
mais: A Figueira sem Tavarede estaria na escuridão. A central da Companhia
Eléctrica tem seu assento nesta freguesia.
Jornalista - E já cá
chegou a luz eléctrica?
Presidente - Ora essa!
Pois não havia de chegar?
Jornalista - Deixe-me
V.Exa. tomar nota. Isso é muito importante. Porque me tinham dito que a terra
era pequena e pobre.
Presidente - Sim. A
terra é antiquíssima. Vem do tempo dos godos. Já foi rica. Agora não avesa
cheta...
Jornalista - É como
muitos fidalgos de quatro costados. Não tem riqueza mas tem nobreza.
Governador - Ora
cebolório! Fidalguia sem comedoria é gaita que não assobia...
Presidente - Nos tempos
antigos, no tempo dos godos, alumiava-se com tições e archotes de resina;
depois veio o azeite, mais tarde a vela de cebo e o petróleo, depois a
acetilene e, finalmente, a electricidade.
Governador - Olhe: aí vem a procissão das lamparinas.
Depois de
entrarem, cantando, são apresentadas ao jornalista. Primeiro a candeia de
azeite, a mais velha, “sou a luz dos pobresinhos. O progresso persegue-me
constantemente, mas a candeia velhinha existe ainda em muitas casas”. Depois o
candeeiro a petróleo que fumaça como um catraeiro, “mas sou uma rica luz. Não
cheiro bem, mas...”. Segue-se o acetilene que se cheira mal é porque tem o cano
roto, pois que é um gás civilizado, mas se lhe chegam a mostarda ao nariz,
estoira como uma bomba! Finalmente, chega a vez da electricidade, muito
requestada pois “todos me querem em casa e até nas ruas, mesmo nos sítios mais
escusos!”.
Acabadas as
apresentações as luzes saiem da cena, onde entra, momentos depois, a Comissão
de Irmãos da Irmandade do S. Martinho que, saudando o presidente da República e
dando a sua inteira adesão ao movimento, transmite a sua reinvindicação:
“Excelência!
Em nome da Confraria a que pertencemos, entrego nas mãos de V.Exa. esta
representação. O que aí se pede é pouco, muito pouco, e esperamos que o governo
nos atenderá! Queremos que seja revogada a lei das tabernas; queremos que elas
estejam abertas a toda a hora, de dia e de noite, como as boticas; queremos
inteira liberdade de culto e que cada um possa adorar o orago da freguesia a
toda a hora que lhe dê na gana; e pedimos também que o governo dê um prémio por
cada capela que de novo se abrir no território da nossa República”.
Lá ficou o
governo de estudar o assunto, pois os confrades tinham muita importância local,
com festa que “começa pelo vinho novo e vai por todo o vinho velho!”. E
continua a conversa, afirmando o presidente que “nada precisamos da Figueira,
ao contrário, ela é que tudo precisa de nós. Não contente com o que nos come,
até a água nos bebe...”.
Pois,
pudera! A água de Tavarede tinha fama universal e muitas propriedades urinéticas...
“Puro
engano, esclarece o presidente. A água que a Figueira nos chupa por um canudo,
é para ela um verdadeiro canudo. Tem mais cal que os fornos da Salmanha”. E era
bem verdade. A água ia para a Figueira, desde o Praso, lá ao cimo do Vale de S.
Paio, da nascente do Olho de Perdiz, pela grande conduta que ia dar aos
depósitos do Pinhal, aonde era tratada com cal antes de distribuída. “Agora a
água da nossa fonte, isso é outra loiça! É especial. Fina, pura, saborosa,
aveludada. É um regalo! Para desenvolver as teorias dos intestinos não há
melhor...”.
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