O fornecimento
de água à Figueira
No dia 1 de
Janeiro de 1889, numa notícia inserida no jornal “Correio da Figueira”,
escreve-se a local seguinte: “Prosseguem os trabalhos para a captagem das
águas, acima de Tavarede, estando já perfurados aproximadamente 250 metros de galeria. Começou-se o assentamento da canalização,
que se acha efectuado desde o Largo do Pinhal, onde tem de ser construído o
reservatório, até próximo de Tavarede, numa extensão de mais de 900 metros , que
atravessam o caminho da Esperança, e propriedades dos senhores José Joaquim
Fernandes Águas e conde de Tavarede. A tubagem desde o reservatório à origem,
mede um pouco mais de 3.000
metros ”. Na semana seguinte, acrescenta: “Já começou a escavação,
no alto do Pinhal, para se construir o depósito, ou grande reservatório de
água, que há-de abastecer a Figueira. Pela altura em que aquele sitio fica, virá a água naturalmente, e pela
simples pressão, a todos os pontos da cidade. A canalização atravessou hoje a
estrada de Tavarede, em direcção à galeria”.
Bem sei que não é uma história o
que vou contar sobre o que aconteceu com a captação das águas do Prazo para
abastecimento à Figueira. Sem dúvida que a cidade, em franca expansão e
desenvolvimento naqueles anos, tinha absoluta necessidade de água. Até então o
fornecimento era feito pelas fontes da Várzea e da Lapa, principalmente, onde
iam buscar a água de que careciam, e por um ou outro poço, cuja água fosse
considerada potável. Depois de vários estudos feitos por técnicos especializados,
optou-se pela captação do Prazo. Segundo veremos, pelas transcrições que
adiante faço, resolveram o problema para alguns anos mas, em compensação,
Tavarede, nas suas hortas e várzeas, viu-se despojada de um bem que tinha tão
abundante e de tão boa qualidade.
Como acima
referi, não vou contar uma história. Mas, acredito, muita gente haverá que
gostará de conhecer esta “história”. Não foi pacífica esta exploração. Os
estudos, como iremos ver, iniciaram-se em 1880, mas só em Agosto de 1889 “terminaram
as questões levantadas a propósito da compra das águas, ou antes do direito de
as procurar na propriedade do Prazo, onde a Companhia do Gás e Água desta
cidade encetara os seus trabalhos. Pela compra total da propriedade, ficou a companhia possuidora do terreno da questão, podendo agora
aproveitar todas as águas ali nascentes – salvo o direito a quem se julgue
prejudicado. É caso para nos felicitarmos muito sinceramente, pois o
fornecimento de boa água é para a Figueira um objecto de primeira necessidade.
E felicitamos igualmente a companhia, muito em especial se findaram de vez os
obstáculos a que ela realize os fins a que se propunha”.
E antes de iniciar a começo da
viagem, vou já transcrever uma notícia demonstrativa das consequências desta
exploração das águas. Vem na “Gazeta da Figueira” de 6 de Maio de 1899:
“Aproxima-se
o tempo mais ardente do verão e com ele as questões que todos os anos se dão
aqui entre os lavradores, motivadas pela falta de água para as regas das suas terras
da Várzea, Serrado, Solão, etc. A todos custa ver definharem-se pela sede as suas culturas, cuja
sementeira tantos sacrifícios lhes importou, vendo se por isso obrigados a
recorrer de qualquer forma ao meio de conduzirem a água ás suas valas, por mais
longínquas que elas sejam.
A divisão da água
para aqueles pontos é feita no rio, local junto à Igreja, e é ali que todos os
dias se levantam questões entre os lavradores, que muitas vezes chegam a tomar
carácter de gravidade. Querem uns ser senhores da água continuadamente, quando
outros esperam pela sua vez dez, doze, quinze e mais dias!
E
não haveria meio mais fácil de obstar a estas desigualdades? Não poderia a autoridade
administrativa encarregar o regedor desta freguesia de estabelecer a forma de
todos se remediarem com a pouca água que infelizmente chega ao local da
divisão, sem haver queixas contra o abuso de alguns indivíduos?
Seria
bom que este assunto fosse estudado por quem compete olhar pela manutenção da
ordem pública, evitando assim que muitas pessoas dignas de respeito e que têm necessidade
de fazer conduzir a água para os seus prédios, ainda que tardiamente, sofram
por várias vezes desgostos, ouvindo insultos que lhes dirigem certos indivíduos
sem educação, que só vivem praticando o mal. Em contrário, teremos mais dia menos dia
que lamentar as funestas consequências deste desleixo.
E dizemos desleixo,
porque já de há muitos anos se dão aqui estes factos, sem que até hoje se
dignasse dar-lhes as devidas providências qualquer autoridade local,
tornando-se portanto necessário que se encare a sério esta questão que, como
acima dizemos, pode redundar num grave conflito”.
Sem
mais, vamos, então, até ao ano de 1880. Na apresentação do projecto, que teve
como objectivo a “aquisição de águas subterrâneas e execução das obras
necessárias para as conduzir à povoação e distribuição destas pelas fontes e
pelos domicílios”.
O
projecto compunha-se de três partes principais:
1º
Drenagem do solo por um sistema de galerias subterrâneas para a captação das
águas, na região superior do vale da ribeira de Tavarede, no sítio denominado o
Prazo;
2º
Assentamento da canalização de ferro para a condução das águas à vila;
3º
Construção de um reservatório no alto do Pinhal numa altitude superior à de
todas as casas da vila, para a fácil e regular distribuição da água pelos
chafarizes, que se julgue conveniente estabelecer, e pelos domicílios, quando
mais tarde se pretenda este desideratum.
Como
não havia à superfície do solo, nos arrabaldes da Figueira, nenhuma nascente
assaz copiosa que fornecesse só por si o volume de águas necessário para o
abastecimento da vila, foi necessário o recurso à exploração subterrânea. O sítio
escolhido para a exploração deveria satisfazer, simultaneamente, às duas
condições principais: fornecer água em abundância e fornecê-la em altitude
bastante para que, chegando à Figueira com cota assaz elevada, pudesse a todo o
tempo distribuir-se pelos domicílios sem haver necessidade de a levantar. Estas
condições encontraram-nas, à perfeição, no vale do Prazo, acrescendo a
circunstância importantíssima que os trabalhos ali se poderiam estabelecer de
forma a que se desenvolvessem quase indefinidamente para o futuro, quando o
aumento da população e as crescentes necessidades do consumo deste elemento tão
precioso o exigissem. Neste caso, como sabemos, falharam os cálculos, pois
poucas décadas depois tiveram de recorrer a novas captações noutros locais.
O
relatório prossegue referindo que o vale de Tavarede era, de todos os que
descem da Serra da Boa Viagem, o que corria em mais baixo nível, cortando
transversalmente uma espessíssima série de camadas permeáveis, sendo nos seus
flancos que brota o maior número de nascentes. “A água vê-se com efeito romper
por toda a parte, e especialmente no fundo dos vales e das quebradas, uma
vegetação activa e louçã, plenamente atesta a frescura do solo”. E prossegue:
“segundo os nossos trabalhos de exploração em nível inferior ao alvéo da ribeira, é claro que as galerias que
abrirmos colherão toda a água que as camadas contiverem no maciço superior ao
plano em que eles forem estabelecidos, maciço importantíssimo, pois o relevo do
solo sobe rapidamente nos dois flancos do vale, não havendo em toda a extensão
da serra nenhuns pontos de descarga mais baixos do que este vale”.
Mais
adiante o relatório escreve “não é simplesmente o facto da existência das
nascentes à superfície do solo do vale do Prazo, nascentes aliás valiosas, a
base do conselho para esta exploração de águas: foram principalmente
considerações geológicas que firmaram esta escolha. Com efeito, além destas manifestações
exteriores, que revelam a existência de consideráveis massas de água, no
interior do solo, a garantia da permanência dessas nascentes, sobretudo quando
sejam exploradas em nível superior ao alveo da ribeira, está assegurada pela
composição íntima e estrutura do solo, que é constituído por camadas pela maior
parte muito permeáveis, sobrepondo-se do sul para o norte concordantemente, e
com fraco pendor umas às outras, e inflectindo-se do Cabo Mondego para Maiorca
em forma de bacia, da qual a Figueira ocupa o centro”. Prossegue depois: “A
exploração que propomos será por estes motivos, pois, a mais produtiva, e muito
de presumir (ou quase certo) que poderá suspender-se muito antes do limite
assinalado do projecto. Os trabalhos são além disso estabelecidos de modo que não
comprometem as explorações futuras, antes podem sucessivamente desenvolver-se
quando convier, sem que esta ampliação do fornecimento embarace nunca o
abastecimento usual. Para isso bastará abrir, pelo mesmo sistema, em nível
superior ao dos trabalhos existentes, e para montante do extremo superior da
galeria colectiva, uma rede de galerias análogas, que poderá estender-se até às
nascentes do Olho de Perdiz, onde nasce a ribeira de Tavarede, ou ainda mais
além através da serra, estabelecendo-se a ligação dos novos trabalhos com os
trabalhos antigos só depois que aqueles estejam terminados”.
O relatório continua
depois com a parte técnica das obras a realizar para as captações e transporte
da água até ao Pinhal, donde partirá a distribuição pela Figueira. Não adianta
mais transcrições. O que atrás fica escrito, chega bem para saber como era o
vale do Prazo abundante em águas que, pela ribeira de Tavarede, regavam em
profusão todas as nossas hortas e várzeas, até ir desaguar no Mondego. Durante
anos, Tavarede matou a sede à Figueira. Os projectos diziam que nunca faltaria
a água. Não foram precisos muitos anos para o contrário ser uma triste
realidade.
No vale de S. Paio
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