sexta-feira, 14 de março de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 67

   É muito dificil, para nós, seleccionar um apontamento publicado e relativo a esta peça. Por isso, e porque se refere a outros assuntos que reputamos de interesse, transcrevemos uma nota recolhida no diário ‘República’, em Novembro de 1952. Entre os muitos deslumbramentos que em mim causou a viagem aos países nórdicos, ocupa um lugar destacado a protecção do Estado e das comunas ao teatro do povo, dando à expressão o seu verdadeiro significado – artistas do povo representando para o povo. Particularmente na Finlândia, onde me apercebi com mais detalhe do problema, essa protecção ultrapassa o dever do estado para atingir as culminancias duma verdadeira consagração nacional. São às dezenas os grupos de amadores que, desde as regiões polares até Helsínquia, se dedicam, no intervalo das suas vidas de trabalho afadigado e operoso, a fornecer ao público o precioso alimento espiritual de que, só o teatro, na sua simplicidade e na sua estreita comunhão, é capaz. Não posso, é claro, pronunciar-me sobre o valimento desse teatro, pelo desconhecimento completo da língua arrevezada e difícil, mas o que posso garantir é que ouvi a artistas finlandeses as melhores referências e a afirmação de que são esses núcleos os permanentes mantenedores do prestígio dum espírito sem o qual o teatro acaba por estiolar-se! E é precisamente desses núcleos que saem os grandes artistas profissionais, para os quais, segundo parece, se não exige um exame declamatório e enfatuado…
      Por aquilo que ouvi, não é possível fracassar na Finlândia uma iniciativa deste género, a não ser por incapacidade congénita dos amadores, pois as facilidades económicas são tão grandes e o acesso aos teatros tão acentuado que, agrupados os artistas e expostas as suas pretensões, o ambiente oficial ou comunal e a compreensão pública se manifestam, não no campo das promessas, mas sim no das certezas e realidades.
      Parece-me ser este o caminho e esta a única solução. Se assim sucedesse, entre nós, é natural que o Teatro não apresentasse o aspecto confrangedor que o arrasta pelo Parque Mayer ou que as iniciativas altas e honradas de alguns homens sérios morressem desfalecidas e sem protecção. Isto no que respeita à compreensão oficial do papel dos pequenos núcleos porque, como é óbvio, o que se passa com os grupos profissionais excede todas as críticas.
      Mas vem isto a propósito de dois acontecimentos ocorridos no nosso meio artístico, para os quais chamo a atenção dos interessados e dos próprios poderes políticos.
      O primeiro é do conhecimento geral:
      A grandeza do Teatro dos Estudantes de Coimbra, dirigidos pelo saber e pelo sacrifício do professor Paulo Quintela, cuja fama ultrapassa as fronteiras e constitui grande jubilo para todos os portugueses, através da atmosfera de entusiasmo que o envolveu na sua digressão pela Alemanha, Itália e Espanha, sobretudo nos dois primeiros países, em que a cultura teatral faz parte integrante da cultura geral.
      O segundo é a arte excepcional do grupo de Tavarede, cujo “Frei Luiz de Sousa”, recentemente representado em Leiria, demonstra a que altura pode chegar a massa anónima do povo quando iluminada pelo trabalho persistente e pela humana cultura dum José Ribeiro.
      No primeiro caso há que contar, sem dúvida, com a preparação dos jovens artistas, estudantes universitários, conhecedores do ambiente e da literatura, ou, pelo menos, acessíveis à compreensão dos temas e dos personagens. É um facto a contar que não desmerece do valor e da beleza desse agrupamento de “elite”.
      Mas o segundo?
      Haverá melhor expressão de riqueza popular do que esses artistas proletários, debruçados dia a dia, nos trabalhos duros da profissão e entregues nos longos serões à “compreensão” dos seus papéis, sem cultura, alguns analfabetos e outros sabendo ler mas ilaqueados pelas dificuldades intelectuais duma rápida assimilação?
      Mesmo que tenham à sua frente um homem invulgar como José Ribeiro, seu mestre e companheiro, como desconhecer o esforço hercúleo dessa massa erguendo-se à contemplação da beleza e sabendo-a transmitir de forma a causar inveja a alguns filiados no Sindicato profissional?
      Só quem, como nós, assistiu à representação do “Frei Luiz de Sousa” pode avaliar da emoção, da verdade e da sinceridade, que esses proletários-artistas põem ao serviço duma arte, que eles tanto sentem nos recessos das suas almas de eleição, embora tocados por uma simplicidade comovedora e aliciante.
      Por aqui se aquilata a necessidade de proteger esses núcleos, tal como se pratica nos países do norte europeu. Protecção que terá de ser eficiente no aspecto das facilidades oficiais, na isenção de taxas e sobretaxas, no acesso aos teatros, na oferta de literatura especializada e na abertura de pequenos anfiteatros, onde os responsáveis e os esclarecidos exponham, em conversa fácil, os problemas da arte teatral.
      O mesmo principio deverá ser aplicado a todas as manifestações de arte do povo, sejam eles os orfeãos magníficos que possuímos e que vivem uma hora difícil e agónica, as orquestras populares e as manifestações plásticas dos nossos artistas populares e desconhecidos.
      A “carolice” não pode fazer milagres e não é justo exigir-se das bolsas particulares e do suor não compensado de meia dúzia, todo um trabalho em beneficio da Nação e, portanto, de todos nós.
      É esta uma das modalidades duma política do espírito, a que daríamos a nossa adesão se alguém se lembrasse de a efectivar.
         Quando será?

E, já agora, mais um pequeno extracto do relatório da Direcção do exercício de 1951. Vós que assististes cómoda, ou incomodamente instalados na plateia à representação do “Frei Luís de Sousa”, não podeis avaliar, e pena é que assim seja, porque se o pudesseis fazer isso significaria interesse pela vossa Sociedade e estimular-nos-ia a vossa presença amiga, não podeis avaliar, como se ia dizendo, a soma de sacrifícios, de desânimos, de estudo, de energia e trabalho enfim, despendidos na montagem desta peça inolvidável. Todos os amadores colaboraram com o seu saber e com a sua melhor boa vontade. Mas é, sem dúvida, e desnecessário seria dizê-lo porque todos vós o sabeis bem, ao dinamismo, à cultura, aos profundos conhecimentos das coisas de teatro, à superior inteligência do director cénico, que se fica devendo mais este triunfo da nossa Sociedade, delirantemente aplaudido por quantos assistiram ao Frei Luís de Sousa.
         Quem, como nós, acompanhou a evolução do que se apresentava como um sonho pelo muito que tinha de arrojado, até à admirável realidade que todos presenciastes, tem por força de admirar e avaliar o enorme trabalho levado a efeito pelo nosso director cénico. A quantidade assombrosa de correspondência trocada para recolha de elementos necessários; a probidade com que a peça foi montada e posta em cena, levando o seu escrúpulo até à observância dos mais ínfimos pormenores, causando a admiração dos próprios profissionais de teatro; o dispêndio de importâncias do seu próprio bolso para correspondência, etc., e, sobretudo, o trabalho gigantesco e exaustivo, duma persistência única, realizado como encenador, impõem-no à nossa admiração e gratidão.

Não, nem todas as associações podem representar Frei Luís de Sousa. E nenhuma, por certo, o levaria à cena com o rigor e êxito com que nós o fizemos. Para isso seria necessário que pudessem contar com um elemento tão precioso como esse Homem que todos nos orgulhamos de ter por consócio e conterrâneo. Para o senhor José da Silva Ribeiro vai todo o nosso agradecimento de directores pelos seus ensinamentos, pelos seus preciosos conselhos e pela maneira generosa como sempre colaborou connosco; e as nossas homenagens de homens que muito querem à sua terra, pelo seu grande talento.

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