sexta-feira, 7 de março de 2014

Usos e Costumes da Terra do Limonete - 10

Era uma quadra do ano que o povo de Tavarede sempre vivia com imenso agrado. Embora se não saiba desde quando, o Presépio era um espectáculo teatral que esgotava sempre as lotações das salas, mesmo ainda no tempo dos antigos ‘cardanhos’, pois há um apontamento que nos diz que, em tempos bastante distantes, e estamos a relatar um facto de 1865, se chegaram a representar seis Presépios ao mesmo tempo, o que vem confirmar aquele curioso escrito onde se refere que em Tavarede ‘as sociedades dramáticas vegetavam como tortulhos’.
No entanto, diga-se que não era só o teatro que atraía os tavaredenses. A Igreja igualmente comemorava o nascimento de Jesus com muito brilho. O principal acto religioso era a chamada ‘missa do galo’, que, abrilhantada a grande instrumental, por uma filarmónica contratada, era igualmente muito concorrida, como no ano de 1880 em que, apesar de estar ‘uma noite terrível e chuvosa’, encheu totalmente a nossa Igreja com fiéis e alguns curiosos desejosos de ouvir a actuação da Filarmónica Figueirense.
Sabemos, por exemplo, que o ‘velho’ Joaquim Águas era um fervoroso e entusiasta apreciador do Presépio, que fazia representar, com a participação de seus filhos e filhas, no teatro que havia instalado em sua casa, na Rua Direita, perto do Largo do Forno. A peça, naqueles tempos, tinha menos cenas, pelo que não preenchia totalmente o serão, o qual terminava então com uma comédia. Também encontrámos uma local, publicada na imprensa figueirense, referindo que, na noite de Natal de 1884, houve representação do Presépio mas, ‘no meio do espectáculo, abateu uma parte do soalho da casa, indo parar à loja alguns espectadores’.
No ano de 1894 um apontamento informa que “não é só n’esta cidade que a reproducção dos autos pastoris vem lembrar-nos antigas e saudosas recordações, que não esquecem nunca, e que o Nascimento do pequenino Deus é saudado pelo povo ingenuo... Em Tavarede, aldeia suburbana d’esta cidade e que é quasi um seu arrabalde, tambem o Menino Deus é festejado em dois presépios, não querendo nenhum d’elles ficar atraz na commemoração festiva que se prepara”.
Foi então que se encontrou a primeira referência à representação do ‘Auto dos Reis Magos’. Foi no teatro Bijou Tavaredense, que estava instalado no antigo teatro de Joaquim Águas. Embora no segundo volume do caderno ‘Tavarede - a terra de meus avós’ o caso já esteja contado, pela sua curiosidade vamos transcrever novamente a polémica que este espectáculo ocasionou.
“Temos gosado os differentes espectáculos que ultimamente se têm representado no theatro “Bijou Feminino”, cujo desempenho tem sido na verdade surprehendente
         O desempenho d’alguns papeis na representação dos Reis, por pessoas mal educadas… queremos dizer, por pessoas que não têm educação própria para o theatro, não nos pareceu… nem bom nem mau – antes pelo contrario, ainda que houve varias incorrecções exaggeradas, devidas com certeza à maneira como a peça s’acha escripta.
         Em todo o caso estas incorrecções foram resalvadas, devido à intelligencia dos desempenhantes, sobresahindo especialmente o papel de Rachel que foi distribuído a um desempenhante que conseguiu arrincar da plateia os mais avaporados applausos que reduplicaram com muito mais enthusiasmo quando arrincou um dos innocentes dos braços mortiféros de Luciféro que… ficou atrapalhado ao fazer d’aquella…
         Foi o melhor espectáculo de Reis que este anno se representou na Figueira, Carritos e Cova da Serpe”. (O Povo da Figueira)
         “Acabamos de ler uma correspondencia d’esta povoação para o “Povo da Figueira”, datada de 24 do corrente, que nos surpreendeu... por sabermos que n’esta pequena terra ha um rival do tão festejado Caracoles da Folha do Povo, tal é o chiste da graça avaporada com que o tal correspondente critica o espectaculo dos Reis no theatro Bijou Feminino
         Com .certeza certa que os desempenhantes eram mal educados... para o theatro; mas isso não é razão para critica, porque tambem o sr. correspondente está mal educado... para escrevinhador de correspondencias, em que a nossa lingua é torpemente assassinada, sem haver uma alma caridosa que a livre de tal verdugo, mandando-o para a Cova da Serpe, onde, com o seu fino espirito, póde representar algum papel de grande effeito, na peça de sensação - Judas... no deserto; ou então s’achar batatas para os Carritos.
         Em todo o caso, não me lembra que nenhum desempenhante arrincase coisa alguma, pois que a peça era desempenhada por pessoas do sexo feminino, que, se disseram mortiféros, conseguiram tambem justos applausos, mas não avaporados (que não sabemos o que seja, a não ser alguma subida de vapores que fazem ver as coisas d’este mundo em duplicado ou reduplicado, conforme a quantidade).
         Assim o sr. Pum (que pseudonymo tão avaporado!) com a sua intelligencia, não contente em criticar, o que certamente não viu (temos a certeza d’isso) e o que não percebe, não satisfeito em escavacar a pobre grammatica, que não tem culpa alguma da pouca intelligencia de qualquer quidem, que se arvora em critico... de si mesmo, ainda (naturalmente por estar avaporado) confunda Lucifér ou Luciféro, com o executor das ordens de Herodes, que, em vez de mandar degollar os innocentes, devia mandar cortar o pescoço a certos criticos... que nós conhecemos. Diz elle (correspondente) que viu (pelo telephone?) um desempenhante (que por sinal não estava avaporado) arrincar os mais avaporados (?) applausos que reduplicaram (por causa da avaporação) quando elle, aliás ella, arrincou um dos innocentes dos braços do capitão da guarda de Herodes a quem o sr. Pum, certamente por ignorancia, chama Lucifer! Oh! homem de Deus, olhasse-lhe para a cabeça e para os pés... a ver se assim o não confundia!
         Ora... abobora, sr. Pum.; trate d’outro officio por que esse não lhe serve; metta-se com a sua vida e deixe divertir os outros, muito embora digam calinadas; olhe para si antes de criticar os outros; ponha a mão na consciência (caso não esteja avaporada) e... durma, que isso é somno, e olhe que de pobres de espirito está cheio o reino dos ceus... e tambem Tavarede.

         Fique-se em paz”. (Gazeta da Figueira)

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