sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Operetas em Tavarede - 31

            Hino da Madrugada           

              Madrugada!                     
               Apagam-se as estrela no azul do céu
              e a alvorada
              acende os primeiros clarões, rasgando o véu,
              suavemente,
              que cobre a terra adormecida.
              Folhagens sonolentas do arvoredo
              mansamente
              despertam
              ao brando voejar do passaredo.
              Como um clarim vibrante, o melro deu sinal
              pelas campinas
              a assobiar matinas,
              e a alegre e descuidosa cotovia
              responde-lhe a sorrir: - “Bom dia!”

              Subindo,
              luzindo
              no doirado nascente, o sol aquece
              a terra friorenta, que estremece
              de incontido desejo
              ao receber na luz que vem dos céus
              a carícia do beijo
              fecundante - que é dádiva de Deus.

              Já toda a aldeia acordou!
              Raparigas alegres como cantigas,
              frescas qual água das fontes;
              velhos, que a dura vida já curvou
              e rapazes ainda erguendo as frontes,
              indif’rentes
              ao peso da sua enxada,
              - sorridentes
               caminham, alma pura e lavada,
              ao seu destino, à terra dura da encosta
              onde vive a cepa do perfumado vinho
              que conforta,
              à leira fresca onde viceja a horta,
              ao frondoso lugar de verde pinho,
              à seara aloirada onde o trigo amadura
              e promete fartura.

              Um novo dia alvorece
              na paz e na saúde do trabalho da terra.
              Há luz, há alegria, sente-se a vida pura
              em todas as belezas que a Natureza encerra.
              Da árvore frondosa e da urze do monte,
              do mísero insecto que p’lo chão rasteja
              ou com asas de luz no espaço voeja,
              do espelho dos lagos, do murmúrio da fonte,
              do cardo ressequido e da flor mais louçã,
              do doce gorgear das aves nas alturas
              e das vozes da alma das frágeis criaturas,
              ergue-se, luminoso, o hino da manhã!

              Bendito seja o Sol,
              fonte da Vida, que de luz inunda
              a Terra, e a fecunda!
              Bendita a Terra-Mãe
              que ao homem dá o pão
              e dá à abelha o mel
              e à ave o pequenino grão!
              Benditas sejam as águas
              dos ribeiros e das suaves fontes
              que, chorando suas mágoas,
              descedentam as bocas e dão a seiva à planta!
              Bendita a ave que canta
              e o paciente boi que a terra lavra!
              Bendita seja a palavra
              - Sementeira!
              Bendita a tua enxada, ó cavador,
              que sem canseira
              amanha a seara e cultiva a flor!

(Um grupo de cavadores da aldeia, enxada ao ombro, vai a caminho dos seus trabalhos)

Coro de Cavadores 
Sem ter
            canseira,
            a gente da enxada
            lá vai
            fazer
            a sementeira.

            Ao sol
            ardente,
            constante em seu labor,
            é ver
            contente
            o cavador!

            Cavar!
            cavar
            que a terra nos dá pão!

            Do vale
            à serra,
            p’la encosta subindo,
            luzindo,
            a enxada
            revolve a terra...

            Cavar!...
            Cavar
            que a terra nos dá pão!

            De inverno
            ou v’rão
            trabalha o dia inteiro,
            p’ra ter
            seu pão
            o cavador...

         Vamos continuar com as nossas recordações. Mestre José Ribeiro, também nos mostrava, em todos os seus trabalhos, alguns dos tipos e figuras mais interessantes e características. O tempo não é muito, mas recordemos, aqui, a conversa entre duas das figuras típicas da nossa aldeia, “o carreiro e o capador”.

Joaquim - D’honra! Digo-lhe isto cá de dentro! Eu quero tanto ao animal como... tenho tanta aquela aos meus bois, como se fossem meus irmãos. Ou mais ainda! Que lho digo eu.
- E tem razão, pois. Com a minha égua é a mesma coisa. Eu sou muito amigo da minha mulher, lá isso sou. Mas ainda gosto mais da égua. Mansa e segura de pernas, é minha companheira há um ror de anos e nunca me pregou uma partida. A minha mulher também não, graças a Deus... Lá isso não senhor... Mas... quando tenho capações por fora e chego a casa tarde, com um copito a mais - oh! mulher de trinta línguas! - desata-me lá num sermão que nem um padre na igreja: que não tenho juízo, que em vez de pôr arganel aos porcos devia pôr arganel a mim próprio para beber menos... - eu sei lá! E enquanto a mulher fala, fala, que nunca mais acaba, - a égua ali está muito calada, muito calada... Então eu, quando a mulher pára de falar para tomar fôlego, aproveito a pausa para lhe dizer: - Ó mulher, aprende com a égua a estar calada! - Mas isso sim!...
Joaquim - Tem razão. Os animais é como se fossem pessoas de família. Digo-lhe cá de dentro: se aquele animal me morresse, eu tinha um desgosto tão grande que até era capaz de pôr luto. O meu rico castanho! E olhe que não era por causa do dinheiro - d’honra que não era: está no Compromisso, eles pagavam. Mas os meus bois, senhor Zé da Gaita... (emendando) Desculpe, senhor José, mas é como todos o conhecem, e eu agora descuidei-me.
- Ora essa, senhor Joaquim, não tem mal. É alcunha que me ficou de pequeno... Desde que um dia apanhei uma sova do meu pai por lhe ter roubado a gaita de capador. O meu pai era capador e alveitar, como eu. Herdei-lhe a gaita e o ofício.
Joaquim - Pois sim, senhor. Isto de alcunhas... P’ra toda a gente eu sou o Joaquim do Curral, porque de pequeno me fizeram a cama no curral dos bois. Ah! Mas os meus bois! Deus me perdoe se é pecado, mas eu chego a pensar que eles são almas cristãs como a gente. Falo com eles, e eles entendem-me. Chego-lhes o pasto, e eles agradecem-me. Se estou zangado e ralho - olham p’ra mim, e aqueles olhos muito grandes e muito tristes parece que dizem: Tem paciência, Joaquim do Curral, que nós também a temos. Ainda ontem, ia o cabano a encostar-se ao toice, a ficar-se p’ra trás para arreliar o companheiro, e eu, zás! prego-lhe uma varada: “Ah! Cabano!” Ele amuou, sacudiu a canga em cima do cachaço e pareceu-me que lhe ouvi dizer: “Não sejas bruto, Joaquim do Curral”. Fiquei-me a pensar, e compreendi que o boi é que tinha razão: o bruto era eu. Por isso me dói a alma de ver o meu castanho doente. Se vocemecê não mo salva...
- Já lhe disse que lhe curo o animal. E eu sei o que digo e o que faço. Os médicos não tratam melhor as pessoas do que eu trato as bestas. E olhe que dos médicos muita gente se queixa; e de mim, nunca nenhum dos meus doentes se queixou.
Joaquim - Está bem, sim senhor. Mas olhe cá, senhor José: aquela tristeza que deu ao animal e que o não deixa comer, não será desgosto?
- Desgosto?! Porquê?
Joaquim - Por causa do carro. O animal desde que se viu com rodas de borracha caíu naquela melancolia...
- Rodas de borracha...
Joaquim - Sim, senhor. Puz borracha nas rodas do carro.
- P’ra quê?
Joaquim - P’ra quê?! Então não sabe que os carros de bois são obrigados a andar com rodas de borracha?
- Viva o progresso!
Joaquim - Qual progresso, nem qual carapuça! Uma pouca vergonha! Como se um carro de bois fosse um automóvel! Há tempo mandaram pôr luz branca e encarnada; agora foram rodas de borracha; e se calhar amanhã mandam pôr faróis na canga para fazer código, e pisca-piscas nos chavelhos dos bois para mudar de direcção...
- Para o que um boi estava guardado, ó senhor Joaquin!
Joaquim - Aros de borracha, para não se ouvirem as rodas! Qualquer dia, em vez de ferraduras, sapatos de borracha, para não se ouvirem os bois!... Não quererão mais nada de borracha?

Cega-Rega -               
Em situação encravada
            O pobre carreiro se acha...
            O carro não pode andar
            - D’honra, que não é laracha... -
            Pelas ruas a rodar
            Sem ter rodas de borracha!

            Diante duma mulher
            Quanta vez o homem se agacha...
            Para alcançar o que quer
            Vai com rodas de borracha.

            Pois o meu carro de bois
            - Esta, palavra! é de escacha! -
            Não tem ainda faróis
            Mas tem rodas de borracha!

            Em situação encravada
            etc. etc. etc.

          Os rapazes da cidade

             Usam casacos de racha;
             Elas têm mocidade
             Com postiços de borracha.

             E assim por este andar,
             Tanto apertam a tarraxa
             Que os meus bois irão calçar
             Ferraduras de borracha.

             Em situação encravada
             etc. etc. etc.

             Dizem que a civ’lização
             Assim ordena e despacha:
             - P’ra não haver confusão
             Tudo seja de borracha...

             P’ra não haver excepção
             - E ai daquele que se relaxa! -
             Carros de bois usarão
             Suas rodas com borracha.


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