sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Operetas em Tavarede - 34

         A última parte deste nosso serão, vai ser uma saudosa evocação. Sem grande conversa, recordaremos mais uns saborosos retalhos da vastíssima obra de Mestre José Ribeiro. Comecemos por três manifestações da civilização da nossa terra.

Futebol -
(Falando, dentro da música) Futebol - instituição nacional! (Cantando)

            A grande causa que excita
            E agita
            A vontade nacional,
            É o desporto da bola
            Que rebola
            E domina em Portugal!

            Um pontapé
            Faz delirar multidões...
            E certo é
            Que electriza os corações.
            Nossos rapazes
            São jogadores sem rival!
            Os nossos azes
            São a glória nacional!

Fado
(Falando, dentro da música) Fado - canção nacional! (Cantando)

           Não há voz igual à minha
           Pois do Fado sou rainha!
           Todos me beijam a mão...
            Fui a Londres e a Paris,
            Ao Brasil e aonde quis...
            Sou a alma da Nação! 
                (bis, três últimos versos)

Teatro – 
(Falando, dentro da música) Teatro - miséria nacional! (recita com a música)

            Porque sou velho e já cansado venho
            Duma longa jornada, milenária,
            Passando vão os novos adiante,
            E deixam-me p’ra trás, como a um pária...

            Glorioso Teatro que já fui,
            Tive riqueza e beleza também.
            Se me perguntam hoje quem eu sou,
            Respondo erguendo o meu bordão: - Ninguém!

         Setembro era o mês das vindimas. Com que alegria ranchos de vindimadores e vindimadeiras, cestos e tesouras nas mãos, iam manhã cedo, caminho do Saltadouro acima até às vinhas, onde os cachos de uvas madurinhos, que carregavam as cepas, breve seriam cortados pelas mãos ágeis daquela boa gente. Em cima do carro de bois, a enorme dorna breve se enchia.

Uvas -        
Uvas são beijos que o Sol,
            Com seu poder criador,
            Deixou caír sobre a Terra
            Para dar vida ao Amor.

            Uvas doces, perfumadas,
            São benditas com razão:
            Dão frescura a quem tem sede
            E calor ao coração.

Coro -   
As uvas cheirosas
            Nas moças airosas
            Desafiam beijos...
            De a vida levar
            A rir e a cantar
            Acendem desejos.

            Rubis escaldantes,
            Topázios brilhantes
            De raro fulgor,
            Provai sem temer,
            Mordei com prazer
            - São bagos de Amor!

Uvas
Fruto roxo ou fruto loiro,
            As uvas de Frei Manuel
            São bagos de luz e oiro
            Com a doçura do mel.

             Duas capas bem famosas
             Dão calor ao nosso vinho:
             São as capas milagrosas
             De Noé e S. Martinho.

Coro das Uvas
As uvas cheirosas
            etc. etc. etc.

         Falámos na estrada do Saltadouro. E porque não recordar, também, o então tão agradável vale do Sampaio. Desde o Prazo até Tavarede, era um verdadeiro encanto... As claras águas do ribeiro, que desciam mansamente até cá abaixo, eram a força poderosa que fazua rodar as enormes rodas das azenhas. Mas... onde está agora o lugar das Azenhas e as suas azenhas cantantes?

Lugar das Azenhas -         
Sou um pobre abandonado
            das filhas, que muito amei!
            Azenhas... foram-se embora
             em má hora,
             mas o nome conservei.

            Azenhas é o meu nome velhinho,
            e não sei por que pecado
            as azenhas me fugiram
            e assim me deixaram pobrezinho...
            abalaram, sucumbiram,
            e eu Azenhas continuo a ser chamado,
            - mas sem azenhas já, coitado!
            Sou Azenhas, o lugar
            onde azenhas havia a trabalhar.
            As azenhas, minhas filhas adoradas
            é que deram o nome ao pai.
            Tão longe que isso já vai!...
            Não moem águas passadas...

            Agora sou em estado de desgraça!
            Sumiu-se a graça
            das rodas sempre a girar
             e a cantar
            com a água saltitante,
            de cubo em cubo passando,
            sempre a rir,
            a descer e a subir
            num vai-vem que não tem fim.
            Ai! pobre de mim!
            Sou Azenhas  sem as ter...
            Tenho-as visto morrer
            sem que Sampaio acuda
            e dê ajuda
            a esta desolação...
            Foram-me roubando a água
            que era do Prazo fartura...
            A mágoa, a desventura
             tomaram meu coração.
            Oh! poéticas azenhas farfalhantes,
             pingando gotas de prata cristalina
             sobre avencas viçosas, verdejantes,
             em fundo musical, suave e brando
             ao irrequieto bando
             da orquestra divina
             de melros, rouxinóis e cotovias
            em concertos magistrais todos os dias...

             Lá de cima, dos Monteiros, a água vinha
             descendo, mansinha,
             alimentar outra azenha irmã
              sua vizinha.
             E a mota seguindo, sem se desviar,
             a água vinha brincar,
             rebrilhando ao oiro da manhã
              na azenha do Domingos, o dos bois...
              Depois...
              Ai! há quantos anos!...
              era a azenha dos Canos,
             até que, infatigavelmente,
             a água finalmente
             ia mover na Várzea a azenha derradeira,
             e seguia caminho da Figueira...

             Ao meu lugar já eu ouvi chamar
             Vale de Sampaio.
             Ah! Não! Eu, deixar-me roubar?
             Nessa não caio!
             Eu sempre serei o Lugar das Azenhas
               - dmbora, pobre de ti! já as não tenhas.

De quando em vez, lá vinha uma bicadinha. Das últimas que escreveu, escolhemos esta.- O Sr. Simplício e o Zé Sem-Mais-Nada -

- São os papéis que eu dei à tua Mãe ontém à noite.
O Filho - Já sei, estão aqui.
- Trá-los cá, e avia-te, a ver se ainda apanho o Sr. Simplício.
O Filho -  São estes. E salvei-os a tempo.
- Salvaste-os?...
O Filho - É que a Mãe ia metê-los no lume.
- Essa agora!...
O Filho - Como o Pai, depois de ter ouvido o homem que falou na Televisão, esteve tanto tempo de volta dos papéis, a Mãe pensou que o Pai tinha decorado tudo e que já não precisava deles.
- Decorado...? Quanto mais li menos entendi.
O Filho - O homem da Televisão disse que era muito fácil de entender.
- E tu, entendeste?
O Filho - Não senhor.
- Também não sei p’ra que raio andas tu no Liceu... Bem... Vou procurar o Sr. Simplício p’ra me tirar desta confusão. O diabo é se já não o apanho. (Encontrando Simplício) Eu tinha ido procurá-lo, porque a gente, já se vê, quando precisa de ajuda tem de ir bater à porta de quem sabe. Desculpe incomodá-lo aqui mesmo...
Simplício - Ora essa, não incomoda nada. Ainda bem que me encontrou aqui, porque eu em casa é raro apanharem-me. Então de que se trata?
- É por causa daquilo que me disse para ver na Televisão, onde um senhor ia explicar tudo muito bem. O tal Imposto...
Simplício - Ah! lembro-me agora. E diga-me senhor José... Desculpe, mas não sei o seu nome completo.
- Zé - sem mais nada.
Simplício - Muito bem. E então, entendeu, não é verdade? Foi tudo muito bem explicado.
- Ah! Sim senhor, tudo ali muito bem explicado, tim-tim por tim-tim. Olhe que aquele senhor, para saber assim dizer tanta coisa...
Simplício - E o senhor José entendeu tudo, não é verdade?
- Não senhor, não entendi nada. Isto é, eu já tinha umas luzes, pelo que o senhor Simplício me tinha dito na véspera. Mas agora... apagaram-se as luzes e fiquei mesmo às escuras. De forma que vim à sua procura para me tirar daquela complicação, e tive a sorte de o encontrar aqui no caminho. Eu trazia os papéis...
Simplício -  Não senhor, não é complicação nenhuma. Foi tudo simplificado. Quer ver? Eu explico-lhe e o sr. José fica sabendo tudo.
- Muito lhe agradeço.
Simplício -  Isto é a declaração modelo um. É a declaração para a secção A - pessoas singulares.
- Não é para mim, pois não?
Simplício - É para si, pois claro.
- Eu sou singular? Só agora o sei. Bem diz o ditado: aprender até morrer.
Simplício - É singular, porque é sòzinho.
- Mas eu não sou sòzinho, tenho mulher e filhos...
Simplício - Sim, mas é singular porque não é uma identidade colectiva, uma sociedade...
- Já estou a ficar atrapalhado.
Simplício - Não se preocupe. Isto é muito simples. Vai ver como é simples. Mas antes de preencher a declaração convém ler as instruções. Cá estão. Aqui está tudo o que o contribuinte tem a fazer. Muito simples, tudo simplificado.
- Pois é, senhor Simplício, mas um papel tão grande é para meter medo a muita gente.
Simplício - Nem por isso. São só oito páginas. (dobra e desdobra) Lendo isto fica-se logo a saber tudo. Oiça: Eu digo-lhe só os títulos dos capítulos; depois o senhor José lê e fica apto a preencher a declaração modelo 1. Ora oiça: I - Quem deve apresentar a declaração; II - Quando deve ser apresentada a declaração; III - Onde deve ser apresentada a declaração; IV - Categorias de rendimentos; V - Como obter os elementos para preencher a declaração; VI - Rendimentos não determinados; VII - Deduções a efectuar; VIII - Notas sobre o preenchimento da declaração. Aqui está. Tudo muito simples, tudo simplificado.
- Estou a ver, senhor Simplício.
Simplício - Lidas estas instruções - pronto, está habilitado a preencher a declaração. A declaração tem quadros, quadro 1, quadro 2, por aí fora até ao quadro 24. Cada quadro tem posições, os itens, que são uns quadradinhos com os números 1, 2, 3, por aí fora.
- Tudo simplificado, senhor Simplício.
Simplício -  E os quadros ainda têm linhas e alíneas, para ninguém se enganar. A declaração tem três anexos... aqui é que se fazem as contas...
- (interrompendo) Para ver em que posição fico. (áparte) De cócoras.
Simplício - O anexo 1 está dividido em quadros: quadro 1, quadro 2, quadro 3, por aí fora até ao 10; os quadros têm posições: posição 1, posição 2, por aí fora até à posição 63.
- Tanta posição! Como há-de a gente saber em que posição fica?
Simplício - Nada mais simples. Já vimos as instruções, consultámos o modelo 1, os anexos, e agora procuram-se os quadros, as posições, as linhas, as alíneas, a tabela simplificada, as taxas, os escalões, as deduções. Inscrevem-se os rendimentos, os encargos, as colectas, soma, subtrai, multiplica e assim sucessivamente. Vê senhor José?
- Muito simples, muito simplificado, Senhor Simplício.
Simplício - Em chegando ao quadro 8 encontra o resultado com as posições seguintes: 34 = 35; 35 x 36 = 37; 37 - 38 = 39 e por aí fora até que acha 52 = 33; 53 + 54 = 55. E pronto, é isso que tem a pagar. Como vê, tudo muito simples.
- Tudo muito simplificado. Em todo o caso, tenho medo de me perder nessa simplificação tão complicada. De modos que tenho estado a ouvi-lo, senhor Simplício, e a pensar que o meu rapaz, que está a acabar o Liceu e quer ser médico, em vez de ir p’rá Medicina o melhor é mandá-lo para isso das Económicas... Sempre é bom ter em casa uma pessoa que saiba pôr-se nas posições e linhas e quadros e alíneas e capítulos e anexos e instruções e tabelas e percentagens e declarações e não sei que mais de toda essa simplificação tão complicada. Que me diz, senhor Simplício?
Simplício - Mas está tudo tão simplificado... Não precisa, senhor José. Boa tarde. (sai)

-                        
Que coisa tão complicada
            É a simplificação...
            Não me chega a tabuada
            P’ró quadro e p’rá posição...
            Sinto a cabeça arrasada 
            Com tanta complicação!
            Vai à frente ao cinquenta,
            Volta atrás ao trinta e três...
            Vinte e quatro mais quarenta,
            Deduz e soma outra vez...
            A posição é sessenta
           E a linha vinte e dois...
           Aqui baixa, ali aumenta
           E a soma vem depois.

           Que coisa tão complicada
           etc. etc. etc.

           Vira e torna a virar (executa) 
           O papel das Instruções
           P’ra escolher as posições
           No quadro a utilizar.
           E sem haver mais cantiga
           Agora é que vou pagar...
           Não me posso demorar...
           Já sinto dores de barriga...

         Ora, pobrete mas alegrete, nunca o nosso povo perdia a oportunidade de um alegre bailarico. Tiveram fama as festas ao S. João. As cavalhadas de Tavarede eram as mais apreciadas. E deram, até, causa a situações bem curiosas, como aquela em que o senhor prior, no ano de 1889, a mando do senhor Bispo, recusou entregar as bandeiras benzidas para as cavalhadas. Grande problema! Cavalhadas sem bandeiras podia lá ser! Como arranjar outras? E, demais, benzidas? Do que haviam de pensar… Arranjavam duas bandeiras novas, levavam-nas escondidas para a Igreja e quando, na missa de domingo, o senhor prior desse a benção final, erguiam as bandeiras e aí estavam elas benzidas! Dito e feito. E ainda não foi dessa vez que as cavalhadas se realizaram sem as bandeiras... E no final lá houve o costumado bailarico.

Rapariga -                    
P'rá festa de S. João
            Negou o padre a bandeira.
            Pois vamos todos bailar
           Ao redor desta fogueira.

Rapaz -     
Ao redor desta fogueira
            Cachopa, toma sentido,
            Quero dar-te quatro beijos
            Em troca dum prometido.

Todos -  
Ai meu São João,
            Meu São Joãozinho,
            Vem ver-me dançar
            C’o meu amorzinho...

            São doces seus beijos,
            Quentes seus abraços...
            Quem dera viver
            Sempre nos seus braços.

Rapariga
São João, meu São João,
            Dá-me noivo p’ra casar...
            E irei ajoelhar-me
            Diante do teu altar!

Rapaz -      
Diante do teu altar 
Cachopa, muito a preceito
            Quero eu rezar também
            No altar desse teu peito.

Todos -   
Ai meu São João,
            etc. etc. etc.
  
         Recordações... Recordações e nada mais... A velha e pequena aldeia cantada em todas aquelas revistas e fantasias que, ao longo de dezenas de anos, desfilaram no nosso palco, já bem pouco tem do seu passado... Tudo se modificou. Naquelas terras, esventradas pela enxada do cavador para delas arrancar os frutos benditos da sua manutenção, já não se vêem as tenras couves, as frescas alfaces. Em seu lugar começaram a surgir enormes urbanizações. E daquelas que escaparam até agora, grande parte estão ao abandono. Tavarede já não tem cavadores!... Pouco resta. Aquele jardim que era a terra do limonete, com canteiros de flores por toda a parte, já não se avista. Ai, como seria difícil, até, arranjar flores fresquinhas e garridas para enfeitar os lindos potes do rancho 1º de Maio!
E o limonete? Pouco, muito pouco. Agora, as noites luarentas do verão já não têm o ar perfumado com o seu delicado aroma. Mas, enfim, resignemo-nos. É o progresso!... E tenhamos uma certeza. Com ou sem flores, com ou sem limonete, enquanto houver um tavaredense a nossa terra será sempre recordada e cantada como a terra do limonete.

Limonete -             
Limonete! Eu sou o rei  
Da aldeia tavaredense!
            O nome à terra eu o dei!
            Essa glória me pertence.
            Embora velho par’cendo
            O meu tronco é sempre novo,
            Pois a raiz vem do povo:
            Vigoroso vou crescendo.

Ramos do Limonete    
A seiva, meu pão e vinho,
            Dá-me em ramos os meus braços,
            Que se estendem como abraços
            Ao muro tosco e velhinho.

Folhas do limonete     
 E vêm folhas viçosas,
             Verdes, esguias, cheirosas,
            Dar alegria e frescor
             Ao jardim do cavador.

Flores do limonete         
Então, nas pontas franzinas
            Dos meus ramos verdejantes
            Despontam flor’s pequeninas
            Como estrelas cintilantes.

Coro   
- Limonete!
            Rústica planta plebeia
            Que na nossa terra cresce!
            - Limonete!
            Por toda a parte floresce
            E dá cheiro à nossa aldeia...

            - Limonete!
            De tão viçosa verdura,
            A Tavarede dás graça,
            - Limonete!
            Dás alegria e frescura
            E perfumas a quem passa...
            - Limonete!
            - Limonete...

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