sábado, 4 de outubro de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 96

         E mais uma vez Molière teve uma peça sua em cena. Aqui deixamos um comentário. Molière voltou a Tavarede e parece-nos que em boa hora!
         A noite estava muito fria e chuviscosa, e desaconselhada numa sala sem aquecimento. Contra isso, além do agasalho, sempre pouco e de alguns rebuçados, levava o gosto de ver os amadores de Tavarede e Molière.
         Valeria... entretanto, o risco? Porque, desta vez, havia mesmo risco... Ia levar meu filho ao teatro; era a primeira vez que tal acontecia: como iria reagir ele, nos poucos anos que ainda tem?
         Os primeiros momentos aumentaram as minhas dúvidas: o mobiliário pareceu-me pobre, desirmanado como não é uso em Tavarede; João de Oliveira, um dos melhores elementos do grupo, pareceu-me suportar com dificuldade um papel que lhe não quadraria bem; José Medina, sempre cheio de brio e de coragem – nesse esforço de aplicação, acho-o comparável só a Maria Inês -, não conseguia também imprimir a necessária convicção ao papel que lhe competia; e Amilcar Vitorino, num criado a favor do “jovem enamorado”, não possui ainda, jovem como é, nem voz nem postura própria, no palco...
         A pouco e pouco, porém, as coisas entraram de encaminhar-se. E, ao longo do tempo, João Cascão e Violinda sempre, e João Medina com bastante frequência, tomaram conta da situação: a posição difícil dos outros foi-se esbatendo; e o palco entrou a encher-se de alegria e força bastantes para suportar uma que outra crise, como a da voz suave, mas cheia de monotonia, de Alice Lontro.
         O espectáculo merece, pois, nota positiva. Pessoal, mas sentida: o meu filho seguiu sempre atento o desenrolar da peça, compreendeu-a, riu sem reticências nos melhores momentos cómicos e ainda hoje frequentemente os evoca. De quanto não estará servindo, aos Tavaredenses, a reflexão que têm feito sobre Molière?...
         E a notícia de que estão no fim as representações do “Avarento”, não pode deixar de causar-me pena. Quando tanto se fala em Cultura, é de lamentar que espectáculos como este que Tavarede tem oferecido a todos, não sejam vistos nem apreciados ao menos por uma maioria de estudantes: seriam o melhor complemento de muitas aulas, sobretudo de História e Literatura. Para quando o movimento em tal sentido?

         Sobre esta peça, recordamos que o tradutor da mesma, o ilustre vulto do teatro amador dos Estudantes de Coimbra, Professor Dr. Paulo Quintela, veio propositadamente assistir a um espectáculo. Se o actor faz o espectáculo, o público faz o actor. É assim no sentido do melhor, como no sentido do pior. Isso mesmo esteve à prova no sábado passado, na sala de espectáculos da Sociedade de Instrução Tavaredense.
         Voltámos a Tavarede. Não iamos, propriamente, ver Molière, que já ali nos fora dado semanas antes; iamos ver os Tavaredenses, estar um pouco com eles, no acto do seu encontro com quem lhes fornecera uma versão em cena. Iamos, portanto, no melhor estado de espírito: sobre o espectáculo, já prestáramos as provas, fracas mas bem intencionadas, que haviamos de prestar, quando aqui mesmo, em tempo nos referimos a esta representação de “O Avarento”; desobrigados disso, apenas queriamos fazer companhia aos Tavaredenses, dar-lhes a nossa parte na estima que se lhes deve, pelo quanto de bom têm feito, através do Teatro, pela sua terra e pela Figueira.
         Bem mal avisados iamos, afinal! Porque o nosso espírito crítico foi outra vez provocado, impondo este regresso...
         O actor faz o espectáculo; o público faz o actor...
         Representar deve ser sempre um acto sério, para os amadores de Tavarede; mas representar diante do mestre de Teatro Paulo Quintela, era coisa bem mais grave: imprimia ao acto uma espécie de solenidade...
         Terão sentido isto os Tavaredenses: sentados nos balcões, longe do palco, bem notámos que andava no ar, enchendo a sala, a atmosfera tensa de um dia de exame...
         E a prova foi positiva! As figuras gradas não deixaram de o ser e as mais humildes generosamente deram o melhor de si; certas posições no palco ganharam um pouco de à-vontade, algumas vozes adquiriram naturalidade maior, e a representação subiu toda. Um tal progresso não se deve, seguramente, apenas a um maior número de ensaios.
         Mas o espectáculo desta vez, não findou com o avarento virando costas à vida, dando ao mundo o seu testamento negativo. Talvez determinado pelas palavras com que José Ribeiro abriu a representação, talvez também por esta mesma, e sem dúvida pela chamada que no final lhe foi feita, Paulo Quintela foi ao palco. E deu uma lição.
         As suas profundas raízes no povo, a sua completa escola de teatro, a sua cultura verdadeira, a sua vivência de professor, tudo ali se juntou, para uma lição inteira, com exposição e crítica, com aplauso e apelo.
         Nós, que sabemos tão bem quanto valem estas coisas, estamos certos de que as palavras do Prof. Doutor Paulo Quintela foram o melhor prémio para os Tavaredenses, para José Ribeiro, para os admiradores fiéis do esforço pelo Teatro da SIT, e, até, para alguns que naquela noite ali estiveram só por dever social.
         Num dos intervalos do espectáculo, foram oferecidas lindas flores às Exmas. Esposa e Filha do Prof. Paulo Quintela.
         Após o espectáculo, no salão nobre da Sociedade, realizou-se um beberete, durante o qual usaram da palavra os srs. António Lopes, presidente da Direcção, o Doutor Paulo Quintela e José Ribeiro. Nesse encontro, além dos corpos dirigentes da agremiação, dos artistas amadores e de amigos e familiares do ilustre visitante, lembramo-nos de ter visto os srs. dr. Artur Beja e Esposa, banqueiro Jerónimo Pais e esposa, gravador Moreira Júnior e Esposa, dr. Adelino Mesquita, reitor do Seminário, industrial Freitas Lopes e arquitecto Isaias Cardoso.

         E é também imprescindivel a transcrição de uma nota, escrita por Mestre José Ribeiro, sobre a situação da cultura na Figueira. _ Vocês atordoam-me logo com o primeiro quesito: “Como situa o actual panorama cultural da Figueira? Porquê? Soluções”.
         Certamente vos enganou algum Frei Manuel de Santa Clara, guiando-vos a Tavarede: já aqui não mora aquele D. Francisco de Mendanha, meu vizinho, senhor de larga cultura nas filosofias e que falava e escrevia o italiano e o francês tão bem como o português...
         Cortando cerce a questão: - não me julgo capaz de responder ao quesito formulado. Tentando fazê-lo, sinto-me emaranhado em confusões. Primeiramente, teria de me determinar sobre o que deve entender-se por panorama cultural. Um panorama cultural não será um conjunto de vários aspectos de cultura? Uma alta cultura científica pode não o ser nos domínios da arte; um grande artista plástico, ou músico, ou bailarino, com larga cultura nos domínios restritos da sua Arte, pode desconhecer a cultura científica (digo que pode, não digo que deve); um consagrado escritor, um romancista de génio, podem ser alheios à cultura musical; um grande nome no desporto pode ser glória nacional sem deixar de ser analfabeto...
         Mas se bem interpreto o vosso pensamento, por panorama cultural deve entender-se um conjunto de actividades nos domínios do espírito, aquele conjunto de manifestações intelectuais e artísticas que constituem o que se chama civilização. (Cuidado que também nos civilizados pode haver ausência de cultura...). Sendo assim, responderei que o panorama cultural da Figueira não é brilhante, muito pelo contrário. Digo isto sem esquecer alguns esforços e tentativas que não me canso de aplaudir e convém intensificar: conferências, exposições, concertos musicais, espectáculos de bailado e de teatro, etc.
         ...de teatro.
         Ou muito me engano, ou foi o teatro que vos lembrou Tavarede. Não vejo outro motivo que justifique a minha chamada ao vosso inquérito.
         No que respeita a teatro, andamos realmente muito por baixo. Pode dizer-se que o nível desceu bastante. Não me refiro à qualidade do teatro que se representa, mas à quantidade do público que vê teatro. Há anos atrás, uma Companhia de declamação que viesse à Figueira tinha garantidas duas e até três casas cheias por assinatura, e ainda uma extraordinária. Hoje... com um só espectáculo, a casa fica vazia. As peças não tratam problemas actuais? Os assuntos e a técnica são as do teatro burguês? Desculpas de mau pagador... Peças actuais nos assuntos e arrojadíssimas na técnica e na encenação – ficam às moscas. Ainda não há muito aí esteve uma Companhia com Pirandello: 80 pessoas perdidas, afundadas no vazio dum barracão que levaria mil. E com amadores? Se se não impingem os bilhetes com a circularzinha a pedir aceitação – o público não vai. Uma nossa associação de raiz bem popular e com uma enorme e entusiástica e orgulhosa massa associativa, quis ter Molière na sua festa de anos; e Molière foi-se embora envergonhado com a vergonha de lhe terem virado as costas, deixando-o em cena a fazer rir... as cadeiras vazias.
         O povo foi chamado e levado para outras manifestações culturais. Que o desporto, e portanto o futebol, também entra no panorama cultural. Neste aspecto a Figueira subiu bastante. Já nem lhe faltam cenas de tiros no campo para atingir categoria internacional. No folclore já lá chegámos – a Figueira é internacional (que Lopes Graça nos acuda!)...
         A abundância de campos de jogos confrontada com a míngua de teatros define uma orientação, marca bem uma preferência, não é assim? “O teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há” – disse Garrett. (Recomendem ao tipógrafo que empregue caixa alta – que os grafadores modernos me desculpem a caturrice – porque eu não me resigno a escrever Garrett com o mesmo g minúsculo com que escrevi grafadores).
         Mas... vamos a ser francos! Não vos parece que o programa cultural da Figueira não o é apenas da Figueira, porque é o panorama geral do país? As mesmas deficiências e desvios que notamos no nosso concelho vêem-se por toda a parte. (Digo concelho, supondo que Vocês, quando dizem Figueira, não pensam apenas na cidade). É verdade que noutras terras há manifestações de arte e de cultura (cá estou eu sem querer a fazer divisões) em que a Figueira se fica muito atrás – e é isto que dói à nossa prosápia bairrista... Por exemplo: a Figueira não tem um teatro. O Peninsular não satisfaz e o Parque é uma vergonha. Quando é que o vosso jornal desencadeia a corajosa campanha meritória que faça derrubar o barracão hediondo que há tantos anos aguarda camartelo?
         Pedem Vocês que eu indique soluções para o panorama cultural! Coisa complexa, que excede as minhas possibilidades. Porque, quanto a mim, o panorama cultural engloba problemas que têm a sua base num problema mais amplo – o da educação. Sim – a educação! Esse é que é o grande, o fundamental problema. Tudo o mais vem daí.
         ... Se as entidades oficiais deveriam debruçar-se...
         Claro. Se o não fizerem não cumprem a sua função. E não apenas as autarquias locais, que o problema não é local, é nacional. Mas cuidado com o debruçar. Debruçar sem perder o equilíbrio, para não caírem, porque se caem, esmagam-nos. Como tem acontecido. Os resultados estão à vista. Aqui, e só no problema do teatro, poderia eu desfiar um longo rosário. Iríamos longe, não digo no tempo... mas no espaço. O silêncio é de ouro, diz o ditado. Eu sinto que é de chumbo.
         Restringindo-me ao panorama cultural da Figueira, penso que a Câmara Municipal, a Comissão de Turismo, as Juntas de Freguesia (coitadas dalgumas, que não têm verbas sequer para tapar os buracos dum caminho) alguma coisa podem e devem fazer, dando incentivo a apoio material a certos empreendimentos susceptíveis de influírem na melhoria do nível cultural do nosso povo; e o mesmo direi dos clubes desportivos, das filarmónicas, das colectividades que têm ou podiam e deviam ter grupos de teatro.
         Que se tem feito neste capítulo?...
         Acode-me agora à lembrança a tão bela e patriótica “Campanha Vicentina”. Fê-la um grande poeta, o mesmo que com enérgica e expressiva palavra, aqui irreproduzível, definiu o estado patológico da alma nacional. Pois Afonso Lopes Vieira conta-nos na sua “Campanha Vicentina” que numa das visitas ao grande pintor Columbano o encontrou a pintar. E enquanto o artista-pintor ia pintando, o artista-poeta desabafava numa elegia sobre os males de Portugal. O artista-pintor continuava a pintar... E o artista-poeta longamente carpiu, chorou e lamentou o abandono das crianças, a tortura dos animais, o estrago das paisagens, a desonra dos monumentos, o desprezo da linguagem... Columbano voltou-se para o poeta, e com a paleta e os pincéis na mão, respondeu: - “Pois eu, por mim, não posso fazer mais”. E continuou a pintar.
         Também eu não posso fazer mais. Mas eu não passo de pilriteiro.
         Só posso dar pilritos.

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