quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Tavarede - Um pouco da sua história

     Ao dar uma volta por antigos apontamentos, gravados em antigas disquetes, tenho encontrado muita coisa sobre a minha antiga terra. Em 1997 fui, atendendo um pedido de pessoa amiga, conversar um pouco à escola do Senhor da Arieira. Como nunca fui capaz de falar de improviso, escrevi um bocado sobre o que sabia da história de Tavarede. Se não interessar, o que julgo mais provável, ignorem esta conversa...

  Se fossem uns anitos mais novos, começaria a nossa conversa sobre Tavarede da seguinte maneira:
         “Era uma vez uma aldeia pequenina, muito linda e perfumada, que ficava situada perto da costa do mar e que em tempos muito antigos, ainda antes de haver reis em Portugal, já era uma terra muito importante...”
         E, na verdade, a história de Tavarede presta-se bastante a ser assemelhada a um daqueles contos de fadas de que tanto gostávamos de ouvir quando eramos pequeninos. Bastará dizer que até tem uma lenda, uma linda lenda, aliás, em que aparecem cavaleiros andantes e mouras encantadas, tendo uma delas, depois de quebrado o encantamento, sido levada para uma “terra aprazível, rica de plantas aromáticas, de cheiro rústico e agradável, persistente e suave...” Era, nada mais nada menos, do que a nossa terra do limonete. (Por várias vezes já referi que esta 'lenda' foi fantasiada por Mestre José Ribeiro na sua peça 'Terra do Limonete')
         Mas isso seria para os mais pequeninos. Para vocês, a verdade da história da nossa terra já terá de ser contada de uma forma realista, tal qual ela aconteceu e como, pelo menos até agora, se conseguiu apurar desde os tempos mais antigos.
         A primeira vez que, em documento oficial, aparece o nome de Tavarede, é numa doação feita, em 1092, a um poderoso fidalgo beirão, de nome João Gondezendis, do lugar de S. Martinho de Tavarede.
         Tem muita curiosidade o facto desta doação, feita por D. Elvira e seu marido, então governador da cidade de Coimbra, falar na nossa terra dizendo: “concedemos-te na mesma já mencionada vila de S. Martinho todos os que outrora ali recebeu Cidel Paiz do Conde D. Sesnando, que Deus tenha, e estão situados no território de Montemor para o lado da praia ocidental”.
         Recordando, um pouco, a nossa história, lembremos que a península Ibérica, no ano de 711, foi invadida pelos muçulmanos ou mouros. Os cristãos refugiaram-se nas serranias do norte e do noroeste da península donde, logo que reorganizados, iniciaram lentamente a reconquista do território invadido, a qual, como sabemos, só foi totalmente conseguida já no século XIV.
         A cidade de Coimbra, importantíssima pela vasta área que dominava e pela relativa proximidade do mar, foi reconquistada aos mouros por Fernando I, o Magno, rei de Leão e Castela, no ano de 1064.
         À medida que os mouros iam recuando no terreno, iam destruindo tudo quanto eram obrigados a deixar para trás. Não sendo cristãos, as igrejas e os templos eram os principais alvos da sua fúria destruídora.
         Assim aconteceu nesta nossa região, depois da tomada de Coimbra. Nomeado governador da cidade D. Sisnando, que passou, então, a usar o título de conde, terá de imediato este fidalgo iniciado o repovoamento e reconstrução dos lugares e vilas nos territórios entretanto reconquistados.
         Para Tavarede, ou melhor dizendo, para o lugar de S. Martinho da vila de Tavarede, nomeou Cidel Paiz, de quem pouco se sabe, mas que terá sido, com toda a certeza, o repovoador e reconstrutor da nossa terra.
         Após a morte do Conde D. Sisnando, toda esta região terá passado à posse de sua filha, a já referida D. Elvira que, como vimos, a doou a João Gondezendis.

         * * * * *

         Antes de continuarmos com a nossa história, vamos recuar um pouco no tempo.
         Sabemos que antes da conquista muçulmana Tavarede era habitado por um povo cristão, talvez lusitanos. Mas... e anteriormente?
         Ainda se não sabe qual o origem da nossa terra. Há três ou quatro séculos, foram encontrados no então edifício da Câmara de Tavarede, uns pergaminhos que se não conseguiram ler, pelos seus caracteres estranhos e bastante sumidos, e que se encontram na Torre do Tombo, em Lisboa. Talvez que, quando decifrados, se faça finalmente luz sobre as origens da povoação de Tavarede.
         Também do seu nome não há a certeza de que derive. Conhecem-se várias versões. Para nós, a mais convincente e que achamos mais lógica, é a seguinte:
         “... uma das características da região tavaredense são os numerosos outeiros que, nos tempos antigos, eram os limites naturais da posse dos terrenos, e que, em liguagem hebraica, se chamavam TAVAH. Por outro lado, sabe-se que toda estava vasta zona por onde agora se estendem as várzeas, eram regiões pantanosas e insalubres. Admitindo, como já se disse, que Tavarede tivesse sido dominada pelos lusitanos e, após a derrota destes, pelos romanos, é natural que para darem o nome a esta região tivessem conservado o radical semita TAVAH e lhe acrescentassem a desinência latina ETUM que, combinadas, teriam levado a TAVAREDE. Aquela desinência é um substantivo latino, comum, que designa grande porção de seres ou objectos idênticos, como arvoredo, vinhedo, mosquedo, etc.
         No nosso caso diremos que a palavra TAVAREDE é composta pelo radical TAVAH (outeiro ou limite) e pela desinência ETUM (mosquedo, absolutamente natural em terreno pantanoso).

*****

         Retomemos a nossa história.
         Os bens doados a João Gondezendis, voltariam, pela sua morte, a fazer parte integrante dos bens pertencentes ao entretanto fundado Condado Portucalense, passando, depois, para a coroa portuguesa, logo que o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, conquistou a independência.
         Seu filho e herdeiro, D. Sancho I, a quem a história deu o nome de “Povoador”, procurou continuar a obra já anteriormente começada pelo Conde D. Sisnando, repovoando e fixando as populações nos seus vastos domínios.
         A igreja teve um papel importantíssimo nesta tarefa. As várias ordens religiosas, a quem o rei fazia grandes concessões, instalavam-se em vastas zonas e, pelos seus conhecimentos, desenvolveram variadíssimas actividades próprias à fixação das populações.
         Toda esta enorme zona do baixo Mondego foi doada à Sé de Coimbra. No nosso caso, foi aquele rei D. Sancho I e sua mulher, a rainha D. Dulce, quem fez a doação do lugar de S. Martinho de Tavarede à igreja de Santa Maria de Coimbra, ao mesmo tempo que, coutando-a, lhe dava categoria para estabalecer as suas justiças.

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         Tudo correu bem durante muitos e muitos anos.
         O Cabido da Sé de Coimbra, como donatário de Tavarede, foi vendendo ou dando de arrendamento as várias parcelas de terreno dos seus domínios, para serem cultivados e explorados.
         A agricultura sempre foi a principal actividade em Tavarede. Amanhando as suas terras, compradas e de que pagavam um fôro anual, ou arrendadas, e a renda normal era o chamado dízimo (décima parte da colheita), os lavradores tiravam das mesmas o seu sustento e de suas famílias, vendendo o excedente, normalmente nas feiras que periodicamente se realizavam.
         É claro que Tavarede sempre teve outras actividades importantes, muitas ligadas à agricultura, como, por exemplo, a pastorícia, para produção e venda de leite. A saliência, no entanto, e naqueles tempos recuados, vai para uma outra: a extracção do sal. Havia, então, muitas marinhas de sal na nossa terra.
         Toda aquela zona da Várzea, que em tempos mais recuados foi pantanosa, era banhada por um braço do rio Mondego que, em dimensão bastante superior, tinha o curso que agora segue o nosso ribeiro, desde o largo da igreja até perto da actual estação do caminho de ferro.
         Nas suas margens, até perto da actual Vila do Robim, estavam instaladas marinhas de sal. Como centro principal, os barcos (os chamados batelões) vinham até Tavarede, pois era aqui que tinham que pagar as suas licenças e tributos.
         Nos finais do século passado ainda existiam, perto do largo de igreja, enormes argolas de ferro onde os barcos eram amarrados, para cargas e descargas.
         Também toda aquela baixa das encostas da Vergieira e do Casal da Robala até Caceira era sede de muitas marinhas para produção de sal.
         A propósito das marinhas em Tavarede, recordemos dois factos reais. Nos princípios do século XIV era dona de vastas propriedades na nossa terra, entre as quais algumas marinhas, uma fidalga de nome D. Maria Mendes Petite. Esta senhora era mãe de Pero Coelho, um dos assassinos da célebre D. Inês de Castro, ao qual, anos mais tarde, o rei D. Pedro mandou justiçar, sendo-lhe arrancado o coração pelas costas, como castigo pelo seu crime.
         Esta fidalga, talvez para fugir ao mundo, fez doação dos seus bens em Tavarede a uma instituição religiosa estabelecida em Vila Nova de Gaia, acabando por lá se recolher.
         O outro facto foi o de que, na primeira metade do século XVI, o fidalgo António Fernandes de Quadros, que havia estabelecido a sua casa em Tavarede, tomou de arrendamento a ilha da Morraceira, então denominada Insua da Oveirôa, e ali, e nas marinhas de Tavarede, activou enormemente a produção de sal, que se tornou a principal fonte de receita desta casa fidalga.
         Outra actividade que também deixou nomeada em Tavarede foi a produção e exportação de laranja, especialmente para Roma, onde esta fruta foi bastante apreciada conforme documentação existente.
         Naturalmente que outras actividades eram desempenhadas pelos tavaredenses para sua subsistência. De entre elas lembremos a pesca, nomeadamente no rio Mondego.
         Para regulamentar estas actividades teria que haver leis. E se primeiramente elas tinham sido elaboradas pela Sé de Coimbra, foram definitivamente fixadas no ano de 1516 pelo foral que el-rei D. Manuel I deu a Tavarede.

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         Referimos atrás que nos inícios do século XVI se estabeleceu em Tavarede o fidalgo António Fernandes de Quadros. Amigo e protegido do rei, possuidor de grande fortuna, casou com D. Genoveva da Fonseca, natural de Montemor e que em Tavarede era proprietária de diversas casas e terras.
         Deste casamento surgiu a chamada casa dos fidalgos de Tavarede, os Quadros. Começou, então, uma terrível luta. Este fidalgo e os seus descendentes iam adquirindo terras aos pequenos proprietários para aumentarem os seus domínios, mas, contra o estabelecido legalmente, não pagavam o respectivo tributo ao donatário, a Sé de Coimbra.
         Por sua vez, sentindo-se, e com razão, prejudicada pela perda destes valores, esta queixava-se continuamente à justiça real.
         A luta travada foi longa e dura. Chegaram a estar presos e condenados a multas e indemnizações, mas os fidalgos, considerando-se superiores a tudo, insistiam em nada pagarem.
         Acabou ingloriamente para a nossa terra esta luta. Cansado de tantas quezílias, e para acabar de vez com a situação, o poder real aproveitou a oportunidade. O célebre Marquês de Pombal, inimigo declarado do clero e da nobreza, resolveu, dum só golpe, eliminar os dois adversários. Elevou, em 1771, o lugar da Figueira da foz do Mondego a vila e para ali transferiu a câmara e justiças até então existentes em Tavarede. Perdeu a nossa terra, com esta transferência, todo o poder e grandeza que deteve durante séculos.
         Antes de concluirmos esta parte, digamos que os fidalgos de Tavarede, os Quadros, não foram todos uns tiranos ou maus para o povo da nossa terra. Alguns foram-no em demasia, é verdade. Mas, também, tiveram alguns membros ilustres, até, ironicamente, figuras motáveis na igreja que combatiam, notabilizando-se em obras e trabalhos religiosos.
         E também tiveram alguns que, na India, em África e nas nossas fronteiras da Beira, morreram em combate na defesa do nosso país. Como em tudo, tiveram o bom e o mau. O que é difícil é avaliar se a sua vida em Tavarede terá sido mais benéfica ou mais prejudicial para a nossa terra e suas gentes.
         Mas o que é muito importante é não esquecer que se a Figueira se desenvolveu e cresceu o fez à custa de Tavarede.

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         Mas não nos esqueçamos de, embora resumidamente, falar da tal lenda da moura encantada.
         O castelo de Montemor, importante praça forte em toda a zona centro, foi conquistado aos mouros no ano de 848, pelas forças do rei de Leão, Ramiro I, que depois entregou o seu governo ao abade D. João de Montemor.
         Os mouros, no entanto, não se conformaram com a perda desta praça de guerra e puzeram novo cêrco ao castelo. Quando julgavam que a vitória seria certa, obrigando os sitiados a renderem-se vencidos pela fome, eis que aquele abade, juntando as suas forças e pedindo-lhes um último esforço, saiu do castelo, rompeu o cêrco e travando batalha, derrotou os sitiantes, perseguindo-os até Seiça. Este feito é histórico, mas deu ocasião a uma outra lenda que tamb~em estamos certos de que irão gostar.
         Os cristãos de Montemor estavam absolutamente convencidos de que iriam ser derrotados pelos mouros. Não querendo deixar refens nas mãos de tais inimigos, resolveram sacrificar todas as crianças e mulheres que viviam no castelo e mataram-nas, degolando-as.
         Qual não foi o seu espanto quando, após a vitória e regressando ao castelo chorando as vítimas inocentes que haviam imolado, viram vir ao seu encontro todas aquelas mulheres e criamças não mortas mas cheias de vida.
         Um dos chefes mouros tinha consigo as suas oito filhas. Antes da batalha, com receio de que o matassem e elas caissem nas mãos do inimigo, os cristãos, lançou-lhes um feitiço.
         A uma delas, Katija, que seria a sua preferida, disse que o seu encanto somente seria quebrado quando um cavaleiro cristão se aproximasse dela e lhe dissesse, por três vezes, “sois bela como o sol”. Mais lhe disse, que quando fosse libertada, seria levada para a tal terra perfumada por uma planta rústica e delicada.
         Já sabemos que o conde D. Sisnando enviou Cidel Pais para repovoar e reconstruir Tavarede. Um dos cavaleiros que resolveu acompanhar Cidel Pais, ao passar perto de Montemor, viu á entrada duma gruta, no monte de Santa Olaia, um grupo de mouras que fugiram quando o viram aproximar-se. Ficou uma para trás, Katija. Chegado junto dela, o cavaleiro, maravilhado com sua beleza, não se conteve e disse; “sois bela como o sol”, não uma nem três, mas sete vezes. Assim se desfez o encanto e a moura encantada seguiu o seu cavaleiro andante para a nossa terra, perfumada com o cheiroso limonete.
         Sabe-se que esta planta é originária da América do Sul ou da Ásia. Certamente terá sido trazida por qualquer navegante ou soldado de uma das viagens áquelas paragens e que gostou do seu perfume.
         Numa peça de teatro, representada em Tavarede nos primeiros anos deste século, e que foi escrita pelo poeta e jornalista João Gaspar de Lemos, que aqui viver grande parte da sua vida, na sua Quinta da Mentana, agora em urbanização sob o nome de Vale do Pereiro, e a que deu o nome de “Em busca da lúcia-lima”, diz que o limonete foi trazido do Malabar, nas costas da Ásia, no ano de 1502, pelo capitão-mor D. Sancho Fagundes de Encerrabodes, que residiu em Tavarede na primeira metade do século XVI e que era aparentado com os Quadros.
         A grande verdade é que, vinda da América ou de qualquer outro ponto de mundo, o limonete, ou lúcia-lima, bela-luísa, doce-lima, verbena, etc., conquistou o coração dos tavaredenses, pois, desde sempre, em quasi todos os quintais ou terrenos ajardinados, há um ou mais pés de limonete, que, além do seu delicado perfume, também é utilizado para fazer um chá que, se não faz bem também não faz mal.

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         Vamos agora fazer um pequenino comentário à família Quadros, que já referimos e que dominou em Tavarede durante três séculos.
         O primeiro foi António Fernandes de Quadros. Foi ele que mandou construir a casa do paço, embora não lhe tivesse dado aquele aspecto gracioso dos torriões que, apesar das ruínas, se apercebem ainda. Tinha, então, uma torre de ameias, o que denota a importância desta família, pois que só era autorizada a fidalgos muito poderosos.
         Foi ele quem estabeleceu o morgadio de Tavarede. Morgadio é o conjunto de bens vinculados que se não podiam dividir nem alienar, e que por morte do titular passariam ao filho primogénito que, com os bens, também herdava o título de morgado.
         Como era preciso autorização real para o estabelecimento dos morgadios, pediu ela concessão a el-rei, D. João III. No entanto, quando a autorização chegou já tinha falecido aquele fidalgo, pelo que, em nossa opinião, a primeiro morgado de Tavarede terá sido o seu filho primogénito e herdeiro.
         O morgadio existiu até ao ano de 1804, data em que foi nomeado barão de Tavarede João d’Almada Quadros Sousa de Lencastre que, no ano de 1848, viu o seu baronato elevado a condado.
         O último conde de Tavarede faleceu em 1903 e, com ele, extinguiu-se o título, embora tenha deixado descendentes directos.
         Como curiosidade, lembremos apenas um, dos imensos privilégios de que a casa de Tavarede foi senhora. Este, além de bastante gravoso, era mesmo vexatório para o povo de Tavarede e da Figueira, pois continuou durante bastante tempo depois da elevação a vila. Era o chamado “forno da poia”.
         Em que consistia: Simplesmente nisto. Ninguém podia ter em casa um forno. Para coser pão ou broa, assar galinhas, coelhos ou qualquer carne, até para assar fruta, teriam de ir fazê-lo ao forno da poia, onde teriam que pagar o tributo estabelecido.

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         É claro que a história de Tavarede não é só isto. Mas não é ocasião de ser demasiado minucioso. Tentamos fazer um resumo e dar uma ideia do que foi e aconteceu de mais significativo na nossa terra, ao longo dos seus dez séculos conhecidos.
         Antes de descrever alguns dos principais costumes e tradições de Tavarede, vamos contar-lhes uma breve história de cada um dos três mais conhecidos santos venerados na nossa terra: S. Martinho, Santo Aleixo e S. Paio.
         Todos nós sabemos que o S. Martinho está ligado ao vinho. Diz-se: em dia de S. Martinho vai á adega e prova o vinho. Porquê? É esta a história: um dia apareceu ao santo um mendigo, cheio de fome e andrajoso, pedindo-lhe esmola. S. Martinho que nada mais tinha que a sua capa, rasgou-a ao meio e deu metade ao mendigo.
         Este entrou numa taberna e pediu de comer dando como paga a metade da capa. O taberneiro, tavez com pena do mendigo, deu-lhe de comer e agarrando na capa, atirou-a desdenhosamente para cima duma pipa. Passado tempo verificou que o vinho daquela pipa nunca acabava. Tirou-lhe de cima a capa e imediatamente o vinho parou de correr. Recolocando-a em cima, novamente op vinho voltou a jorrar pela torneira.
         Há outras histórias sobre este santo, mas esta é a que o deixou ligado ao vinho.
         O santo Aleixo terá vivido em Roma, como pedinte e com grande santidade. A sua capela, edifício bastante antigo, terá servido de hospício e acolhimento aos peregrinos.
         O terceiro santo também tem uma história curiosa na nossa terra.
         A sua pequena capela, lá em cima no prazo, na encosta da serra, foi mandada construir pelos frades de Santa Cruz, os crúzios. Com o correr do tempo caíu em ruínas. Quando, no século passado, a Igreja de Santa Cruz vendeu toda aquela propriedade impôs como condição a reconstrução da capela. Assim aconteceu. Quanto á imagem do santo ela foi encontrada na adega da casa ali existente, onde algumas vezes servia para calçar as pipas. Foi mandada restaurar e lá está na capela. Como facto intrigante, pelo menos para mim, é que S. Paio era um menino quando foi sacrificado pelos mouros e a imagem existente na capela é a figura de um homem com uma barba bem cerrada, nada condizente com os doze anos de S. Paio.
         Outras histórias sobre outros santos de que veneraram em Tavarede também seriam interessantes de contar. Ficará para outra oportunidade.

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         No século passado e princípios deste, Tavarede festejava com grandiosidade o S. João. Não deixa de ser interessante que sendo S. Martinho o orago da terra e havendo outras capelas, as únicas festas profanas e religiosas eram as de S. João.
         Nunca se realizavam no dia deste Santo, a 24 de Junho. Normalmente, tinham lugar no segundo fim de semana de Julho. Eram grandiosas, com ruas ornamentadas, ranchos, muita música e a missa religiosa. Não havia procissão. Mas faziam as chamadas cavalhadas. Arranjavam um enorme número de cavalos e burros e, com a bandeira de S. João á frente, acompanhados de muita gente a pé, iam em cortejo até á Figueira da Foz com regresso por Buarcos. Como nota curiosa diremos que nestas cavalhadas se juntavam bastantes máscaras, pois na altura, o carnaval não era festejado nas ruas.
         As ruas eram vistosamente engalanadas e cheias de balões que à noite se acendiam. Sabemos que havia danças nos largos da Paço, do Forno (actual jardim) e da Igreja.
         Mas a festa popular que mais saudades deixou a todos os tavaredenses foi a da manhã do primeiro de Maio.
         Diz a tradição que a fonte da Várzea era um local verdadeiramente aprazível, onde a água fresca e pura corria das suas bicas. A fonte agora já não existe e o local está coberto de silvas e ervas.
         Manhã muito cedo, os músicos formavam a tuna e os pares, levando as raparigas à cabeça os potes cobertos de flores, que na véspera haviam cuidadosamente enfeitado, dirigiam-se a cantar até àquela fonte. Ali, o rancho de Tavarede juntava-se a outros: da Chã, da Vila do Robim, do Casal da Robala. Dançavam, bebiam a fresca água, descançavam e prosseguiam a viagem até à Figueira onde percorriam as ruas, sempre cantando e dançando.
         Esta última parte seria, mais ou menos, como agora, em que se tenta reatar a tradição do rancho do primeiro de Maio e dos potes floridos de Tavarede.
         Não vamos ser mais maçadores. Queremos, no entanto, ainda lembrar que, verdadeiramente, havia e ainda há duas grandes tradições em Tavarede: o teatro e a música.
         Para lhes contar a história do teatro e da música em Tavarede seria preciso outro tanto tempo. Bastará dizer-vos que há notícia de teatro na nossa terra desde há cerca de duzentos anos. Antes dos colectividades agora existentes outras houveram. E, dedicando-se a estas duas artes, muito fizeram pela divulgação da cultura na terra do limonete. A título de exemplo, sempre diremos que, muitos anos antes de haver escola primária em Tavarede, já as colectividades de então mantinham escolas nocturnas, para crianças e adultos, e que foi nelas que muitos tavaredenses aprenderam a ler e a escrever.
         Muito, mas mesmo muito, haveria a contar sobre a história de Tavarede.Uma grande parte dessa história encontra-se contada nas peças de teatro , escritas pelo sr. José da Silva Ribeiro, e que foram representadas na Sociedade. Aos que quizerem saber um pouco mais sobre a nossa terra podem ler os livros “Chá de Limonete” e “Terra do Limonete” que encontram na biblioteca daquela colevctividade. Também o livro que em Março passado foi editado pela Junta e a que dei o título de “Tavarede - a terra de meus avós” se encontra bastante desenvolvida a história que resumidamente agora lhes contei.

         Se quizerem, e não estiveram muito saturados, podemos conversar um pouco mais sobre qualquer assunto. Ou guardar para outra ocasião. Se a isso estiveram dispostos digo-lhes que, pela minha parte, gosto imenso de conversar sobre a história da minha e da vossa terra.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Usos e Costumes da Terra do Limonete - 2

A primeira notícia encontrada referente às festas ao São João de Tavarede foi no periódico O Figueirense, na edição de 10 de Julho de 1864. “Terminaram no domingo finalmente os festejos aqui pelas proximidades da villa ao milagroso S. João. É a antiga villa de Tavarede quem todos os annos, permitta-se-nos a expressão, cobre a rectaguarda neste famoso e nunca alterado systema de festejar o santo com mascarada, cavalhada, corridas de prémios, etc.
Como succede todos os annos, pela volta do meio dia appareceu a bandeira seguida de numerosos cavalleiros, uns mais bem, outros mais mal montados, mas todos fazendo-se conduzir por um quadrupede de qualquer especie, que é o que se pretende e contra o que não há disputa. Deram as competentes voltas em torno da egreja, desceram depois à praça do Commercio e em seguida à praça Nova, d’onde dadas também as competentes voltas, se encaminhou a cavalgada para o porto da saida, que subsequentemente se ia tornar o theatro de maior gloria.
Depois das 2 começou então a Figueira a despovoar-se, encaminhando-se toda a gente para o local da festa, aonde se reuniram pelo meio da tarde extraordinário numero de pessoas de todas as classes. É que nestas occasíões não há fidalgos nem plebeus: a mascara e os mascaras confundem tudo.
Alli o que principalmente se viam eram numerosos ranchos de rapazes e raparigas da Figueira, Buarcos, e da própria localidade, que todos, ou dentro das casas ou na rua, tocavam, cantavam, berravam e dançavam á porfia, como quem queria para si maior gloria. De resto também se encontrava um bom numero de mirones, que não faltam nunca nestas occasiões, uns para se divertirem, vendo; outros, para darem fé do que se passa.
Quando o sol já era menos e permitia ás cabeças naturalmente esquentadas o exporem-se aos seus vivificantes raios, começou então um simulacro de corridas de prémios, que se não era cousa para admirar como bom, era contudo excellente cousa para fazer rir e fez rir muito.
Acabada a corrida veio-se aproximando o frio da noite, que não deixara de chegar muito a propósito, começando o povo a retirar; e nós, que também éramos povo, viemos vindo com a multidão, protestando desde logo escrever uma larga notícia sobre o S. João de Tavarede, em virtude d'um cavaco que nos deu um nosso amigo, por fallarmos no numero passado do Figueirense tão resumidamente do S. João que ha de vir”.
         Esta nota refere dados interessantes. É certo que não tem qualquer alusão a actos religiosos, no entanto, pelo menos era celebrada missa sanjoanina. Também se depreende da notícia, e o segundo período da mesma é elucidativa, estas festas já se realizariam haveria anos. Mas, desde quando?
         Pois a verdade é que não conseguimos encontrar quaisquer indicações do início de tais festejos, bem como o motivo da nossa terra, e outras do concelho, festejarem tão exuberantemente tais festejos.
         Na Figueira, como se sabe, ainda actualmente se realizam festas em honra do Santo, aliás, um dos três patronos venerados na cidade: o S. Julião, padroeiro da terra, o Santo António, e recordemos a figura de António Fernandes de Quadros, o fundador da Casa de Tavarede, e a quem se deve a construção do convento, e o S. João, com o tradicional ‘banho santo’, sempre atraíndo muito gente, velhos e novos, para se banharem nas águas frias da nossa praia.
         A Figueira sempre festejou no dia próprio, a 24 de Junho. Na primeira semana de Julho cabia a Buarcos realizar os festejos, que, na semana seguinte, acabavam em Tavarede.
         Tinham muita fama as festas ao S. João de Tavarede. Certamente que a sua realização não seria anterior à mudança da câmara da nossa terra para a Figueira, o que aconteceu no ano de 1771. Até então, ‘reinando’ despoticamente em Tavarede o morgado Fernando Gomes de Quadros, que tão triste memória deixou, não é crível que o povo tivesse qualquer vontade ou, até, autorização para tais festejos.
         Também é verdade que não interessa grandemente saber a data rigorosa do surgimento destas celebrações. Admitimos, sem qualquer segurança, que tenham começado nos inícios do século dezanove, talvez na segunda ou terceira décadas.
         Se as danças atraíam especialmente a gente nova, já os menos jovens teriam o ponto alto das festas nos costumados jogos tradicionais, especialmente a rosquilhada, que proporcionava momentos de boa disposição. Eram as cavalhadas, porém, que constituiam o pico dos festejos. Naqueles tempos, sendo a agricultura a principal actividade das gentes locais, a terra seria fértil em animais, indispensáveis ao cortejo. Burros e cavalos, além de montadas para muitos participantes, eram necessários para atrelar às carroças e trens, vistosamente ornamentados a preceito.
  


As cavalhadas na Figueira, no largo da Câmara

O Associativismo na Terra do Limonete - 58

     Uma nota curiosa surgiu-nos publicada num jornal figueirense em Outubro de 1942 e que diz: O êxito continua... “O Sonho do Cavador” – a peça das lotações esgotadas e que há quinze dias festejou brilhantemente as suas bodas de ouro, volta à cena no próximo domingo, 25, em 52ª. representação e última desta época, no teatro da Associação Naval, dessa cidade. O teatro da popular colectividade vai registar, disso estamos certos, outra grande enchente. Esta festejadíssima fantasia também será representada no próximo sábado, no teatrinho da SIT, em récita dedicada aos seus associados.

         A Sociedade havia feito nova reposição de O sonho do cavador. Não podemos confirmar, no entanto, o número de espectáculos indicado. Pela listagem de todas as representações dadas pelo grupo de Tavarede, cuidadosamente feita com recurso aos livros e outros documentos da colectividade, programas e imprensa, esta seria a 42ª representação da peça. Admitimos, contudo, a possibilidade de haver falha, mas nunca além de mais dois ou três espectáculos.

         Ainda com esta peça, e atendendo a uma solicitação da Junta de Freguesia local, foi dada, na sede, uma representação para angariar fundos, para um bodo configno a distribuir pelos seus pobres no próximo Natal. O resultado verificado foi de 1.334$10.

         Um outro espectáculo, que teve lugar no Casino da Figueira, em Novembro daquele ano e a favor do Natal do Expedicionário, mereceu esta interessante nota. Pela segunda vez assisti a uma representação do Grupo de Tavarede: “Entre Giestas”, de Carlos Selvagem, peça bem portuguesa, característica.
         Como equilibrio é do melhor que conheço.
         Convencionado que a amadores não se pode pedir a “presença” que se exigira a profissionais, são desculpáveis – e justificáveis – certas deficiências, cuja supressão contribuiria para valorizar, ainda mais, o simpático agrupamento.
         Admirador fervoroso do trabalho, da persistência e da dedicação – é um manancial inesgotável de dedicação o “quadro” de Tavarede – citarei, ao acaso, o que se me afigura merecer acolhimento atencioso...
         Não se “põem” em cena, com facilidade, dezenas de figuras. Quantas horas perdidas, paciência atormentada, sistema nervoso alterado!...
         Porém, porque nem sempre há a franqueza para se apontar com lealdade – e vá, permita-se-nos... – com conhecimento de causa, alguns pormenores que contribuem para anular o brilho da representação, tem-se persistido em manter o que se deveria eliminar.
         Comecemos pelo princípio.
         É de louvar, e daqui aplaudimos a iniciativa, digamo-lo assim, de iniciar o espectáculo a hora prefixa, com o aviso prévio de a autoridade poder impedir o acesso de espectadores.
         De acôrdo e mais aplausos, com os desejos, sinceros, de que a medida faça escola.
         Mas é de admitir aquela enormidade de intervalos? A categoria do grupo carecia já de carpinteiros aperfeiçoados, embora amadores, que demonstrassem, praticamente, a maior presteza.
         Por outro lado – estou a escrever de um modo geral – os intérpretes dão a nítida impressão, o que se deveria evitar, do pêso das responsabilidades que lhes assenta sôbre os ombros; “o grupo é de categoria, é imprescindivel continuar prestigiante”, e febrilmente aguarda-se a “deixa” para se despachar, velozmente, o diálogo.
         Engeita-se a responsabilidade para se salvar a honra, pessoal, do convento... E nasce assim o mastigar de frases, a repetição de palavras, que nunca foi de bom efeito teatral.
         Falemos agora, duas linhas, apenas, de Violinda Medina, que possui, reconheço, admirável intuição. “Sente e sofre” em cena. É admirável, por vezes, em algumas arrancadas. Já a vi “estarola” e em “mulher de sentimentos”. Vibra, chora e ri com facilidade. Um pequeno-grande senão: utilisa sempre a mesma tonalidade de voz, perdendo, assim, lindos efeitos dramáticos.
         Um pequeno esfôrço, treino, facultar-lhe-á, em pouco tempo, dispôr de excelentes recursos que permitirá afirmar-se, sem favor, que Violinda Medina é uma amadora que não haveria desdouro se pisasse os melhores palcos nacionais.



      






  Entre Giestas




Dos homens, o mastigar. Há “características” interessantes, aos quais se solicita, sòmente, serenidade. A tal presença de espírito... Das mulheres, há muitas que agradam.
         É a minha admiração pelo simpático agrupamento que motivou estas considerações.  Não é de estranhar que se encontre o espírito de dizer mal. De boas intenções está o inferno cheio... Informaram-nos que o grupo já apresentou na mesma peça, melhor actuação. Talvez... Há horas felizes...


Entre Giestas






segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Usos e costumes da Terra do Limonete -1



        Ao folhear, uma vez mais, os meus cadernos com as notícias de Tavarede publicadas nos jornais figueirense, ocorreu-me a ideia de fazer um caderno onde recordasse alguns dos usos e costumes dos nossos antepassados, os quais hoje estão praticamente esquecidos, ou pouco menos, pois ainda há um ou outro que se procuram recordar esporadicamente.
         Pensei intitular este caderno acrescentando a palavra ‘tradições’. Consultando um ‘amigo’ dicionário, verifiquei correctamente o significado desta palavra: “transmissão de valores e de factos históricos, artísticos e sociais, de geração em geração, através da palavra ou do exemplo...”.
         Ora, na nossa Terra do Limonete, com um pouco de boa vontade, poderíamos englobar na palavra ‘tradição’, duas artes artísticas tão queridas das nossas gentes, aqui já velhinhas de mais de duzentos anos, sempre seguidas e praticadas pelas sucessivas gerações. Refiro-me ao Teatro e à Música, que ainda hoje, embora sem a amplitude que usufruiram há algumas décadas, ainda vão tendo uma prática, irregular é certo, mas que procura as não deixar acabar em definitivo.
         Mas, sobre o Teatro e sobre a Música, na nossa terra, já muita coisa foi recordada e escrita. Eu mesmo, no meu caderno “Tavarede – a terra de meus avós”, o fiz no segundo volume, onde procurei narrar o surgimento e o desenvolvimento destas duas artes, de acordo com informações que consegui reunir nas colecções dos jornais locais e noutras publicações disponíveis.
         Seria descabido, logicamente, dar o título de ‘tradições’ ao que entendi recordar agora, como algumas festas, religiosas e profanas, que só vivem na lembrança de alguns, por as terem visto recordadas no teatro, bem como um ou outro dos velhos usos e costumes tavaredenses que, por uma saudável teimosia, ainda procuram fazer reviver do esquecimento em que se encontravam adormecidos num longo sono.
         Alguma coisa repetirei de cadernos compilados anteriormente, mais irei sempre procurando evitar repetições, utilizando outras notas encontradas e sobre os assuntos que evocarei. Não pretendo, e disso tenho a certeza, que seja um trabalho profundo.  Faltam-me, para tal, os necessários conhecimentos. Isso competirá a outros mais estudiosos e competentes do que eu.
         Mas, e espero, que aquilo que recordarei, possa ser um ponto de partida para algum vindouro, tavaredense ou não, que queira estudar a interessante e variada história da velha Terra do Limonete.


1 - As festas ao S.João de Tavarede


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 57

        Também aqui queremos transcrever a notícia que recolhemos e referente a mais um espectáculo em Coimbra, desta feita em benefício da Caixa de Socorros dos Bombeiros Voluntários daquela cidade. Não foi iludida a nossa espectativa quanto ao êxito, que augurávamos para a apresentação em cena, no Teatro Avenida, da peça Recompensa. Di-lo, seguramente, sem qualquer dúvida, a forma como se desempenharam dos seus papeis os simpáticos elementos do grupo cénico da “Sociedade de Instrução e Recreio Tavaredense”.
         Di-lo, igualmente, a maneira carinhosa, afectuosa, como foi recebido esse grupo pelo público conimbricense, que não sabe regatear os seus vibrantes aplausos áqueles que os merecem. E bem os mereceu aquele conjunto de artistas, incluídos num sonho de arte, que se apresentaram à nossa admiração na noite de 26 do corrente.
         Feliz foi, pois, a iniciativa da nossa “Sociedade de Defesa e Propaganda” em trabalhar, e para isso trabalhou incansavelmente, para que até nós viesse esse grupo, que sempre tem colhido os melhores aplausos, os mais frenéticos aplausos.
         No intervalo do 1º para o 2º acto da peça, e estando presentes no palco os corpos directivos da Sociedade promotora e da Associação dos Bombeiros Voluntários, o sr. Dr. Armando de Lacerda, presidente da S.D.P.C. e distinto professor universitário, saudou o grupo em frases que revelam a sua grande cultura, o seu elegante espírito e a compreensão da finalidade que orienta aquele importante grupo cénico.
         Na impossibilidade de dar na íntegra o texto das palavras do ilustre professor, limitamo-nos a transcrever algumas delas, por onde se avaliará o valor da sua magnifica e erudita oração:
         “A acção dum bom grupo cénico, é muito mais importante do que à primeira vista se pode supor. Não resulta, apenas, do que valem as obras teatrais representadas, duma interpretação mais ou menos feliz. O próprio grupo é que adquire um valor como conjunto de indivíduos cada vez mais aptos a constituírem elementos de aperfeiçoamento da sociedade humana.
         O que leva os componentes dum grupo cénico como o que hoje aplaudimos, não é a paixão do espectaculoso, nem o amor pela beneficência uma razão mais aparente do que real. Se assim sucede, por vezes, observamos que há grupos dramáticos de muitas espécies e categorias. Tudo depende do nível em que se trabalha e do nível que se pretende atingir.
         Tratando-se dum grupo de escol, é evidente que uma das grandes forças animadoras, provém dum conjunto de motivos em que domina uma ambição de aperfeiçoamento espiritual, uma vontade aberta a vivências dum mundo mais vasto e mais profundo do que aquele em que normalmente labutam pela existência.
         Surgem possibilidades de acção que doutro modo não se ofereceriam. Aproveitadas essas possibilidades, desenvolvem-se capacidades de realização. Despertam sentidos artísticos até aí adormecidos.
         Interpretando, vivendo anceios, paixões, dúvidas, receios, espaventos, misérias, devoções, ternuras, entusiasmos, resignações, desesperos, discórdias, ironias, felicidades, desgraças, espectativas, surprezas, inquietação, ímpetos, exaltações, branduras, serenidades, - inúmeras cambiantes dessa gama riquíssima de atitudes mentais – vai-se enriquecendo a personalidade, intelectual e afectivamente.
         Não ignoramos que a teoria insinuada é discutível por falta de conhecimentos sobre o efeito resultante das sobreposições de personalidade, como sucede na interpretação dramática. Mas ainda que sejam numerosos os casos em que a teoria falha, não faltarão exemplos a recomendar a doutrina.
         Se o grupo é bem orientado, se a interpretação for conduzida de forma a evitar-se, tanto quanto possível, o declamado, o postiço, o caricatural, as probabilidades de êxito devem ser grandes. Os componentes dum grupo dramático bem organizado e conduzido, ascendem, rapidamente, na escala da valorização social. A acção que desenvolvem, ainda que abstraiamos da sua influência sobre o público, atinge os próprios actuantes, operando-se uma transformação mais ou menos profunda.
         Inutilizam-se grandes somas de energias por falta de compreensão, interessando desenvolver mentalidades, minorar a ignorância. Há muitas criaturas que não cultivam o seu espírito e é rara a pessoa que tem prazer em pensar a não ser instigado pela necessidade do animal rudimentar.
         É a falta de nível mental que explica frequentemente a inércia observada perante planos de trabalho que mereciam auxilio imediato. É a falta de nível mental que explica, frequentemente, o receio à remodelação, à novidade. A preguiça é muitas vezes motivada pela ignorância”.
         Agradeceu, em palavras vibrantes, entusiásticas, o organizador do grupo, e sua verdadeira “alma”, sr. José Ribeiro, que mostrou, uma vez mais, a acção beneficente – que outra, além da artística o grupo não possui, - daquele conjunto de operários, que a sua energia, a sua tenacidade, tem feito apresentar em vários teatros do país e que, sempre, e em toda a parte, tem sido recebido com a maior simpatia e enternecimento.
         A Associação dos Bombeiros Voluntários, terminadas as suas palavras, coroadas com aplausos, como as do sr. Dr. Armando de Lacerda, ofereceu-lhe o diploma de “sócio honorário” da sua corporação, homenagem devida a quem, num impulso humanitário, veio concorrer para que se torne em efectivação uma das suas aspirações, a “Caixa de Socorro ao Bombeiro Voluntário”.
         Que dizer da forma como se desempenharam os componentes do Grupo que se não saiba?
         Que todos, todos, se desempenharam dos seus papeis como se fossem artistas, que todo o seu tempo dedicassem à cultura teatral.
         E mais diremos: alguns artistas profissionais talvez se não houvessem com mais mestria, com mais á-vontade nos papéis que lhes foram distribuídos.
          Será preciso salientar alguns deles?
         Colocaremos em plano de evidencia, e bem o merece, D. Violinda Medina e Silva, que se houve muito bem, no papel de “Maria da Graça”, Manuel Nogueira no papel de “José”, António Broeiro, no papel de “Guilherme”, o que não quer, de forma nenhuma, dizer que não dessem grande harmonia ao conjunto todos, todos, os artistas – que o são, sem favor, - quantos tomaram parte no explendido espectáculo que ficará, sem dúvida, a marcar mais uma etapa gloriosa na carreira brilhante que vem trilhando o grupo cénico da prestimosa  Sociedade de Instrução e Recreio Tavaredense.
         A S.D.P. de C., e para a sede do grupo, ofereceu-lhe um artístico lampeão, trabalho do considerado artista conimbricense, sr. Albertino Marques.
         Está, pois, de parabéns – e bem os merece e deles é credora, - a Sociedade de Defesa e Propaganda de Coimbra, por, numa hora de feliz inspiração, nos ter proporcionado a visita deste importante grupo cénico, que pela 13ª vez se faz aplaudir em Coimbra.
         E o nosso desejo, e por certo o desejo de quantos prezam a verdadeira arte, é que, mais e mais vezes, este apreciável conjunto de artistas nos visite, porque a sua visita, sempre aguardada com ansiedade, nos pode dar mais e mais noites de arte, o que nem sempre sucede com aquelas que nos têm dado, por vezes, algumas companhias de Lisboa, que, apesar de virem muito elogiadas e reclamizadas, nem sempre merecem quanto delas se diz e se apregoa.
         Não sucede o mesmo com este grupo: na sua modéstia dá-nos teatro, teatro que sentem, em que vibram as suas almas simples, amoráveis, sempre acalentadas por um sonho de beleza e de arte.
         Parabéns a José Ribeiro, parabéns ao seu grupo e… que as suas visitas se repitam.
         Votos são estes que muito sinceramente formulamos e de todo o coração.

         Igualmente não queremos deixar de assinalar que a Sociedade e o Grupo mantiveram, durante vários anos, a iniciativa de fazerem um passeio em conjunto, escolhendo, para o efeito, alguns dos lugares mais aprazíveis das redondezas. Tinham sempre a participação de muitas famílias e, depois de saborearem os seus farneis, havia danças, animadas por músicos locais, jogos tradicionais e sesta prolongada para alguns. Vai ser um dia de grande ferróbódó, a avaliar pelo enorme entusiasmo que reina entre a família associativa das duas populares colectividades.


 







Durante um dos passeios anuais






A  começar na próxima segunda-feira: Usos e costumes da Terra do Limonete