quarta-feira, 20 de julho de 2011

Na Várzea de Tavarede - 1º. de Maio

Já os remotos druídas celebravam o “Bé-il-Tin”, - o começo do ano, - quando dealbava Maio.


É festa que vem de longe e, passeando em torno das idades, o seu guisalhar alegre e ruidoso.


O nome céltico de Maio, era “Cenduin”, - o primeiro mês, o primeiro tempo, - visto que era em Maio, que por êsses recuados e apartados dias, se dava comêço ao ano.


Na clara Grécia, na velha Galia, na soberana e olimpica Roma, - as “Floralias”, as “Palilias”, - os enormes fogareus lucilando e crepitando nos altos môrros, recordavam segundo a tradição de uma festa solar, vestígios de qualquer antiga comunidade pastoral.


Por todo o lado, no dôce e suave mês de Maio-Moço, em que a Natureza inteira veste galas em honra e louvor da Deusa Primavera, - o entrar de Maio, foi motivo e razão de bailos e folgares, - ou à luz radiosa do Sol, ou sob o manto rútilo das estrêlas!


A Igreja, festeja em Maio-Florido, - Nossa Senhora.


É o Mês-de-Maria, - com os altares cheios de rosas claras.


O cristianismo, repudiou em seu começo as rosas, - dado o culto pagão votado à aromática flôr, pelos adoradores de Vénus, - a Deusa do Amor e da Fecundidade!


Bem cedo porém as rosas regressaram a encher os templos cristãos, a cobrir de seu oloroso perfume as naves altas, a atapetar com as suas finas pétalas de sêda, os pés da Virgem Nossa Senhora.


E por todo o Portugal formoso e crente, por capelas alpendradas no tôpo cinzento dos montes, por ermidas quietas e calmas, aninhadas no fundo das encostas ou erguidas ao remate das veigas tranquilas, se cantam e rezam, na doirada doçura das tardes macias dêste mês de Maio-Lindo, ladaínhas e litanias, erguendo aos Altos, - graças e louvores à Mãe-de-Deus!


Quando os Afonsos e os Sanchos, no alvorecer da nacionalidade, talavam a cortes de montante o solo da Nação, era em Maio que se organisavam as algaradas e se partia à reconquista cristã.


Então se clamava: - “Vamos ao Maio!” – E o mesmo era que dizer que abalavam por vales e cêrros, ao encontro das hostes infieis, - gentes d’Algo, infanções, cavaleiros temíveis e bravia peonagem.


“Ir ao Maio”, - marcava a largada das mesnadas heróicas, que iam bater-se gloriosamente para cimentar a Pátria, que nascia e se firmava entre os golpes de uma espada e o erguer de uma cruz!


As giestas, flôres d’oiro que cobrem em Maio-Formoso, tôda a faixa da Península, que vai do verde Minho ao moreno Algarve, simbolisam na sua arisca e rebelde graça, o mês mais contente de todo o ano.


Na manhã do primeiro dia de Maio, devem colher-se as giestas, e enramalhar com elas, as portas dos casais, os janelos, os currais do gado, a arca do pão e a talha do azeite.


... Para que Deus sempre dê fartura ao lar, e arrede maleitas e quartãs, - das gentes e do bicho vivo...


A giesta simbolisa o período da Primavera plena, e traduz o fino cantar do arroio calmo, o abrir da flôr no brotoejo dos ramos tenros, o chilreio dos ninhos e a vibração ligeira das azas que varam sem estôrvo o tranquilo e lavado azul!


Beber no alvôr da madrugada do 1º de Maio, água pura, gostosa e fresca, na Fonte milagreira da Varzea de Tavarede, - dá saúde, felicidade, alegria e sorte, para o ano inteiro!


Por isso, tôda a gente das terras ao derredor da linda e risonha aldeia, se agrupa e junta na praxista manhã, no largo onde a bica rumoreja num fio cristalino.


Não há moça de trabalho, que não consuma e môa a derradeira noite de Abril, a florir seu pote de barro vermelho, - que é grande o despique em apresentar caprichosamente enfeitadas, as cantaras airosas.


Urdem-se entre folhas de hera, os tenras ramagens de buxo ou loiro, círculos de rosas e cravos em coloridos e bizarros tons, que enastram o bôjo da vasilha, caem em aneis pelo talhe grêgo dos bocais, e pelo jeito em ânfora à roda das azas perfeitas.


E grandes laçadas de fitas de sêda, descem pelos pucaros bem torneados, humidos e apetitosos, que matam sêdes de água e amor, a beiços de namorados...


Ainda o céu é um crivo de estrêlas e mal se laiva o nascente de uma ténue e branda claridade, já descem dos píncaros do Cruzeiro, das azinhagas do Robim, da estrada de Mira, - seguindo no caminho fácil e geitoso da Várzea-de-Tavarede – ranchadas de gente môça e garrula, cantando e bailando, entre risos e folgares.


Em roda da Fonte, com seu arco moirisco, é bem uma romaria. Os toques, são às duzias. E andam pelo ar cantigas d’oiro, com résteas de Sol!


Chegou agora o grupo dos “Amorosos”. São de Brenha. A tuna, é de apetite. Os rapazes trazem bonés forrados de fustão branco. E as raparigas ramos de limonete e pandeiretas de onde pendem tiras vistosas de mil côres. Cantam, com acompanhamento de côro, a velha moda popular “Margarida-vai-à-Fonte”. Que linda voz tem a cantadeira...

Fui à Fonte-dos-Amores,
Fui à Fonte-dos-Amores,
P’ra ter um Amor também!
Puz na cantarinha flôres
E na Fonte-dos-Amores,
Fui encontrar o meu bem!

A água da cantarinha,
A água da cantarinha,
Mata a sêde dos desejos!
Junta a tua bôca à minha,
E à sombra da cantarinha,
Dá-me a água dos teus beijos...

Puz ao ombro a cantarinha,
Puz ao ombro a cantarinha,
Tôda florida a preceito!
Não há sorte como a minha,
Trago ao ombro a cantarinha,
Trago o teu Amor no peito!

Na Fonte-de-Tavarede,
Na Fonte-de-Tavarede,
Sabe a água a alecrim!
Meu Amor mata-me a sêde
Com água de Tavarede,
Que fôste buscar p’ra mim!

Este rancho que entra agora no largo, e tudo domina com o restôlho da pancadaria acêsa no bombo, marcando o compasso rubro e ardente duma chula nervosa, é do Saltadoiro. O tilintar dos ferrinhos vibra como um repique de sineta aguda em baptisado. A voz do rapaz é macia como um veludo. E a da rapariga, fina e ductil, lembra um doce trilo de rouxinol...

Trazes junto ao coração,
Um Senhor, no teu rosário...
= Quem me dera ter a sorte
De morrer nesse calvário...

Não sei se te hei-de amar,
Se fugir ao teu encanto!
Não sei se devo gostar,
De quem me faz sofrer tanto!

O nome que te puzeram,
= Maria! – não acho bem!
Maria, foi Mãe de Deus,
Nunca fez mal a ninguém...

O Sol rompeu, abriu, cobre tudo com a sua aza d’oiro. O ceu, é um esmalte puro, - dum azul sem nódoa ou ruga. E todo o claro espaço, cheira a madre-silva, a mangerico, a rosmaninho em flor!


Da bica, tomba a linfa fresca, onde bocas gorgolejam. Uma cachopa, a fugir dum moço atrevido, deixou cair o vistoso pote, - catrapuz! – e foi um coro límpido de gargalhadas em redor...


A meio do largo, dança-se um “Malhão” barulhento – entre o zangarreio de guitarras, estridores de violões, ganidos de harmónicos, saltitares de chinelas, farfalheiros de oiros nos peitos das mulheres, nuvens de pó do sapateado acêso dos rapazes, estalidos dos dedos, e a voz rude e forte do marcador:


= Volta” E vira! Uma cantiga...


Uma voz sàdia de moço, atira ao fino ar:

“Vai à fonte quem têm sêde”...
= Este dito é impostôr!
Vim à fonte, sem ter sêde,
E morro à sêde de Amor...

Uma rapariga, morena como um bago de centeio, retruca de grimpa alta:

A Fonte-de-Tavarede,
Mata a sêde a quem a tem!
= Mata a sêde a quem tem sêde,
Não dá juizo a ninguém!

Há risos e palmas! O rapaz, nem toma folego, larga com desembaraço:

Oh mandador do “Malhão”
Mande-a cá! – Peço-lho eu...

= Três pares à frente! Agarradinhos! Voltinha ao par...


E mal a pulha nos braços, jungindo-a ao peito largo, enovelando-se com ela em duas voltas quentes e lestas:

Já lhe sinto o coração
Às marradinhas ao meu!

(Raimundo Esteves – Jogos Florais da Primavera de 1941, organizados pela Emissora Nacional. Menção honrosa em palestra radiofónica) (O Figueirense - 2.8.1941)

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