sábado, 9 de julho de 2011

O SANTO OFÍCIO E A INQUISIÇÃO



Agora que aparece um periódico de Lisboa a tratar de defender e justificar o horroroso e infame tribunal da Inquisição, será conveniente publicar alguns documentos para mostrar a santidade de semelhante tribunal e as virtudes dos seus ministros.


No Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal – ordenado pelo bispo e inquisidor geral D. Francisco de Castro, e impresso em 1640 em Lisboa, por Manuel da Silva, nos próprios paços da Inquisição (os Estaos), o qual é hoje reríssimo, mas de que possuímos um exemplar em perfeito estado de conservação, se determina o seguinte:


Havendo no Santo Ofício prova bastante de testemunhas, porque pareça que algumas pessoas defuntas podem ser convencidos do crime de heresia, mandarão os inquisidores, a requerimento do promotor, tirar certidão do livro do baptismo, porque conste se eram os defuntos cristãos baptizados, e não se achando o dito assento, se fará sumário de testemunhas, porque conste se eram naturais do reino e como eram tidos e havidos por cristãos baptizados; e junta a certidão e o sumário, havendo o promotor feito seu requerimento, verão os inquisidores tudo em mesa com as culpas do defunto, e pronunciarão que sejam citados seus herdeiros ou pessoas a quem de direito pertencer a defesa; e esta citação se fará pessoalmente aos que estiverem no reino, e por édito aos ausentes dele; e se continuará na causa, na forma que fica dito nos mais defuntos; e estando conclusa, verão os inquisidores o processo em mesa com o Ordinário e deputados, e achando que o crime está provado, condenarão os defuntos na forma que se acha no livro 3, título 26, parágrafo 5º.


Ora este livro, título e parágrafo do Regimento aqui citado, ordenavam o que se segue:


Se depois de se haver procedido contra os defuntos na forma que fica declarada no livro 2, título 18, eles forem havidos por convictos no crime de heresia e apostasia, serão em sua sentença declarados por herejes e apóstatas da nossa santa fé; e condenada sua memória e fama, e confiscados seus bens, do tempo em que se provar que cometeram o delito; com tanto que não estejam legitimamente proscritos por espaço de quarenta anos; e serão seus ossos desenterrados e tirados das igrejas, adros, ou de qualquer outra sepultura eclesiástica em que estiverem, podendo-se separar os ossos dos pés cristãos, e levados com sua estátua ao Auto público da Fé, e relaxados à justiça secular.


Eis aí o que a Inquisição fazia aos próprios mortos! Nem a paz dos túmulos respeitavam aqueles bárbaros!


Só no fim de 40 anos se julgavam os crimes prescriptos; e por isso, durante aquele longo espaço de tempo, nenhum filho em relação ao pai, o pai em relação ao filho, a mulher a seu marido e vice-versa, e em geral todos os herdeiros, se podiam julgar seguros na posse de seus bens; nem estar descansados de que aquelas hienas de nova espécie, não viriam desenterrar os ossos dos seus antepassados e levá-los (coisa horrorosa!) com a sua estátua ao auto público da fé, para aí serem relaxados à justiça secular, isto é, serem queimados!


Se os defuntos não escapavam aos inquisidores, não podiam ter melhor sorte os doidos!


Aos que endoidecessem nos cárceres do Santo Ofício (e a quantos ali acontecia essa infelicidade!) fazia o regimento de 1640 a extrema graça de não serem castigados. Não se dará (dizia o regimento) pena corporal, pois o juizo é incapaz dele.


Ora na verdade, já era grande tolerância não castigar um doido! Mas julgam que ficaria aqui a caridade dos inquisidores? Não. Acrescentava logo o regimento: E ficarão seus bens em sequestro, para que tornando o seu juizo, ou falecendo naquele estado, se proceda contra ele, ou contra sua memória e fama; e sendo prova legítima, será condenado em confiscação dos bens e danada sua fama e memória.


E que os inquisidores quando quizessem alcançariam prova legítima, não oferecia a menor dúvida. Tratava-se de roubar os bens do preso, e por isso estivessem certos de que apareceriam provas mais claras que a luz do sol!


A Inquisição prolongava quanto podia, para martirizar os réus, o seu tempo de prisão, e só tinham pressa de os julgar depois de mortos. Vamos agora dar um exemplo bem frisante deste procedimento inquisitorial.


Em 1666 mandou a Inquisição de Coimbra prender D. Margarida de Melo Pina, filha de Francisco de Pina Perestrelo, natural de Montemor-o-Velho e casada com seu primo Manuel da Fonseca Pina. Era acusada de ser cristã nova.


Foi levada na forma do costume para os tenebrosos cárceres da Inquisição. Ali, em uma daquelas casas da mais exígua dimensão, recebendo uma fraca claridade por uma muito pequena fresta, quase junto ao tecto, jazendo pelo espaço de - dezassete anos (17) – a infeliz D. Margarida de Melo Pina, sem ser julgada!


No fim deste longo período, tendo falecido nos cárceres da Inquisição, é que os inquiridores se apressaram a julgar a ré. A sentença lida no auto celebrado na sala da Inquisição desta cidade, em 13 de Março de 1683, foi a seguinte:


Acordam os inquisidores, Ordinário e deputados da Santa Inquisição de Coimbra, que vistos estes autos e culpas de D. Margarida de Melo, cristã velha, viúva de Manuel da Fonseca Pinto, que vivia da sua fazenda, natural e moradora em Montemor-o-Velho, bispado de Coimbra, presa nos cárceres da Inquisição da mesma cidade, e neles defunta; porque se mostra que sendo denunciada no Santo Ofício, que tinha cometido culpas contra a nossa santa fé católica, e sendo por elas presa e por vezes admoestada as quizesse confessar, respondeu que não tinha cometido culpas contra a nossa santa fé católica.


O que tudo visto que dos autos consta, com as resultadas diligências que se fizeram por ordem do Santo Ofício, a respeito da qualidade da ré, e constar delas ser legítima e inteira cristã velha, limpa e sem raça alguma de cristã nova, absolvem a ré D. Margarida de Melo da instância do juizo – e declaram que a seus ossos se pode dar sepultura eclasiástica, e oferecer a Deus por sua alma os sacrifícios e sufrágios da igreja. E mandam que esta senteça se leia na sala desta Inquisição e depois se publique na paroquial igreja da dita vila de Montemor-o-Velho, donde a ré era freguesa, na estação da missa conventual, para que venha a notícia a todos; e lhe seja levantado o sequestro, que em seus bens se lhe haviam feito, e deles se paguem as custas. (aa) Sebastião Dinis Velho. Gonçalo Borges Pinto.


Não tiveram durante 17 anos tempo os infames inquisidores de julgar a infeliz D. Margarida de Melo Pina; e nem depois da sua morte declarar que estava inocente! E apesar de estar inocente, pelos seus bens se paguem as custas!


Sendo a sentença publicada em 13 de Março de 1683, foi no dia 21 do mesmo mês lida na igreja paroquial de S. Martinho de Montemor-o-Velho, à estação da missa conventual, havendo por essa ocasião repiques de sinos, luminárias, muitas festas e sumptuosas exéquias, mandadas fazer pelos parentes da falecida.


Como o cadáver desta senhora tinha sido sepultado no edifício da Inquisição de Coimbra, trataram os seus descendentes, no ano de 1709, de trasladar os ossos dela para a sua capela da Piedade, na referida freguesia de S. Martinho, de Montemor-o-Velho. Aí se lhes deu sepultura, e nela se pôs uma lápide com a sentença gravada, havendo novas exéquias com sermão.


Foi este o último acto de um tão tenebroso drama! Esta senhora, de quem foi descendente o sábio escritor Francisco de Pina e Melo, é presa por cristã nova; sofre durante 17 anos a mais dura prisão nos cárceres do Santo Ofício; e no fim, depois de morta, vêm dizer os inquisidores que era cristã velha, e que apesar de todas as diligências a que procederam, a acharam inocente!


Quadros semelhantes são repugnantíssimos a todas as pessoas dotadas de humanidade; mas é de razão que a geração actual seja sabedora do que nas épocas anteriores se praticava, e possa responder com vantagem àqueles que tratam unicamente de tornar salientes quaisquer actos condenáveis, que se tenham praticado depois de estabelecidas entre nós as instituições liberais.


Convém que os partidários do obscurantismo saibam que ainda se não perdeu a memória das atrocidades que se praticavam em nome de uma religião toda paz e caridade! – Joaquim Martins de Carvalho.



(caderno 17 do Dr. Mesquita de Figueiredo – páginas 86 a 89)


Nota - É sempre bom recordar estas antigas histórias...

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