sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Histórias e Lendas - 17

... e estão situados no território de Montemor para o lado da praia ocidental...


         Este Couto de Tavarede fica na província da Beira, bispado de Coimbra, termo de Montemor-o-Velho no crime. É donatário o ilustríssimo Cabido da Sé de Coimbra e é o que apresenta o seu pároco. Tem 138 fogos vizinhos e 442 pessoas. Está situado num vale e se não descobre coisa notável.
         A paróquia está contígua à terra e nada mais.
         Seu orago é S. Martinho, tem seis altares, que são do do orago, o do Santíssimo Sacramento, o de Nossa Senhora do Rosário, o de Jesus, o de Mártir S. Sebastião e do Senhor das Almas, não tem naves, só tem uma irmandade do Santíssimo Sacramento.
         O pároco é cura apresentado pelo ilustríssimo Cabido, com renda de 16$000 reis. Tem um  convento de recolhidas de Nossa Senhora da Esperança com 22 recolhidas e 2 capelães. Tem três ermidas, do Senhor da Chã, fora da paróquia, do Senhor dos Milagres ou Areeiro, contígua à mesma terra, e de Santo Aleixo, dentro da terra.
         Os frutos da terra em abundância são vinho, milho e algum feijão.
         Tem juiz ordinário das sisas em quatro freguesias pertencentes a este Couto. È Couto e cabeça do concelho da Figueira da Foz.
         Serve-se do correio de Coimbra, donde dista sete léguas. Não tem porto de mar.
         Não padeceu ruína no terramoto de 1755.
         O cura: Anacleto da Cruz.

(Livro manuscrito do dr. Mesquita de Figueiredo nº.  16 – páginas 160 e 161)

O abade D. João de Montemor
A lenda dos degolados


         “ D. João foi abade no Mosteiro do Lorvão e viveu, supostamente, na década de 850, sendo posteriormente alcaide de Montemor-o-Velho, aquando de um ataque dos muçulmanos ao castelo. Liderou uma defesa heróica da vila que levou a criação da canção de gesta do Abade João à lenda de Montemor-o-Velho e edificação da capela de Seiça. O Mosteiro do Lorvão guarda uma parte do crânio do abade como relíquia e peça de exibição” (Wikipédia).

         Segundo alguns estudiosos autores afirmam, o Abade D. João era filho natural de D. Fruela e meio irmão do rei Bermudo, o Diácono, e de D. Afonso, o Católico. Resolveu um dia abandonar a corte dos reis de Leão e os exercícios guerreiros e, esperando a sua salvação, retirou-se para o Mosteiro do Lorvão, onde vestiu o hábito de monge e seguido as regras em vigor.
                                                                     
Castelo de Montemor-o-Velho
    Quando o Abade do Mosteiro morreu, os monges, tendo em consideração o seu virtuoso exemplo, escolheram-no a ele para o lugar. Um dia, sendo visitado pelo seu sobrinho, o rei Ramiro primeiro, este reconhecendo a grande pobreza em que viviam os monges daquele mosteiro, fez-lhes doação de muitos bens, entre os quais estava a vila de Montemor-o-Velho, com todos os seus bens e pertences, impondo a condição de ali estabelecerem um aquartelamento para soldados que defendessem a vila de futuros ataques dos muçulmanos.

Foi o Abade João, acompanhado por diversos monges, para aquela vila, tratando imediatamente do prover o castelo de soldados, armamento e provisões, cumprindo desta forma a imposição de seu sobrinho e rei. Nomeou para o cargo de capitão das tropas um outro seu sobrinho, de nome Bermudo, e mandou edificar um convento em cuja igreja colocou uma imagem de Nossa Senhora, que considerava milagrosa e à qual tinha grande devoção.

Tempos mais tarde foi vítima de uma traição. Um rapaz, de nome Garcia, que o Abade havia criado, pois fora abandonado pelos pais, fugiu da vila indo oferecer-se ao rei mouro Abdarraman de Córdova, para seu serviço, convertendo-se à religião muçulmana, ao mesmo tempo que dava ao rei mouro as informações necessárias para tomar a vila de Montemor-oVelho.

Abderraman concordou e de imediato reuniu um poderoso exército, cujo comando confiou ao traidor, mandando-o sitiar o castelo, tendo feito pelo caminho imensas crueldades e hostilidades. O Abade João, juntamente com seus monges, homens de armas e populares, resistiu valorosamente ao assédio, conseguindo repelir todos os ataques dos mouros.

Não sendo possível receber ajuda, especialmente de Teodomiro, o então abade do Mosteiro do Lorvão e encontrando-se no limite da resistência, por falta de provisões, foi resolvido pelos sitiados sairem e lutar contra os muçulmanos. Mas como não tinham qualquer esperança de os vencer e porque não queriam deixar cair em poder do inimigo nenhum refém, também resolveram sacrificar todos os não combatentes, velhos, mulheres e crianças, degolando-os.

O Abade João deu o exemplo, degolando ele próprio sua irmã D. Urraca e seus sobrinhos crianças. “Fez-se este espantoso sacrifício em uma madrugada. Depois de se confessarem e  comungarem, como o fizeram todas as mais pessoas e em que cada um tirava a vida à coisa que mais amava, derramando o sangue, que via correr da garganta da esposa, da irmã, ou dos filhos, porque os pais e os maridos eram os mais violentos verdugos desta lastimosa execução, que é o caso mais celebrado e mais sentido que se lê nas histórias de Espanha, obrado pela conservação da fé e da castidade”.

 Foi na igreja onde se venerava a imagem de Nossa Senhora com o Menino nos braços, que recolheram os corpos. Depois deste piedoso e cruel acto, abriram as portas do castelo e acometeram o campo inimigo, que não esperavam tal corajoso ataque, pois sabiam do estado lamentável dos sitiados.

O primeiro ataque foi dos soldados comandados pelo seu capitão. Seguiram-nos o povo comandado pelo Abade João, ainda vigoroso e cheio de forças, apesar de já idoso, que vendo o traidor Garcia, entretanto chamado Culema, o atacou tão cheio de ânimo que logo conseguiu derrotá-lo, cortando-lhe a cabeça de um só golpe. De tal forma os mouros ficaram desorientados com a morte do seu chefe, que logo trataram de se salvar fugindo desordenadamente.

As tropas montemorenses foram em perseguição do inimigo até Seiça, que se situa a cerca de quatro léguas de Montemor, onde deram batalha aos muçulmanos fugitivos, os quais derrotaram totalmente. Calcula-se que durante a refrega terão morrido cerca de setenta mil mouros.

“Ao som dos tambores e mais instrumentos bélicos, que tocavam a recolher, e das vozes dos capitães que mandavam cessar no alcance dos inimigos, se recolheram os soldados às suas bandeiras, e achando vivo o Abade João e quasi toda a sua gente, deram infinitas graças a Deus, e passaram o resto da noite em diversos pensamentos, uns nascidos da glória de tão grande vitória e tão inesperada, outros de lástima com a lembrança das mortes que haviam executado em suas mulheres, e filhos e irmãs, em companhia dos quais lhes pudera ser este sucesso mais glorioso e alegre, como ali é triste e aguada a sua falta”.

Quando amanheceu o dia seguinte, e depois de recolherem os mais ricos despojos dos vencidos, preparavam-se os soldados para regressarem à sua vila quando, inesperadamente, receberam a notícia, trazida por alguns populares, de que estavam vivos todos aqueles que haviam deixado mortos em Montemor-o-Velho.

O Abade João, vendo no caso as grandes mercês de Deus, na grande vitória obtida e na maravilhosa ressurreição dos seus mortos, resolveu consigo entregar-se à sua fé, ficando no lugar da batalha, vestido de monge, “tão humilde e pobre aos olhos do mundo, quanto bravo e invencível parecera no dia antecedente aos do inimigo”. 

Regressando à vila Bermudo com os seus soldados e restante povo, encontraram todos os seus familiares que haviam degolado, nos quais “se via um fio como de seda encarnada, e sinal vermelho na garganta, donde se lhes dera o golpe”. Regressou Bermudo depois, ao local onde se dera a batalha, levando consigo os filhos que havia degolado em busca de seu tio, com o qual se encontraram no local onde se travara a batalha.


“... E para melhor conseguir o efeito do seu santo propósito, renuncia da sua abadia, erigiu no próprio lugar ermida à Virgem Santíssima. Esta imagem e do Menino que tem no colo, por cuja intercessão (é de crer) se obrou esta maravilha, conservam ainda hoje nas gargantas os mesmos sinais dos ressuscitados. Da qual e daquele deserto nunca apertadas instâncias dos seus monges puderam diverti-lo. Ali o resto da vida (esquecido das coisas da terra) perseverou em grande santidade, acompanhado de contínuos desejos de pátria celestial. Chegada a hora de seu feliz trânsito, vieram assistir-lhe os monges de Lorvão, em cujos braços (confortado com os últimos sacramentos) carregado de anos e santas obras exalou aquele generoso espírito. Querendo os monges levar seu corpo para lhe daram honorífica sepultura, entre os abades daquela casa, mostrou o Senhor  com manifesto milagre, que lhe não agradava esta mudança, fazendo o corpo do seu servo tão pesado e imóvel, que obrigou os religiosos sepultá-lo na própria ermida, onde permanecem seus ossos debaixo do altar da Senhora, e sua preciosa cabeça entre as relíquias do Lorvão, obrando por ela a mão divina (em pessoas mordidas por cães danados) contínuos milagres”.

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