sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Associativismo - Os princípios (4)




Vamos, então, continuar com as nossas histórias.
Em Outubro de 1878, noticiava-se num jornal figueirense: "Em Tavarede houve ontem uma récita dada por alguns curiosos da localidade. Subiu à cena o 'Último Acto' do sr. Camilo Castelo Branco, e uma comédia". Não nos diz mais nada, pelo que desconhecemos o local da representação.
Já referimos os espectáculos com dramas e comédias na 'sociedade antiga' e na 'sociedade nova'. E em Janeiro de 1879 surge a notícia de que "a sociedade recreativa que este ano já tem dado algumas representações em Tavarede, leva no próximo sábado, dia 10, à cena o 'Auto dos Reis Magos', e termina o espectáculo com o desempenho de algumas comédias"
Faltam, depois, notícias sobre teatro até ao Natal de 1884, quando aparece a tal notícia do abatimento do soalho por ocasião da representação do "Presépio", informando a imprensa que "a população, não querendo esquecer de vez as 'tradições' dos seus 'maiores' organizou festejos celebrando o nascimento de 'Menino Deus'".
Em Fevereiro de 1895, uma 'troupe' de artistas dramáticos que apresentaram diversos espectáculos em Montemor, vieram a Tavarede dar uma récita. Representaram as comédias, num acto, 'Não ha fumo sem fogo', 'Criada impagável', 'Triste fado' e 'Descasca Milho'. Não informa de onde eram os artistas.
Nesse mesmo mês, uma outra notícia informa que "Amanhã vão à cena de novo no teatro de Tavarede as comédias 'A cerração do mar', 'Uma experiência', 'União ibérica' e será recitada uma poesia dramática". Nada mais nos diz. Teria sido no teatro do Terreiro ou no teatro do Paço, provavelmente no primeiro, mas não informa se os artistas seriam os mesmos acima citados ou se seriam amadorezs tavaredenses. Ainda nesse mesmo mês, uma outra notícia informa que "no sábado, 28, vai à cena pela primeira vez no novo teatro de Tavarede (Terreiro ou Paço?) o drama em 3 actos 'O coração dum bandido'".
Logo a seguir, o mesmo jornal informa que o espectáculo terá repetição do domingo seguinte e que, além daquele drama, será apresentada a cena cómiva 'O meu nariz' e uma farsa. "Tomam parte nos espectáculos alguns curiosos da localidade.
No mês seguinte, e no mesmo novo teatro, subiu à cena o drama 'Justiça de Deus' e a comédia 'O cego avarento'.
Finalmente, a partir de Abril daquele ano (1885), começamos a ter mais certezas. "Hoje à noite dá uma troupe de curiosos uma récita particular no theatro de Tavarede, levando à scena o drama em 2 actos - A associação na família - e a comédia num acto - Malifício na família.
É de crer que o desempenho seja correcto, devido aos esforços do nosso respeitável amigo o exmo. sr. João José da Costa, que da melhor vontade acedeu ao pedido que lhe fizeram para tomar a direcção dos ensaios. Folgamos em ver a dedicação d’aquelles filhos do trabalho, que tão bem empregam as horas que lhes restam do seu labor associativo, colhendo assim bastante instrucção
". Foi no teatro do Terreiro e os amadores eram de Tavarede.

Novamente deixamos de ter notícias sobre este tema. Até que, em Abril de 1893, o jornal figueirense 'Operário' informa:" O progresso, na sua marcha constante, vae invadindo tudo. Da cidade à villa e d’esta à mais remota aldeia vão-se observando vestígios da sua passagem.
Vêem a pello estas palavras porque, em Tavarede, pequena povoação perto d’esta cidade, se está organisando uma estudantina de operários que, nas horas vagas, se entreteem na muzica, innocentemente, e muito melhor do que gastando o seu tempo em diversões perniciosas.
Caminhae, caminhae. Adiante! Assim é que é andar.
Escrevendo assim parece-nos divisar umas caretas de taberneiros offendidos… que sentem a concorrência dos cobres à gaveta. É assim; tenham paciência
".


terça-feira, 8 de setembro de 2009

De Casa de Cultura a... taberna!!!

No livro “50 Anos ao Serviço do Povo”, ao recordar as casas “onde se representavam peças que fizeram correr rios de lágrimas e provocaram indigestões de gargalhadas”, Mestre José Ribeiro escreve que, entre outras, havia a de Joaquim Águas, pai do velho capitão José Joaquim Alves Fernandes Águas, “prédio em que mais tarde esteve o Grupo Musical Tavaredense”.
Bem sei que já no segundo caderno destas recordações me referi a esta casa, muito em especial quando nela tiveram a sua sede o Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, nos anos de 1914 a 1930 e, depois, o Grémio Educativo e de Instrução Tavaredense, entre 1931 e 1935. É natural, portanto, que me repita nalgumas breves notas, mas considero necessário recordá-las para bem contar a história que se segue, considerando que a casa teve um papel importantíssimo no desenvolvimento cultural na nossa terra, durante mais de cinquenta anos, e que, por circunstâncias várias que procuraremos comentar no decorrer da história, acabou ingloriamente em ruínas, na segunda metade dos anos trinta do século passado, acabando por ter sido reconstruída e reconvertida em estabelecimento de mercearias e vinhos, para se não dizer “taberna” que, aliás, ainda conhecemos muito bem.
Não o fazendo totalmente, ocupava uma boa parte do quarteirão que, actualmente, é limitado a sul, pela Rua A Voz da Justiça, a norte, pela Rua do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, do nascente, pelo Largo D. Maria Amália de Carvalho, e do poente, pela Rua D. Francisco de Mendanha.
“Duas casas, próximo do Largo do Forno. Pertenceram ao falecido Joaquim Alves Fernandes Águas, operário tanoeiro, que ao mesmo tempo empregava algumas vagas do seu labor no trato do amanho da sua quinta do Peso, não muito longe situada ao norte da povoação. Vivia ali com a sua prole, bastante extensa, filhos e filhas, que foram criados senão com uma educação almiscarada de salão, pelo menos educados regularmente, bem morigerados, decentes e eivados de espírito trabalhador”.
Já sabemos quem foi este Joaquim Águas, que, pelos anos setenta do século dezanove, veio para a Figueira, onde começou por abrir uma oficina de tanoaria, a que se seguiu a fundação, com seus filhos, da casa Águas & Cª., que foi uma sociedade comercial de sucesso, especialmente no comércio e exportação de vinhos e seus derivados e nos transportes marítimos, de curto e longo curso.
Ainda em Tavarede, o velho Águas, para quem o tradicional “Presépio” era o melhor dos seus divertimentos, resolveu instalar, numa daquelas casas, um pequeno teatrinho, onde ele e seus filhos representaram diversas peças, especialmente aquela sobre o nascimento de Jesus, ficando registada a interessante notícia de que, nalgumas representações, os amadores se “travestiam”, ou seja, as mulheres representavam de homens e os homens de mulheres.
Com a mudança para a Figueira da Foz da família Águas, a casa em que residiam julgo que terá passado a ser a morada do então pároco de Tavarede, o padre António Augusto da Silva Nobreza, pois que, em “Recordações de Tavarede” se escreve “na casa da Rua Direita onde habitava o falecido velho Águas, está hoje o digno pároco da freguesia, sr. Joaquim da Costa e Silva, um ornamento da vida eclesiástica, que bem concebe, perante a ciência do século, qual o seu lugar como padre e como cidadão”. Presumo, portanto, que durante alguns anos tenha sido a residência paroquial.
Na casa ao lado, onde havia sido montado o pequeno e tosco teatro, instalou-se em 1895, o intitulado “Bijou Feminino”. Este teatro era animado pelo conhecido artista canteiro António da Silva Proa, enquanto que, certamente por influência de seu filho, João Nunes da Silva Proa, se organizou uma tuna que, em 1896, era dirigida por J. Teixeira Ferreira, “muito ilustrado professor nesta cidade”. Esta associação, “Bijou”, foi muito acarinhada pelo capitalista e fundador da Quinta do Robim, o sr. João António da Luz Robim Borges, e pelo reverendo Joaquim da Costa e Silva, que muito se interessou pelo teatro e pela organização da tuna, chegando a “andar de porta em porta pedindo aos sócios da Estudantina para saírem dela e irem para uma outra que ele quer organizar”.
A casa do teatrinho ficou vaga quando acabou a actividade do “Bijou Tavaredense”. Não devo estar errado se disser que o seu declínio se terá ficado a dever ao falecimento, em Maio de 1897, do seu principal protector, o sr. Robim Borges.

Representação de 'O Presépio' pelo Grupo Musical e de Instrução Tavaredense


Em Julho de 1914, uma notícia na “Gazeta da Figueira”, escreve: “O apreciado Grupo Musical Tavaredense acaba de mudar a sua sede para os prédios ultimamente comprados pelo seu dedicado sócio protector, sr. Manuel da Silva Jordão, dos Carritos, os quais ficam situados mesmo ao centro da povoação e são aproveitados para a instalação da aula de música e de um elegante teatrinho, que já anda a ser construído. A direcção do Grupo Musical está muito grata para com o seu consócio sr. Jordão, por esta gentileza que muito concorre para o engrandecimento da agremiação”.
Já sabemos que estas casas eram as antigas casas da família Águas. O Grupo Musical, que se havia fundado em Agosto de 1911 e desenvolvia as suas actividades teatrais e musicais numa loja junto ao Largo do Paço, em condições muito deficientes, aceitou a oferta daquele seu benfeitor, que a havia feito “motivado pelos fins propostos pelos activos dirigentes da nova associação”, e que, além disso, colaborou financeiramente nas obras necessárias para a construção de uma boa sala de espectáculos.
A inauguração teve lugar em Janeiro de 1915.
A partir de então, a colectividade tomou grande incremento cultural, desdobrando a sua actividade pelo teatro, música, escola nocturna, ginástica, desporto e convívio e tal foi o desenvolvimento que, poucos anos decorridos, se viu na necessidade de fazer novas obras para boa acomodação de todas estas actividades.
Também já lhes contei a compra da sede pelo Grupo Musical àquele seu sócio protector, em condições excepcionais. Todavia, os gastos feitos com as obras de transformação da casa foram muito elevados e, apesar das tais “condições excepcionais”, a verdade é que em 1928, mais de cinco anos depois da compra, ainda faltava pagar cerca de metade.
Bem se esforçaram os grupistas para satisfazerem o pagamento que o sr. Jordão acabou por exigir, por carta de Junho de 1928, lhe fosse feito em Novembro desse ano. Fizeram espectáculos em diversas localidades, com o grupo dramático e com a tuna, na tentativa de obterem fundos, pelo menos para amortizarem a dívida, pois, na verdade, nunca entregaram mais qualquer importância, falhando inteiramente as condições acordadas. Até garraiadas no Coliseu Figueirense, mas tudo foi insuficiente.
Ainda tentaram um empréstimo bancário com hipoteca do edifício, mas as negociações com a agência do Banco de Portugal na Figueira não se concretizaram. E assim, embora com bastante mágoa de todos, foram obrigados a pôr a casa em venda.
Apenas como curiosidade, recordo este facto muito interessante: Em 1915, o sr. Manuel da Silva Jordão foi nomeado sócio benemérito e foi-lhe descerrado o retrato, num ambiente de enorme entusiasmo. Em Maio de 1924, o sr. Jordão concorda em vender o edifício, concedendo-lhes as maiores facilidades para o pagamento; em Março de 1929, “o presidente da direcção deu conhecimento que já havia liquidado contas com o principal credor do Grupo, sr. Manuel da Silva Jordão, propondo que o mesmo sr. fosse suspenso de sócio até à realização da primeira Assembleia Geral, pela qual deverá ser demitido, para o que se tem em vista o que se encontra estatuído, pois não só difamou o Grupo como menosprezou a honorabilidade de todos os componentes da sua direcção e ainda que, em atenção à incorrecção manifestada, ou por outra, posta em prática pelo mesmo sr. Jordão, propôs também que lhe fosse retirado imediatamente, da nossa sala de espectáculos, a sua fotografia, que ali se achava exposta…”. Passou, assim, de desejado a indesejado, de benemérito e protector a difamador!...
Quais as razões concretas? Por querer receber o seu dinheiro? Concretamente não sei, mas estou inteiramente convencido que houve interferências e interesses estranhos.
A casa foi comprada por um tavaredense, António de Oliveira Lopes. Uma das condições contratuais, era a de que o Grupo continuaria ali instalado mediante o pagamento de uma renda. Note-se que o comprador, à data da operação, era um dos directores da colectividade.
Os esforços realizados acabaram num fracasso. Os encargos assumidos com as obras, que também não haviam sido completamente pagos, e, talvez os tais interesses estranhos, levaram a que o novo proprietário da casa, poucos meses após a compra, não vendo liquidadas as rendas já vencidas, meteu uma acção de despejo em Tribunal e o Grupo Musical foi obrigado a deixar aquelas instalações que tanto sacrifício haviam exigido!
Antes de avançar com a nossa história, entendo conveniente fazer um breve comentário que, talvez, explique em parte a situação acima referida.
No dia 12 de Agosto de 1928, domingo, havia partido de manhã uma excursão, em camioneta de aluguer, com tavaredenses e figueirenses que, sob a direcção do reverendo padre Manuel Vicente, foram em peregrinação a Fátima, afim de participarem nas cerimónias religiosas que ali se realizariam nessa noite e no dia seguinte.
Por volta das 5 horas da tarde e no lugar de Reguengo do Fetal, entre Batalha e Fátima, uma ultrapassagem mal feita por uma outra camioneta, fez com que o condutor da camioneta da peregrinação tavaredense perdesse a direcção e, resvalando para um declive, a camioneta desse uma volta sobre si antes de se imobilizar.
Com gravidade ficaram somente feridos dois peregrinos: Abílio Simões Baltazar, um dos proprietários da Quinta do Robim, que dado o seu estado crítico foi enviado para casa, onde faleceu pouco depois da chegada “no meio de horrorosos sofrimentos” e o padre Manuel Vicente, que sofreu uma forte comoção cerebral e apresentava contusões graves. Foi internado no hospital de Leiria e, apesar de todos os socorros prestados, ali faleceu poucos dias depois.
O padre Manuel Vicente era muito acarinhado e admirado pelo povo da freguesia. O seu trato afável havia conquistado a maioria dos tavaredenses e chegou a acompanhar, com relativa actividade, a vida associativa local. Só assim se compreende que, ao contrário do que se verificou em tantas outras paróquias, o padre Manuel Vicente tenha atravessado, com alguma facilidade, dois períodos bastante difíceis. Primeiro, em 1910, com a implantação da República e as fortes lutas contra os tradicionais privilégios da Igreja, e depois o 28 de Maio de 1926, que terminou com o regime republicano e do qual veio a resultar a sinistra ditadura salazarista.
Para sua substituição foi nomeado o reverendo padre José Martins da Cruz Dinis. Muito jovem, acabara de ser ordenado padre, bastante inteligente e declaradamente conservador, logo tentou a “reconversão” dos seus novos paroquianos, pois havia ficado muito surpreendido com a pouca participação religiosa da maioria da população local.
As colectividades eram um local propício à participação popular, pelas actividades que desenvolviam. E o novo pároco de imediato pensou na fundação de uma nova colectividade, intimamente ligada à religião.
Não vou especular o caso, mas, na verdade, ainda bem conhecemos os responsáveis do Grupo Musical daquela época. Os republicanos liberais, digamos assim, acabaram por levar o Grupo para as instalações do Paço, onde se mantiveram durante muitos anos. Os restantes, muito religiosos e conservadores, não os acompanharam.
Pouco tempo depois do despejo do Grupo Musical, o proprietário António Lopes vendeu o edifício à Diocese de Coimbra, pois a sociedade “Predial Económica”, em nome de quem foi feita a escritura, era propriedade, na totalidade, daquela Diocese.
Sabe-se que a compra foi feita devido à influência do padre Cruz Dinis. Sabe-se que um dos seus ideais era fundar uma colectividade de índole religiosa. Estará aqui a explicação para o “ultimato” feito pelo sr. Jordão ao Grupo Musical? Não avanço mais na especulação, mas sempre digo que, pelo que apurei, aquele senhor era católico praticante.
No ano de 1931 é fundado o Grémio Educativo e de Instrução Tavaredense. Foi seu presidente da Direcção o reverendo Cruz Dinis.
Aquela casa continuou, então, a sua acção cultural. As instalações, no dizer da imprensa figueirense, eram das melhores em aldeias do concelho. Aos amadores do teatro e da música que não haviam seguido com o Grupo Musical, outros se juntaram. Além de alguns espectáculos, muito em especial dirigidos às crianças, também a colectividade passou a dar aulas nocturnas, sob a direcção do padre Dinis que, anteriormente, dava as lições na sua residência.
Não quero questionar a actividade religiosa, educacional e cultural daquele pároco. Ela foi grande, é fora de dúvidas. No entanto, e em minha opinião, depois de ter lido e relido tudo quanto há para ler, relativo àquele período, ele politizou em demasia a sua acção. Foram anos de duras e violentas lutas. Republicanos e conservadores, estes protegidos pela capa ditatorial do novo regime, defrontavam-se ferozmente, em especial nos órgãos jornalísticos que lhes davam cobertura.
E em Setembro de 1935, o reverendo padre José Martins da Cruz Dinis foi transferido, a seu pedido, para a paróquia de S. Paulo de Frades, em Coimbra, depois de aqui ter permanecido 7 anos.
Com ele acabou o Grémio Educativo. Ele era a sua alma. Mas, a nossa casa, continuou de pé. A obra cultural lá realizada durante tantos anos acabara de vez. Mas a nossa história ainda não acaba aqui. Continuemos.
Sem actividade, naturalmente que o edifício se começou a degradar. O proprietário estava longe, em Coimbra, e a Diocese interessou-se mais em vender a casa do que em fazer obras.
No dia 22 de Outubro de 1938, o jornal “O Figueirense” publicou a seguinte local sob o título “Incoerências”:
“O último número do semanário da Figueira da Foz “O Dever”, publica um interessante e oportuno artigo anónimo, sobre “tabernas”, com que estamos inteiramente de acordo, dada a boa doutrina que defende.
Nele se classifica a taberna de enorme desgraça individual e social e “o maior foco de infecção social”, o que ninguém se atreverá a contestar.
O pior é que, noutro local do mesmo número, se considera acertada a resolução dum proprietário, vendendo, para instalação duma taberna, a casa que possuía em Tavarede – Figueira da Foz, outrora sede duma associação católica.
Afinal, é bico ou cabeça?
Sem comentários…
O que o prezado colega não sabe é que a propriedade em referência, era pertença dum alto dignitário eclesiástico e a sua resolução é tanto mais para deplorar quanto é certo que a venda do prédio foi feita sonegadamente, depois de prometido à Comissão Organizadora para instalação da Casa do Povo de Tavarede”.
Como se vê tinha sido organizada uma comissão para instalar, na nossa terra, uma Casa do Povo, um dos organismos corporativos que o regime ditatorial espalhou com abundância pelo país, sob a tutela da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, argumentando casas de cultura e recreio populares mas, efectivamente, com o objectivo maior de fazer propaganda à sua ideologia política.
A casa onde esteve instalado o Grémio Educativo pertencia à Diocese de Coimbra. Ora, e com muita lógica, a referida Comissão Organizadora pensou que aquele edifício, já meio degradado, era uma boa solução para a instalação da Casa do Povo, fazendo, claro, as necessárias obras.
Poucos dias depois daquela notícia, em correspondência de Tavarede, “O Dever” escreve: “Segundo nos consta e é voz corrente, o Governo vai entregar à comissão organizadora da Casa do Povo de Tavarede, a quantia de trinta ou trinta e cinco contos para a construção da Casa do Povo de Tavarede, em local apropriado, pois que a casa que foi sede do Grémio não foi achada em condições, não só por se ter reconhecido pequena, mas por estar muito deteriorada.
…………………..
Afinal, temos de felicitar-nos por a casa do Grémio ter sido vendida, sem o que não teríamos um edifício novo para a Casa do Povo, e que foi apenas leviandade o barulho agressivo contra as pessoas julgadas com intervenção na sua venda”.
Começou, de imediato, tremenda polémica. A comissão organizadora, em carta dirigida àquele periódico procura rebater a notícia e escreve em determinado lugar: “…… Também não tem o menor fundamento que a chamada casa do Grémio, que a Comissão se propunha adquirir contraindo um empréstimo particular, fosse reprovada por ser pequena e estar deteriorada. Pelo contrário, foi e continua a ser considerada a que reúne as melhores condições de adaptação e ampliação (quando necessária) de todos os prédios existentes nesta povoação. Seria, além disso, ingenuidade supor que com 30 ou 35 contos (que se não sabe se virão) obteríamos um prédio novo, maior, e em melhores circunstâncias”. Termina a carta com a bem conhecida frase “A bem da Nação”.
Eu não queria alongar-me muito com algumas transcrições desta polémica. Ela foi longa. Mas, para que bem se fique a conhecer a história da casa em questão, terei de fazer mais algumas pequenas transcrições, das partes mais significativas e que me parecem de mais interesse.
O que estava em causa era se o Bispo de Coimbra, conhecedor dos desejos da Comissão Organizadora da Casa do Povo tinha ou não tinha prometido vender-lhes a casa. “O Dever” dizia que não e alegava:
"……… Mas porque não comprou? Desde que sugerimos a fundação da Casa do Povo de Tavarede – fomos nós da ideia – até à venda da casa do Grémio, decorreram muitos meses.
Desde que a Junta de Freguesia e muitas outras pessoas tiveram conhecimento da existência dum segundo pretendente, até ao encerramento do contrato de venda, decorreu tempo mais que suficiente para se prevenir. A sociedade proprietária teria muito prazer em vender o seu prédio para instalação da Casa do Povo, desde que alguém aparecesse com dinheiro e disposto a fechar contrato real e imediatamente”.
Mais à frente, acrescenta: “Isto mostra bem que o nosso correspondente teve razão em achar acertada a venda a um comprador certo, para se evitarem maiores prejuízos, visto que a Casa do Povo, em organização, ainda hoje não é comprador, pois hesita no caminho a seguir; e, portanto, que foi leviandade grosseira o barulho agressivo contra as pessoas julgadas com intervenção na sua venda. Os 35 contos do Estado, com alguns contos de compra e adaptação com que a Comissão se propunha adquirir e casa do Grémio contraindo um empréstimo particular, dariam mais de 60 contos com o que, é absolutamente certo, se construiria uma casa melhor do que a do Grémio, tanto mais que seria possível obter terreno de graça e outras ajudas”.
O debate jornalístico tornou-se inevitável. Por seu lado, a Comissão Organizadora tentava, com todos os elementos de que dispunha, argumentar que tinha razão, pois que o Bispo de Coimbra havia-lhes prometido todo o apoio e esse apoio, entendiam eles, incluía a cedência da casa.
Os meses de Novembro e Dezembro de 1938 foram férteis em comunicados de defesa, de ataque e, até, de questões que, na verdade, nada tinham com o problema, pois alguns foram meros ataques pessoais. Como recordação fica o nome dos dois principais intervenientes nesta longa polémica: em “O Dever”, que defendia a venda a um particular, o padre Alfredo de Melo Abrantes Couto, prior de Buarcos e encarregado temporariamente da paróquia de Tavarede, e em “O Figueirense”, em nome da Comissão Organizadora, esteve Belarmino Pedro.
Conheci relativamente bem os dois. Posso adiantar que, durante os poucos anos que o padre Abrantes Couto foi responsável pela paróquia de Tavarede, não teve vida nada fácil. Queixava-se, bastante, que o parco rendimento que aqui tirava, nem de longe nem de perto compensava o seu trabalho. Belarmino Pedro, que posteriormente integrou a redacção do jornal “A Voz da Figueira”, foi interveniente em várias polémicas com pessoas ou sobre assuntos da nossa terra, algumas, igualmente, bastante violentas.
Nesta história, se calhar, todos teriam razão. Ou talvez não. A verdade é que, com promessas ou sem promessas, a casa teve outro destino. Também, e como se sabe, a fundação do tal organismo corporativo, a Casa do Povo de Tavarede, prevista pela interessadíssima comissão, que tão brava e heroicamente lutou pela sua fundação, não passou de uma “vã quimera”, ou de um sonho que se esfumou.
Pelos vistos, o apoio que esperava do Estado e que estimaram em 30 ou 35 contos, que era bastante dinheiro para a época, nunca terá sido prometido e muito menos disponibilizado. Como aparte, indico que o prédio havia sido adquirido a António Lopes por 24 contos e foi vendido a António Pedro Carvalho por 10.
O que verdadeiramente interessava era contar a história daquela velha casa. Talvez tenha abusado nas transcrições, mas posso dizer que só transcrevi uma pequeníssima parte, mas o que não foi transcrito, além de nada mais adiantar, tornaria demasiado enfadonha a história. Preferi, e entendo que com acerto, ficar por aqui.
E vou concluir com um facto bastante irónico. O novo proprietário da casa, que a reconstruíu e onde montou um estabelecimento de mercearias e vinhos, onde não faltava uma grande taberna e um retiro, no quintal, para os petiscos e para jogos diversos, conhecedor de toda a polémica que a sua compra desencadeou e sabendo qual era a finalidade para que queriam as antigas instalações associativas, resolveu, talvez sarcasticamente, dar um nome ao seu novo estabelecimento. Chamou-lhe, e mandou escrever na fachada do edifício, em letras enormes, “A LOJA DO POVO”.
Sem mais comentários!


(Caderno: Tavarede - A Terra de meus Avós - 3º.)

O relógio do senhor ex-presidente...


António Pedro de Carvalho, conhecido por António Lameira, foi comerciante, com estabelecimento de mercearias e vinhos. Era natural do lugar de Lameira, da freguesia de Luso, Mealhada, e casou com Etelvina Pereira, da mesma localidade.
Profissionais do mesmo ramo, manteve grande rivalidade com António Lopes. Tiveram mesmo graves desavenças. No entanto, vamos recordar um episódio ocorrido entre os dois, que, na verdade, acabou por ter graça e que ocorreu em Agosto de 1961.
António Lopes deixara o cargo de presidente da Junta de Freguesia e era o correspondente local do jornal “O Figueirense”. Passou, até, a ser um grande crítico em relação à actividade daquele órgão autárquico. Escreveu, então, uma local, sobre o funcionamento do relógio da torre da Igreja, que havia sido adquirido por subscrição pública, onde referia “…um destes últimos dias, eram sete horas e dez minutos no nosso companheiro de há mais de quarenta anos e que diariamente acertamos pela Emissora Nacional, os ponteiros do relógio da torre de Tavarede marcavam seis e meia horas e ouvimos, nada mais nada menos, do que bater… treze badaladas!”.
António Carvalho não perdeu a oportunidade para mais uma “ferroada”. Escreveu para aquele jornal uma carta de onde recortamos este pedaço: “
Tem toda a razão o seu solícito correspondente, sr. Director! Toda a razão!
Mas eu peço a devida licença para dizer que, com todo o arrazoado de agora — e outros de igual quilate em números transactos - o correspondente pretende talvez que, quem tem a infelicidade de o ler, se convença de que caiu sobre esta terra, de há dois anos para cá, uma série de desgraças só pelo facto da Junta de Freguesia não ser ainda presidida pela pessoa que durante 14 anos desempenhou essas funções a seu belo talante.
Se é como suponho, aconselho que tenha mais calma, pois pode candidatar-se daqui por dois anos e pico e montar negócio dentro do burgo. Isto, agora, é uma calamidade!
Mas o que eu lamento — e o que toda a gente de bom senso certamente também lamenta - é que só agora o seu correspondente veja que o relógio anda "desorientado", pois é doença - congénita! - que trouxe já da terra onde foi fabricado — Tarouca.
Ele sabe que é assim; o pobrezito já veio daquela terra enguiçado, e talvez tenha até - quem sabe? - responsabilidade na sua aquisição. E se a doença - de nascença! - tem cura, o remédio devia ter-lhe sido ministrado por quem de direito, há muitos anos, que bastante tempo para isso tiveram.
Quem hoje no caso podia intervir — se o mal tivesse remédio — responsabilidade alguma tem na aquisição de aparelhagem tão ordinária, que há dilatados anos - ou só agora? - vem desorientando o povo da terra do limonete.
Além disso, julgo não ser de admirar que o relógio "marque" tão pessimamente, se atendermos aquilo que o seu solícito correspondente diz a respeito do seu próprio relógio... "eram sete horas e dez minutos no nosso companheiro de mais de quarenta anos e que diariamente acertamos pela Emissora Nacional "...
Outra desgraça, senhores da terra do limonete!
Também regula mal o relógio do correspondente em Tavarede do jornal "O Figueirense", pois que diariamente desde há 40 anos, pelo menos, o acerta pela Emissora Nacional! É bem certo que uma desgraça nunca vem só! O facto, que deveras lamentamos! — leva-nos a concluir que o correspondente o adquiriu também na Tarouca; se assim não foi, isto é, se a proveniência é outra e de marca de confiança absoluta, o relógio não regulará bem, pelo facto, - talvez! da companhia...
”.

João António da Luz Robim Borges

Nasceu em Lisboa, em Maio de 1858.
“Descendente de uma família de negociantes, que pela sua actividade e honradez nunca desmentida, alcançaram avultados bens, encontrou-se ainda novo de posse duma fortuna importante… … herdeiro da antiga Quinta do Borges, na Várzea, com dinheiro, com energia e com bom gosto, conseguiu transformar radicalmente o abandonado prédio numa esplendorosa propriedade, numa magnífica vivenda, talvez sem igual no concelho da Figueira”.
Começou por residir numa casa sita na Rua da Lomba, actual Rua José da Silva Fonseca, na Figueira, e quando acabou a construção da sua vivenda na quinta, para ali se mudou com sua família.
Morreu em Novembro de 1908, com 50 anos de idade. “Coração generoso e aberto a todas as manifestações altruístas, espalhou largamente parte dos seus fartos cabedais, em auxiliar os que a ele se dirigiam e que nunca bateram em vão à sua porta”, comenta-se na notícia do seu falecimento.
Havia dotado a sua quinta, que ampliara graças às aquisições dos terrenos limítrofes, com todo o equipamento moderno então existente. Além da agricultura, também a pecuária o entusiasmou, pelo que foi grande empregador de pessoal para trabalharem as terras e cuidarem dos seus gados. Para venda dos seus produtos, abriu um estabelecimento no Bairro Novo.
Foi vereador na Câmara Municipal da Figueira da Foz.
Também se interessou pelo associativismo local. Foi presidente da Direcção do “Bijou Tavaredense”, associação que manteve uma secção dramática e uma tuna, e da qual foi grande animador António Proa.
Foi casado com Pastora Garcia Mensurado, cujo casamento se efectuou na igreja de Tavarede.
Foi protagonista de um episódio muito curioso, em 1892, quando ainda morava na Figueira. João Robim Borges esteve preso na cadeia local “cumprindo uma pena que não significava mais do que uma aplicação de justiça em desafronta da sociedade, porque o sr. Robim aplicara duas bofetadas no sr. Mariano Goulart, por este se ter negado a dar-lhe uma explicação a propósito de palavras menos bem recebidas, proferidas pelo sr. Mariano quando o sr. Robim quase o havia atropelado ao passar por ele de carro”.
Pois, logo que se espalhou a notícia da sua saída da cadeia, foi, em primeiro lugar e pelas horas da “sesta”, a Filarmónica Dez de Agosto tocar à sua porta, felicitando-o. Mais tarde, foi a vez da Figueirense, “tocaram para aí umas quatro peças do seu bom reportório”. E para além do povo, que enchia a rua, lá foi “a corporação dos bombeiros voluntários, na força de uma dúzia ou mais, encapacetados, marchando militarmente”.
E a notícia do acontecimento continuava. “Tanta apresentação na rua vai-lhe dando uns toques de comédia ou de… palhaçada. Esperávamos lá, também, a Associação Comercial, a do Montepio, as diferentes irmandades, empregados públicos, etc. Tudo! Quanto de ridículo e de não sabemos o quê, o sr. Robim encontrará em tudo isto? Se não tivesse a fortuna que tem o que faziam?
… nós felicitamo-lo pela sua soltura da cadeia, porque não podemos esquecer um cavalheiro que do coração abre a sua bolsa aos pobres proletários, valendo a muitos, como o tem feito, enxugando muita lágrima, demonstrando uma alma nobre, o que é sempre apanágio das organizações raras”.


(Caderno: Tavaredenses com história)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

José Luís do Inácio

Natural de Tavarede, faleceu no dia 16 de Setembro de 1889, com 61 anos de idade. Era filho de Inácio Luís e de Maria da Silva Caçoa.
Operário tanoeiro muito competente, era mestre da tanoaria da casa da família Jardim, na Figueira, onde faleceu quase repentinamente, vítima de congestão pulmonar.
Amador teatral muito considerado, era “obrigatório” em todas as sociedades dramáticas em Tavarede. Ernesto Tomás, descreve-nos uma das cenas em que ele participou: “Rompia o espectáculo com uma comédia que, se bem nos recorda, se intitulava Os dois rivais, que nos dava em exibição no princípio, um velho vegete, enamorado de uma criada, fresca e rosada, que tentava a carne mais apática. O papel de velho havia sido distribuído a José do Inácio, que apareceu risonho em cena a mostrar-se à rapaziada da Figueira.
Ainda o pano não havia subido e na plateia o fora, fora, fora, ribombava atroador, soltado por dezenas de gargantas tonificadas pelo bom sol e bom ar dos campos. De súbito, ouviu-se uma voz: pano acima!
A rapaziada da Figueira pespegou com o José do Inácio dentro de um caixão (coisa da peça) o qual depois iria subindo, puxado pela criada namorada, que assim o subtraía às vistas dos amos peticegos… … O caixão, dando balanços desencontrados, fazia com que o Inácio pensasse mais do que uma vez que a comédia descambaria em… tragédia…”.
Era casado com Luísa Genoveva, de nome completo, Luísa Pereira de Figueiredo Tondela, também ela muito afamada amadora teatral. “Foi assim que a vimos representar no drama Os miseráveis de Londres, em que desempenhava o papel de uma mãe desgraçada, lamentando a sorte de um filhinho, que jazia num berço a dormir o sono da inocência…”.
De registar que José Luís do Inácio e Luísa Genoveva foram avós de Helena de Figueiredo, também ela uma das melhores amadoras teatrais tavaredenses.

Associativismo - Os principios (3)

Mais um pequeno apontamento sobre o referido José do Inácio, de nome completo José Luís do Inácio. Havia casado com Luísa Genoveva, também ela amadora teatral. Foi o segundo casamento dela e Estoern descreve-a assim: “... apesar de duas vezes casada, e por isso um pouco gasta fisicamente, apresentava-se ainda com uma frescura de espírito bastante para invejar”. Foi, por esse tempo, que o casal protagonizou um drama intitulado “Os miseráveis de Londres”, levado à cena no teatro da Casa do Paço.
Luísa Genoveva desempenhava o papel de “uma mãe desgraçada, lamentando a sorte dum filhinho, que jazia num berço a dormir o sono da inocência, enquanto a infelicidade lhe pairava em volta, abrindo-lhe a vereda do fatalismo”. Era um dos então chamados “dramas de faca e alguidar”...
Como curiosidade, referimos que José do Inácio e Luísa Genoveva foram avós de Helena Figueiredo Medina, que, durante alguns anos e a partir de 1914, viria a ocupar o primeiro lugar das figuras femininas no grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense. A seu tempo voltaremos a esta amadora.
Entretanto, nos inícios da década de 1870, a situação modificara-se. O senhor João José da Costa, da Quinta dos Condados, que foi um grande benemérito do povo de Tavarede, tendo sido, inclusivamente, presidente da Junta de Paróquia, depois de haver presidido, por dois mandatos, ao município figueirense, era o proprietário da casa onde funcionava o chamado “teatro do Terreiro”. Foi ele, em 1842, um dos organizadores da Filarmónica Figueirense.
Conhecendo o gosto pelo teatro das gentes de Tavarede, e sabendo das dificuldades com que lutavam nas deficientíssimas salas de espectáculos de então, mandou transformar aquela sua casa num moderno teatro, apetrechando-o nas melhores condições existentes à época.
Fachada do teatro mandado construir pelo sr. João Costa

Pela mesma ocasião, e como já se referiu, também o senhor Conde de Tavarede havia instalado, no seu solar, uma sala de espectáculos, a que deu o nome de “Teatro Duque de Saldanha”, um dos seus avós. Logo se formaram dois grupos de amadores, recrutados entre os componentes das nossas conhecidas “sociedades dramáticas”. Algumas destas, no entanto, ainda persistiram mais algum tempo.
No ano de 1879, o jornal “Correspondência da Figueira”, em local de Tavarede, publica a seguinte notícia: “No próximo sábado, dia 15, duas sociedades de curiosos da localidade, tencionam dar, cada uma em seu respectivo 'soi-disant' teatro, duas récitas. Uma das sociedades, a sociedade antiga, leva à cena o drama em 3 actos “A escravatura branca”; a outra, a sociedade nova, representa o drama em dois actos intitulado “Cravos e Rosas”, a comédia em 1 acto “Mulher por duas horas” e a comédia “Mulher que perde as ligas”, também num acto”.
Não conseguimos apurar, com toda a certeza, qual seria a sociedade antiga e qual a sociedade nova. Atrevemo-nos, convencidos, até, de que acertamos, em situar a primeira na casa do Terreiro (no teatro do sr. João Costa) e a segunda na casa do Paço (no teatro Duque de Saldanha).

"Nós aplaudimos sinceramente esta ideia, de alguns rapazes daquela localidade. Sempre é melhor ouvir a declamação de uma peça de teatro por um actor 'gauché' e o desempenho comprometido de uma actriz de aldeiado que dizer bisbilhotices por casas alheias e gastar a dignidade por tabernas imundas", comenta-se naquela noticia.
Não se julgue, no entanto, que tais espectáculos eram inteiramente pacíficos. A notícia, depois de louvar e elogiar a actividade dos amadores, pela sua troca da “bisca-sueca” das imundas tabernas, pelos proveitosos ensaios nas longas e tristes noites de inverno, pede ao administrador do concelho que tome as providências necessárias “para se não dar, durante as duas representações, algum conflito desagradável entre os curiosos das plateias dos referidos teatros”.
Ainda voltaremos, pelo menos a uma, das antigas “sociedades dramáticas”. Iremos recordar aquela que foi da família Águas. Mas, por agora, vamos narrar um caso que reputamos de interessante. Dispondo já de duas casas de espectáculos com boas condições, ainda se representava noutros locais. A tradição do “Presépio”, pelo Natal, era tão forte que, em Dezembro de 1884, se levaram à cena os “Autos Pastoris” numa das antigas sociedades, com palco e plateia improvisados. Diz-nos uma notícia que “a meio do espectáculo, abateu parte do soalho, indo parar à loja alguns dos espectadores”.
Não houve, felizmente, ferimentos graves, mas temos pena de não conseguir identificar a casa onde aconteceu este “acidente”.


(continua)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O Vale de S. Paio

Esta pequena nota tem como destino o Brasil, mais propriamente o lugar de Pederneiras, até onde chegaram os "ecos" deste meu blogue e das histórias de Tavarede que aqui vou contando.

Pois, minha cara Senhora Lilian, tenho muito gosto em recordar um pouco daquela zona tavaredense onde viveu a minha conterrânea Preciosa Rodrigues Fileno Mota (Mota deve ser o apelido do marido) que, apesar de tão distante, não esquece a terra onde nasceu.

E ela tem razão em ter essas saudades. Nós próprios as sentimos, pois aquele aprazível local chamado "Prazo", termo norte do Vale de S. Paio, era um verdadeiro encanto. Toda aquela zona era amorosamente cultivada e tratada pelos seus proprietários ou arrendatários. O vale, por onde corria, embora já com pouca água, o ribeiro nascido na nascente "Olho de Perdiz" e que vinha regar as várzeas de Tavarede, era um jardim e uma horta sempre verdejante. As encostas, tanto do lado da Serra da Boa Viagem como do lado do Saltadouro, eram cobertas por enormes searas de milho, trigo, centeio e outros cereais, e por vinhas e pomares, tudo tratado a primor.

Vou transcrever um breve apontamento que se refere à capela do S. Paio.

"Está integrada na Quinta do Praso – Vale de São Paio – ao Saltadouro. Cerca de 2 quilómetros a montante de Tavarede, e a 1 do lado nascente da povoação da Serra da Boa Viagem, encontrava-se, em 1932, assim descrita, na matriz urbana da freguesia de Tavarede, sob o artº. 405, em nome de Maria do Sacramento Monteiro: “uma capela particular, construída de pedra e cal, coberta de telha portuguesa; confronta do N.S.O.E. com pinhais da própria; tem de superfície coberta 14 m2 e de rendimento líquido, 18$00!”.

Fora a quinta adquirida, há largos anos, por Caetano Gaspar Pestana, casado com Maria da Conceição da Silva Pestana, avós paternos das Senhoras Pestanas. Encontrou este a capelinha em ruínas, e mutilada a imagem do patrono, e logo procedeu ao seu restauro, trabalho de que se encarregou, com mestria, o hábil artista-estucador, natural de Afife, Domingos Rodrigues Ennes Ramos, aqui radicado.
Tempo depois, Caetano Pestana, que viria a falecer em 25 de Agosto de 1883, com 63 anos, incompletos, vendia a “Quinta do Praso” à família de Monteiro de Sousa, que ainda a detém, e com ela a capelinha.
É neste Vale de São Paio que existe a famosa nascente “Olho de Perdiz”, donde, durante anos e até ao verão de 1927, a nossa cidade foi abastecida de água potável, exploração feita até 1924 pela “The Anglo-Portuguese Gas and Water Cº. Ltd.”, com sede em Londres, de que era gerente, entre nós, o engº. Walter R. Jones, que ainda conhecemos
".
Entre a capela referida e a casa da Família Fileno, situada no alto da encosta, perto do chamado "caminho dos Pejeiros", havia um enorme pinhal. Hoje está tudo muito diferente, mesmo irreconhecível. A propriedade dos "Filenos" foi vendida, julgo que a um advogado da Figueira. A velha casa de habitação, com celeiro e adega, chegou a ser transformada numa espécie de "boite" ou "discoteca", mas que funcionou pouco tempo. Hoje não sei se lá vive alguém. O caminho que descia até ao vale ha muitos anos que está impraticável.

Os pinhais que por ali existiam foram cortados e os terrenos das encostas plantados a eucalipto. Existiam (e funcionavam) duas azenhas. A segunda era bastante curiosa, pois a água que movimentava a roda era conduzida por uma caleira de madeira em declive. Era um local onde muitas vezes se parava para merendar, pois a água da roda dava uma frescura muito agradável. A velha parede onde trabalhava a roda era coberta de avencas. Tudo isto desapareceu. A pequena bica, situada do outro lado do ribeiro e defronte desta azenha, foi um dia transformada em fonte, com paredes de tijolo. Estava engraçada, embora não fizesse esquecer a bica anterior. O incêndio que há anos destruiu quase completamente a Serra da Boa Viagem, as matas de Quiaios e a encosta sul da Serra, chegando às portas da Figueira, arrasou tudo. A fonte foi destruida com a queda de árvores queimadas e nunca mais foi reconstruida.

As hortas e jardins que por ali abundavam, talvez devido à falta de água, deram lugar a terrenos para criação de cavalos. Transformaram-se em picadeiro.

Mas a capela do S. Paio lá continua, felizmente. Permitam-me que recorde um pouco da sua história:

"Para o nordeste da povoação, a perto de quatro kilometros, e na proximidade do regato que corre ao fundo do Valle de Sampaio ou de S. Paio, existiu em tempo uma capellita com a indicação do Santo que deu o nome ao valle. Pequena, acanhadinha, abrigava o santo a quem os visinhos dedicavam extremosa devoção. Sampaio ou S. Paio, era remedio infalivel para a cura de varios achaques, especialisando - o desapparecimento rapido das verrugas d’aquelles a que a elle recorriam com a necessaria fé. N’uma ribanceira, erma, lá estava o santinho solitario, posto n’um terreno pertencente aos frades cruzios de Coimbra.
O tempo foi fazendo dos seus fregueses uns descrentes desleixados, e a capella foi-se arruinando a pouco e pouco até deixar apenas o vestigio de alicerces.
Tendo sido comprada mais tarde a propriedade pelo fallecido sr. Caetano Gaspar Pestana, d’esta cidade, mandou este, obedecendo a uma obrigação antiga escripturada, levantar de novo a capella e refazer o santo.
S. Paio, era e é de pedra, e andando por uma adega da propriedade a servir, profanamente, de calço a pipas, foi-se aos poucos deteriorando, até que, o sr. Pestana, o mandou concertar collocando-o em seguida na capella em que hoje é venerado.
Pertence hoje a capella e terra circumjacente a António Monteiro, canteiro de Quiaios.
Ha coisa de quatro annos ainda lá foi feita festa ao santo pelo povo da freguesia
".

Eis, minha Senhora, o que em poucas palavras posso recordar o que foi e o que ectualmente é a Quinta do S. Paio, onde residiu a conceituada Família Fileno.
(ver nota em Junho "Festas" - A romaria ao S. Paio