Porque acabaram?
Foi no ano de 1927. No ano anterior, o movimento militar, iniciado em Braga e que seguira até Lisboa, no 28 de Maio, uma vez vencedor, derrubou o regime republicano. Não interessa aqui, pormenorizar o acontecimento histórico, que acabou, pouco depois, por instaurar a ditadura de Salazar, a qual se manteria até ao 25 de Abril de 1974.
Desde a implantação da República, em Outubro de 1910, que o partido republicano, no poder, travou dura luta contra a igreja católica, até então detentora de grandes privilégios e que tinha enorme influência política nos destinos do país. Foi natural, portanto, que, com o movimento atrás referido, imediatamente procurasse reconquistar o seu anterior poder e influência.
Como habitualmente, naquele ano de 1927, a comissão promotora das tradicionais festas sanjoaninas, tratou da organização e marcou-as para os dias 30 e 31 de Julho. Do programa previsto, para além das costumadas cerimónias religiosas, previam-se as “ornamentações, iluminações, fogo de artíficio, concertos pela filarmónica contratada, danças populares com acompanhamento da tuna, cavalhadas com ida à Figueira e a Buarcos, corridas de prémios, etc.”. O tradicional.
Acontece, porém, que semanas antes, o Bispo de Coimbra resolvera comunicar aos padres da sua diocese, que proibissem, pura e simplemente, que as cavalhadas fizessem parte do programa, pois as considerava “pagãs” e, como tal, indignas dos festejos a um santo, por mais popular que o S. João fosse. E, claro, logo pairou a ameaça de excomunhão para quem não obedecesse à deliberação do senhor Bispo...
A Figueira, de que na altura era pároco o bem conhecido reverendo Palrinhas, acatou a ordem sem discussão. Buarcos procedeu do mesmo modo. Até a nossa vizinha Brenha, embora muito lamentosa, não teve as suas cavalhadas, aliás, de pouca tradição naquela freguesia. Restava Tavarede e, com o aproximar da data, redobrava a curiosidade sobre a atitude que tomariam os tavaredenses, tanto mais que tinham anunciado, no seu programa, a realização das mesmas.
Aconteceu, então, o impensável. A comissão dos festeiros, com o apoio da população, resolveu não atender à ordem do senhor Bispo, apesar de todas as tentativas que o nosso padre Manuel Vicente fez para impedir a realização das cavalhadas. Mas ainda foram mais longe no seu atrevimento e desafio à Igreja.
Normalmente, as festas eram abrilhantadas por uma das filarmónicas da Figueira e, algumas vezes, pela das Alhadas ou de Santana. Naquele ano, porém, e ao terem conhecimento das ordens do Bispo de Coimbra, os festeiros tomaram uma atitude verdadeiramente reaccionária: contrataram a célebre filarmónica do Troviscal que, pouco tempo antes, havia sido excomungada pela Diocese de Coimbra, com proibição total de participar em festejos desta natureza. É verdade, ainda agora custa a crer como é que a comissão das festas, que até era composta por alguns católicos praticantes, tenha tido tal ousadia. Contratar uma banda excomungada!!!
E, então, divulgou um programa em que se lia: “Sábado, 30, às 18,39 – Recepção, na estação do caminho de ferro da Figueira, da banda do Troviscal, com a comparência da comissão promotora dos festejos, bandas da Figueira e outras associações”. Parece que foi uma recepção triunfal, a que o povo deu colaboração aparecendo em enorme número.
Realizaram-se as festas. Eis um comentário publicado a 3 de Agosto: “O reverendíssimo sr. Bispo de Coimbra está fulo com o povo de Tavarede – e não tardará a despejar sobre a terra do limonete, a sua abençoada excomunhão. Temos de concordar que sua reverendíssima excelência tem razão: - uma comissão de rapazes quiz fazer a festa a S. João, com a função da Igreja – novenas, missa, sermão, etc. – e a tradicional cavalhada; o sr. Bispo exigiu que do programa fosse suprimida a cavalhada – que se fazia desde há muitas dezenas de anos, com as bandeiras da igreja e repiques dos sinos – com o fundamento de que era um número pagão; os festeiros resolveram a questão com grande facilidade, dispensando pura e simplesmente a colaboração da Igreja, arranjando bandeiras não benzidas e, para completar, mandando vir a banda excomungada do Troviscal. E a música veio, a Igreja esteve fechada, e a cavalhada fez-se, correndo tudo na melhor ordem”.
O programa cumpriu-se, com a exclusão da parte religiosa. E as cavalhadas, conforme a tradição, lá foram até à Figueira. “Era uma cavalgada numerosa, com ordem, precedida do ruidoso Zé Pereira, e vendo-se nela também muitos trens cheios de gente alegre”. E lá estava, junto à Igreja de S. Julião, a banda do Troviscal, que tocou enquanto se cumpria a praxe das voltas à igreja, desta vez sem o repique dos sinos.
E, passados os festejos e com os ânimos certamente mais calmos, a imprensa figueirense noticiou:
“Tiveram grande luzimento os festejos populares de S. João, que se realizaram nos dias 30 e 31 do mês findo, com os números tradicionais. Não houve desta vez função religiosa, porque, tendo o sr. Bispo de Coimbra imposto a supressão da tradicional cavalhada, que é, de há longos anos, a característica das festas de S. João em Tavarede, os organizadores dos festejos resolveram, e muito bem, fazer as cavalhadas e dispensar pura e simplesmente a parte religiosa. Para compensar esta falta, veio a excelente banda do Troviscal, que foi apreciadíssima, tanto no concerto que realizou na noite de sábado para domingo, com programa de responsabilidade que teve primorosa execução e foi muito aplaudido, como no de domingo.
Das 2 horas até à madrugada de domingo houve danças populares, que se repetiram no domingo à noite, e na segunda-feira realizou-se a rosquilhada.
As cavalhadas foram muito concorridas, e visitaram a Figueira, onde os esperava a banda do Troviscal, e Buarcos.
A Tavarede veio muita gente dessa cidade e dos lugares vizinhos.
A banda do Troviscal foi aqui alvo de manifestações de simpatia. Cumprimentou as duas associações locais, onde se trocaram saudações calorosas e foi servido aos visitantes um copo-de-água. O regente da banda sr. Oliveira, afirmou-nos que ia penhoradíssimo com as amabilidades que ele e os executantes da sua banda foram alvo.
A igreja esteve fechada em todo o dia, e os católicos ficaram privados da missa.
A-pesar-das prédicas do pároco da freguesia para que ninguém se aproximasse da banda excomungada, não faltou uma enorme multidão a ouvi-la e a aplaudi-la.
E tudo correu na melhor ordem”.
A título de curiosidade, refiro que a mencionada banda havia sido excomungada unicamente por ter acompanhado um funeral civil. É verdade! E sofre dolorosamente a sua “ousadia”. Deixou de ter contratos para abrilhantar as festas populares. Tempos mais tarde encontrei, publicados aqui na Figueira, anúncios para a venda do seu instrumental. Alguns anos depois, voltou a reorganizar-se mas, segundo as notas que colhemos, nunca mais teve a fama e a projecção que havia obtido, especialmente devido à atitude drástica do senhor Bispo de Coimbra.
E, em Tavarede?
Bem, em Tavarede, acabaram para sempre os festejos ao S. João. Nunca mais se realizaram e acabaram por cair no esquecimento de todos. No “Chá de Limonete”, mestre José Ribeiro, no bairrista “Tavarede-Marca”, recorda “Pois quando ressuscitaram o São João, (por volta de 1940) o grande número das festas foram as cavalhadas. Porquê? Porque lá estava Tavarede em peso! A freguesia mandou uma burricada... mais comprida que desde o Rio ao Paço! Os burros eram tantos que a gente nem se via no meio deles... Ganhámos o prémio! Tavarede marca!”...
Com os naturais exageros de uma fantasia teatral, acredito que, efectivamente, Tavarede tenha marcado uma vez mais! Foi a última, neste campo, diga-se.
Desde a implantação da República, em Outubro de 1910, que o partido republicano, no poder, travou dura luta contra a igreja católica, até então detentora de grandes privilégios e que tinha enorme influência política nos destinos do país. Foi natural, portanto, que, com o movimento atrás referido, imediatamente procurasse reconquistar o seu anterior poder e influência.
Como habitualmente, naquele ano de 1927, a comissão promotora das tradicionais festas sanjoaninas, tratou da organização e marcou-as para os dias 30 e 31 de Julho. Do programa previsto, para além das costumadas cerimónias religiosas, previam-se as “ornamentações, iluminações, fogo de artíficio, concertos pela filarmónica contratada, danças populares com acompanhamento da tuna, cavalhadas com ida à Figueira e a Buarcos, corridas de prémios, etc.”. O tradicional.
Acontece, porém, que semanas antes, o Bispo de Coimbra resolvera comunicar aos padres da sua diocese, que proibissem, pura e simplemente, que as cavalhadas fizessem parte do programa, pois as considerava “pagãs” e, como tal, indignas dos festejos a um santo, por mais popular que o S. João fosse. E, claro, logo pairou a ameaça de excomunhão para quem não obedecesse à deliberação do senhor Bispo...
A Figueira, de que na altura era pároco o bem conhecido reverendo Palrinhas, acatou a ordem sem discussão. Buarcos procedeu do mesmo modo. Até a nossa vizinha Brenha, embora muito lamentosa, não teve as suas cavalhadas, aliás, de pouca tradição naquela freguesia. Restava Tavarede e, com o aproximar da data, redobrava a curiosidade sobre a atitude que tomariam os tavaredenses, tanto mais que tinham anunciado, no seu programa, a realização das mesmas.
Aconteceu, então, o impensável. A comissão dos festeiros, com o apoio da população, resolveu não atender à ordem do senhor Bispo, apesar de todas as tentativas que o nosso padre Manuel Vicente fez para impedir a realização das cavalhadas. Mas ainda foram mais longe no seu atrevimento e desafio à Igreja.
Normalmente, as festas eram abrilhantadas por uma das filarmónicas da Figueira e, algumas vezes, pela das Alhadas ou de Santana. Naquele ano, porém, e ao terem conhecimento das ordens do Bispo de Coimbra, os festeiros tomaram uma atitude verdadeiramente reaccionária: contrataram a célebre filarmónica do Troviscal que, pouco tempo antes, havia sido excomungada pela Diocese de Coimbra, com proibição total de participar em festejos desta natureza. É verdade, ainda agora custa a crer como é que a comissão das festas, que até era composta por alguns católicos praticantes, tenha tido tal ousadia. Contratar uma banda excomungada!!!
E, então, divulgou um programa em que se lia: “Sábado, 30, às 18,39 – Recepção, na estação do caminho de ferro da Figueira, da banda do Troviscal, com a comparência da comissão promotora dos festejos, bandas da Figueira e outras associações”. Parece que foi uma recepção triunfal, a que o povo deu colaboração aparecendo em enorme número.
Realizaram-se as festas. Eis um comentário publicado a 3 de Agosto: “O reverendíssimo sr. Bispo de Coimbra está fulo com o povo de Tavarede – e não tardará a despejar sobre a terra do limonete, a sua abençoada excomunhão. Temos de concordar que sua reverendíssima excelência tem razão: - uma comissão de rapazes quiz fazer a festa a S. João, com a função da Igreja – novenas, missa, sermão, etc. – e a tradicional cavalhada; o sr. Bispo exigiu que do programa fosse suprimida a cavalhada – que se fazia desde há muitas dezenas de anos, com as bandeiras da igreja e repiques dos sinos – com o fundamento de que era um número pagão; os festeiros resolveram a questão com grande facilidade, dispensando pura e simplesmente a colaboração da Igreja, arranjando bandeiras não benzidas e, para completar, mandando vir a banda excomungada do Troviscal. E a música veio, a Igreja esteve fechada, e a cavalhada fez-se, correndo tudo na melhor ordem”.
O programa cumpriu-se, com a exclusão da parte religiosa. E as cavalhadas, conforme a tradição, lá foram até à Figueira. “Era uma cavalgada numerosa, com ordem, precedida do ruidoso Zé Pereira, e vendo-se nela também muitos trens cheios de gente alegre”. E lá estava, junto à Igreja de S. Julião, a banda do Troviscal, que tocou enquanto se cumpria a praxe das voltas à igreja, desta vez sem o repique dos sinos.
E, passados os festejos e com os ânimos certamente mais calmos, a imprensa figueirense noticiou:
“Tiveram grande luzimento os festejos populares de S. João, que se realizaram nos dias 30 e 31 do mês findo, com os números tradicionais. Não houve desta vez função religiosa, porque, tendo o sr. Bispo de Coimbra imposto a supressão da tradicional cavalhada, que é, de há longos anos, a característica das festas de S. João em Tavarede, os organizadores dos festejos resolveram, e muito bem, fazer as cavalhadas e dispensar pura e simplesmente a parte religiosa. Para compensar esta falta, veio a excelente banda do Troviscal, que foi apreciadíssima, tanto no concerto que realizou na noite de sábado para domingo, com programa de responsabilidade que teve primorosa execução e foi muito aplaudido, como no de domingo.
Das 2 horas até à madrugada de domingo houve danças populares, que se repetiram no domingo à noite, e na segunda-feira realizou-se a rosquilhada.
As cavalhadas foram muito concorridas, e visitaram a Figueira, onde os esperava a banda do Troviscal, e Buarcos.
A Tavarede veio muita gente dessa cidade e dos lugares vizinhos.
A banda do Troviscal foi aqui alvo de manifestações de simpatia. Cumprimentou as duas associações locais, onde se trocaram saudações calorosas e foi servido aos visitantes um copo-de-água. O regente da banda sr. Oliveira, afirmou-nos que ia penhoradíssimo com as amabilidades que ele e os executantes da sua banda foram alvo.
A igreja esteve fechada em todo o dia, e os católicos ficaram privados da missa.
A-pesar-das prédicas do pároco da freguesia para que ninguém se aproximasse da banda excomungada, não faltou uma enorme multidão a ouvi-la e a aplaudi-la.
E tudo correu na melhor ordem”.
A título de curiosidade, refiro que a mencionada banda havia sido excomungada unicamente por ter acompanhado um funeral civil. É verdade! E sofre dolorosamente a sua “ousadia”. Deixou de ter contratos para abrilhantar as festas populares. Tempos mais tarde encontrei, publicados aqui na Figueira, anúncios para a venda do seu instrumental. Alguns anos depois, voltou a reorganizar-se mas, segundo as notas que colhemos, nunca mais teve a fama e a projecção que havia obtido, especialmente devido à atitude drástica do senhor Bispo de Coimbra.
E, em Tavarede?
Bem, em Tavarede, acabaram para sempre os festejos ao S. João. Nunca mais se realizaram e acabaram por cair no esquecimento de todos. No “Chá de Limonete”, mestre José Ribeiro, no bairrista “Tavarede-Marca”, recorda “Pois quando ressuscitaram o São João, (por volta de 1940) o grande número das festas foram as cavalhadas. Porquê? Porque lá estava Tavarede em peso! A freguesia mandou uma burricada... mais comprida que desde o Rio ao Paço! Os burros eram tantos que a gente nem se via no meio deles... Ganhámos o prémio! Tavarede marca!”...
Com os naturais exageros de uma fantasia teatral, acredito que, efectivamente, Tavarede tenha marcado uma vez mais! Foi a última, neste campo, diga-se.
(Tavarede - A Terra de meus Avós - 3º. caderno)
Amigo Vítor Medina, ou melhor, pelo que a Lita me disse esta tarde, "tio" Vítor Medina,
ResponderEliminarcompreendo perfeitamente que não me tenha respondido ao e-mail, conhecendo e lamentando sinceramente as razões que o levaram a tal.
Agradeço o material que me cedeu, já o tendo em minha posse.
Desejo-lhe muita força!
Cumprimentos,
Inês Fonseca (ou "sobrinha" Inês Fonseca, não sei...)