segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O abastecimento de água à Figueira

Ficámos sem água

No dia 1 de Janeiro de 1889, numa notícia inserida no jornal “Correio da Figueira”, escreve-se a local seguinte: “Prosseguem os trabalhos para a captagem das águas, acima de Tavarede, estando já perfurados aproximadamente 250 metros de galeria. Começou-se o assentamento da canalização, que se acha efectuado desde o Largo do Pinhal, onde tem de ser construído o reservatório, até próximo de Tavarede, numa extensão de mais de 900 metros, que atravessam o caminho da Esperança, e propriedades dos senhores José Joaquim Fernandes Águas e conde de Tavarede. A tubagem desde o reservatório à origem, mede um pouco mais de 3.000 metros”. Na semana seguinte, acrescenta: “Já começou a escavação, no alto do Pinhal, para se construir o depósito, ou grande reservatório de água, que há-de abastecer a Figueira. Pela altura em que aquele sitio fica, virá a água naturalmente, e pela simples pressão, a todos os pontos da cidade. A canalização atravessou hoje a estrada de Tavarede, em direcção à galeria”.
(Junto à nascente "Olho de Perdiz"

Bem sei que não é uma história o que vou contar sobre o que aconteceu com a captação das águas do Prazo para abastecimento à Figueira. Sem dúvida que a cidade, em franca expansão e desenvolvimento naqueles anos, tinha absoluta necessidade de água. Até então o fornecimento era feito pelas fontes da Várzea e da Lapa, principalmente, onde iam buscar a água de que careciam, e por um ou outro poço, cuja água fosse considerada potável. Depois de vários estudos feitos por técnicos especializados, optou-se pela captação do Prazo. Segundo veremos, pelas transcrições que adiante faço, resolveram o problema para alguns anos mas, em compensação, Tavarede, nas suas hortas e várzeas, viu-se despojada de um bem que tinha tão abundante e de tão boa qualidade.
Como acima referi, não vou contar uma história. Mas, acredito, muita gente haverá que gostará de conhecer esta “história”. Não foi pacífica esta exploração. Os estudos, como iremos ver, iniciaram-se em 1880, mas só em Agosto de 1889 “terminaram as questões levantadas a propósito da compra das águas, ou antes do direito de as procurar na propriedade do Prazo, onde a Companhia do Gás e Água desta cidade encetara os seus trabalhos. Pela compra total da propriedade, ficou a companhia possuidora do terreno da questão, podendo agora aproveitar todas as águas ali nascentes – salvo o direito a quem se julgue prejudicado. É caso para nos felicitarmos muito sinceramente, pois o fornecimento de boa água é para a Figueira um objecto de primeira necessidade. E felicitamos igualmente a companhia, muito em especial se findaram de vez os obstáculos a que ela realize os fins a que se propunha”.
E antes de iniciar a começo da viagem, vou já transcrever uma notícia demonstrativa das consequências desta exploração das águas. Vem na “Gazeta da Figueira” de 6 de Maio de 1899:
Aproxima-se o tempo mais ardente do verão e com ele as questões que todos os anos se dão aqui entre os lavradores, motivadas pela falta de água para as regas das suas terras da Várzea, Serrado, Solão, etc. A todos custa ver definharem-se pela sede as suas culturas, cuja sementeira tantos sacrifícios lhes importou, vendo se por isso obrigados a recorrer de qualquer forma ao meio de conduzirem a água ás suas valas, por mais longínquas que elas sejam.
A divisão da água para aqueles pontos é feita no rio, local junto à Igreja, e é ali que todos os dias se levantam questões entre os lavradores, que muitas vezes chegam a tomar carácter de gravidade. Querem uns ser senhores da água continuadamente, quando outros esperam pela sua vez dez, doze, quinze e mais dias!
E não haveria meio mais fácil de obstar a estas desigualdades? Não poderia a autoridade administrativa encarregar o regedor desta freguesia de estabelecer a forma de todos se remediarem com a pouca água que infelizmente chega ao local da divisão, sem haver queixas contra o abuso de alguns indivíduos?
Seria bom que este assunto fosse estudado por quem compete olhar pela manutenção da ordem pública, evitando assim que muitas pessoas dignas de respeito e que têm necessidade de fazer conduzir a água para os seus prédios, ainda que tardiamente, sofram por várias vezes desgostos, ouvindo insultos que lhes dirigem certos indivíduos sem educação, que só vivem praticando o mal. Em contrário, teremos mais dia menos dia que lamentar as funestas consequências deste desleixo.
E dizemos desleixo, porque já de há muitos anos se dão aqui estes factos, sem que até hoje se dignasse dar-lhes as devidas providências qualquer autoridade local, tornando-se portanto necessário que se encare a sério esta questão que, como acima dizemos, pode redundar num grave conflito
”.
Sem mais, vamos, então, até ao ano de 1880. Na apresentação do projecto, que teve como objectivo a “aquisição de águas subterrâneas e execução das obras necessárias para as conduzir à povoação e distribuição destas pelas fontes e pelos domicílios”.
No Prazo - Junto ao ribeiro de Tavarede

O projecto compunha-se de três partes principais:
1º Drenagem do solo por um sistema de galerias subterrâneas para a captação das águas, na região superior do vale da ribeira de Tavarede, no sítio denominado o Prazo;
2º Assentamento da canalização de ferro para a condução das águas à vila;
3º Construção de um reservatório no alto do Pinhal numa altitude superior à de todas as casas da vila, para a fácil e regular distribuição da água pelos chafarizes, que se julgue conveniente estabelecer, e pelos domicílios, quando mais tarde se pretenda este desideratum.
Como não havia à superfície do solo, nos arrabaldes da Figueira, nenhuma nascente assaz copiosa que fornecesse só por si o volume de águas necessário para o abastecimento da vila, foi necessário o recurso à exploração subterrânea. O sítio escolhido para a exploração deveria satisfazer, simultaneamente, às duas condições principais: fornecer água em abundância e fornecê-la em altitude bastante para que, chegando à Figueira com cota assaz elevada, pudesse a todo o tempo distribuir-se pelos domicílios sem haver necessidade de a levantar. Estas condições encontraram-nas, à perfeição, no vale do Prazo, acrescendo a circunstância importantíssima que os trabalhos ali se poderiam estabelecer de forma a que se desenvolvessem quase indefinidamente para o futuro, quando o aumento da população e as crescentes necessidades do consumo deste elemento tão precioso o exigissem. Neste caso, como sabemos, falharam os cálculos, pois poucas décadas depois tiveram de recorrer a novas captações noutros locais.
O relatório prossegue referindo que o vale de Tavarede era, de todos os que descem da Serra da Boa Viagem, o que corria em mais baixo nível, cortando transversalmente uma espessíssima série de camadas permeáveis, sendo nos seus flancos que brota o maior número de nascentes. “A água vê-se com efeito romper por toda a parte, e especialmente no fundo dos vales e das quebradas, uma vegetação activa e louçã, plenamente atesta a frescura do solo”. E prossegue: “segundo os nossos trabalhos de exploração em nível inferior ao alvéo da ribeira, é claro que as galerias que abrirmos colherão toda a água que as camadas contiverem no maciço superior ao plano em que eles forem estabelecidos, maciço importantíssimo, pois o relevo do solo sobe rapidamente nos dois flancos do vale, não havendo em toda a extensão da serra nenhuns pontos de descarga mais baixos do que este vale”.
Mais adiante o relatório escreve “não é simplesmente o facto da existência das nascentes à superfície do solo do vale do Prazo, nascentes aliás valiosas, a base do conselho para esta exploração de águas: foram principalmente considerações geológicas que firmaram esta escolha. Com efeito, além destas manifestações exteriores, que revelam a existência de consideráveis massas de água, no interior do solo, a garantia da permanência dessas nascentes, sobretudo quando sejam exploradas em nível superior ao alveo da ribeira, está assegurada pela composição íntima e estrutura do solo, que é constituído por camadas pela maior parte muito permeáveis, sobrepondo-se do sul para o norte concordantemente, e com fraco pendor umas às outras, e inflectindo-se do Cabo Mondego para Maiorca em forma de bacia, da qual a Figueira ocupa o centro”. Prossegue depois: “A exploração que propomos será por estes motivos, pois, a mais produtiva, e muito de presumir (ou quase certo) que poderá suspender-se muito antes do limite assinalado do projecto. Os trabalhos são além disso estabelecidos de modo que não comprometem as explorações futuras, antes podem sucessivamente desenvolver-se quando convier, sem que esta ampliação do fornecimento embarace nunca o abastecimento usual. Para isso bastará abrir, pelo mesmo sistema, em nível superior ao dos trabalhos existentes, e para montante do extremo superior da galeria colectiva, uma rede de galerias análogas, que poderá estender-se até às nascentes do Olho de Perdiz, onde nasce a ribeira de Tavarede, ou ainda mais além através da serra, estabelecendo-se a ligação dos novos trabalhos com os trabalhos antigos só depois que aqueles estejam terminados”.
O relatório continua depois com a parte técnica das obras a realizar para as captações e transporte da água até ao Pinhal, donde partirá a distribuição pela Figueira. Não adianta mais transcrições. O que atrás fica escrito, chega bem para saber como era o vale do Prazo abundante em águas que, pela ribeira de Tavarede, regavam em profusão todas as nossas hortas e várzeas, até ir desaguar no Mondego. Durante anos, Tavarede matou a sede à Figueira. Os projectos diziam que nunca faltaria a água. Não foram precisos muitos anos para o contrário ser uma triste realidade.
Junto ao Largo da Igreja em Tavarede - 1950

Caderno: Tavarede - A terra de meus Avós - 3º.

Joaquim Alves Fernandes Águas

Nasceu em Tavarede a 12 de Dezembro de 1813 e morreu na Figueira no dia 5 de Março de 1890. Era filho de José Alves Fernandes, natural do Porto, e de Teresa Neta, nascida em Tavarede. Seu avô materno, Manuel Carlos de Oliveira, era de Brenha, e havia casado com a tavaredense Ana Ribeiro, passando a residir em Tavarede.
Não há a certeza quanto à origem do apelido “Águas”, mas o certo é que Joaquim Fernandes já o utilizou nalguns documentos.
Iniciou a sua carreira profissional como operário tanoeiro, em Tavarede, mas, pelo ano de 1868, mudou-se, com a sua numerosa família, para a Figueira, onde se estabeleceu como comerciante e industrial de vulto. De sociedade com seus filhos, fundou a Casa “Águas”, que atingiu lugar destacado no meio figueirense. Dedicou-se, também, à marinha mercante, como armador. No entanto, a exportação foi o seu principal negócio, especialmente de vinhos, para o Brasil e América do Sul.
O casal teve 10 filhos, seis varões e quatro raparigas, todos nascidos e baptizados em Tavarede.
Na sua terra natal desempenhou, entre outros, os cargos de regedor, presidente da Junta de Paróquia e juiz eleito, todos eles com a maior competência e isenção, sendo, por isso, muito admirado e considerado pelos seus conterrâneos.
Na Figueira, também exerceu “por muitos anos, e com a maior dignidade, o cargo de ministro da Venerável Ordem Terceira.
Quando da sua morte, o jornal figueirense “O Operário”, escreveu: “Brotando do seio do operariado, com uma vida irrepreensível, chegou, pela felicidade, no decurso do comércio, que mais tarde seguiu, a ser contado como negociante abastado. A nós, basta-nos o meio de onde surgiu, para nos sentirmos obrigados a respeitá-lo também no seu passamento”.
Grande entusiasta pelo teatro, o Presépio (costume nato de Tavarede) era, para ele, o cúmulo dos divertimentos. “Em uma das suas casas (ainda morava em Tavarede), instalou um teatrinho seu, cerca do ano de 1864, em que ele, filhos e filhas, entravam representando, e o que é melhor é que, mulheres representavam de homens e vice-versa”, escreveu Ernesto Tomás, em “Recordações de Tavarede”.
Conta-nos, depois, uma das noites agradáveis que lá passou. Vejamos:
“A costumada troupe de rapazes da Figueira estava no seu posto de espectador. Alguns rapazes dela ocupavam-se em ajudar, tocando numa orquestra adrede arranjada para satisfazer às exigências do espectáculo.
Na casa velha, vestiam-se as figuras e preparava-se o mise-em-scéne; na casa nova, havia o palco e a plateia, e a comunicação duma para outra casa era feita por uma porta que dava para o fundo do palco. Havia-se esgotado o reportório do presepe e ia entrar em cena a comédia: - O marido vítima das modas.
Os rapazes da Figueira encarregaram-se da mudança do cenário, mas, para fazerem uma partida ao velho Águas e rirem-se no fim, colocaram os bastidores em sentido inverso, isto é, de pernas para o ar.
Tudo pronto... Pano acima...
Ninguém havia reparado no desarranjo do cenário, mas o velho Águas, que, sentado na plateia, acompanhava passo a passo as fases do espectáculo, tendo reparado gritou: - Vá o pano abaixo!... pano abaixo!... E foi.
Dirigiu-se lá dentro á casa velha, zangado, fulo de raiva, e fez-nos uma apeporação tão apimentada que não era para rir; faltando pouco para que todos da Figueira fossem postos no meio da rua. Mantivemo-nos, contudo, um pouco mais sérios, rectificando no nosso espírito a ideia que formávamos do nosso velho Águas, - de que ele estava sempre pronto a aturar-nos rapaziadas e a rir-se delas.
Daí para diante teríamos de pensar que, dentro do seu teatrinho, nos deveríamos portar com o aprumo da seriedade, com toda a correcção de espectador gommé aliás... rua!”.
Numa notícia sobre o seu falecimento escreve-se: “Homem simples, ordenou o seu enterro sem pompas, fazendo-se acompanhar por pobres”.
(Caderno: Tavaredenses com história)

Associativismo - Os princípios (2)


Estamos situados no ano de 1865. E começamos por recordar que, naquela época, o Associativismo era oficialmente regulado pelo Código Penal de 1852, no qual o artigo 282º. estabelecia: "Toda a Associação de mais de 20 pessoas, ainda mesmo divididas em secções de menor número, que, sem preceder autorização do governo com as condições que ele julgar convenientes, se reunir para tratar de assuntos religiosos, políticos, literários ou de qualquer outra natureza, será dissolvida; e os que a dirigirem ou administrarem serão punidos com prisão de um mês a seis meses. Os outros membros serão punidos com prisão até um mês".
Ora, com tais disposições em vigor, seria possível existirem, em Tavarede, "sociedades dramáticas" que aqui "vegetavam como tortulhos"? A resposta só poderá ser negativa. Tratar-se-ia, isso sim, de pequenas "sociedades" familiares, que se reuniam nalgumas casas, especialmente das famílias mais abastadas, para passarem os seus serões, principalmente nas grandes noites do Outono e do Inverno e que, tendo adquirido o gosto pelo teatro e pela música, aproveitavam os seus tempos de descanso para conviverem nos ensaios, procurando ao mesmo tempo instruirem-se e divertirem-se, instruindo e divertindo, igualmente, os seus conterrâneos que assistiam aos espectáculos que apresentavam.
Mas nós temos mais informações sobre aqueles anos. Um exemplo. No ano anterior, ou seja em 1864, Joaquim Alves Fernandes Águas, fundador da conhecida e importante Casa Águas, na Figueira da Foz, ainda residia com sua família em Tavarede, pois só mudaram a residência para a Figueira dois ou três anos mais tarde.
Este tavaredense nascera a 12 de Dezembro de 1813 e morreu na Figueira no dia 5 de Março de 1890. (ver biografia na etiqueta: Tavaredenses com história). Era um grande entusiasta dos teatros, sendo o Presépio (costume velho em Tavarede) "o cúmulo dos seus divertimentos. Por tal motivo, instalou um teatrinho numa das suas casas, naquele ano acima referido, onde "ele, filhos e filhas entravam representando". Esta nota confirma aquilo que referimos destas "sociedades dramáticas" aqui vegetarem como tortulhos. Lá mais para diante voltaremos à sala de espectáculos de Joaquim Águas, pois, no Associativismo, foi uma casa muito importante, nela se tendo instalado o "Bijou Tavaredense" e o "Grupo Musical e de Instrução Tavaredense".
Note-se que acima se escreve, relativamente ao Presépio", que era "costume velho em Tavarede. Também, naquela época, se representavam dramas e comédias, como "Os miseráveis de Londres" e "Os dois rivais". Ora, para apresentar este tipo de teatro, mesmo de forma rudimentar, era necessário haver uma prática teatral de algumas dezenas de anos. Foi isto que nos levou a formular a opinião de que teria sido D. Francisco de Almada e Mendonça, juntamente com sua esposa, D. António Madalena, o instituidor do teatro na terra do limonete.
Voltemos, por uns instantes, à reportagem de Ernesto Tomás. Depois de descrever as salas de espectáculo, escreve: "Ria-se, vozeava-se e fumava-se na plateia, com a sem-cerimónia de ajuntamento numa feira. De vez em quando, um dito picaresco, saído de alguns dos espectadores, ia provocar a hilaridade ruidosa dos mais sérios, e tudo ria desalmadamente, sem respeito pelo '«cabo d'ordes', o António José, que assistia áquela inferneira aprumando desmesuradamente a sua autoridade tão sobranceira como a sua figura, de pouco menos de três côvados de alto.
Lá dentro, no palco, desenvolvia-se um vai e vem, entretido pela família dos actores, das actrizes e pelos instrusos, bem capaz de causar vertigens às constituições menos dadas à sensibilidade.
ma flauta que nos produzia nos nervos arranhos de gato, conjuntamente com um violão despertando dobre a finados, e uma viola, gemendo sob uma unha afeita à enxada, constituia por inteiro o que então se apelidava de 'roquestra'"

Quinta da Borlateira - Uma das mais importantes propriedades da família Águas, em Tavarede

(continua)

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

António Ferrnandes de Quadros



1º. Senhor de Tavarede.
Filho de Aires Gomes de Quadros, fidalgo da Casa do Infante D. Pedro e escrivão da Casa dos Condes de Aveiro, e de D. Antónia de Melo.
Por carta régia de 22 de Dezembro de 1516, foi nomeado adail da praça marroquina de Azamor, cargo que terá desempenhado até 1518.
Casou com D. Genebra de Azevedo, fidalga de Montemor-o-Velho, possuidora de avantajados bens patrimoniais em Tavarede. “De umas casas velhas surgiu o Paço senhorial, com torre de ameias e tudo”.
Em 30 de Novembro de 1522, foi nomeado para exercer as funções de Juiz das Sisas do Couto de Tavarede, tendo-lhe sido concedido o Senhorio local, com vários direitos dominicais, e a posse das lezírias vagas de Buarcos e Vila Verde.
Já anteriormente, em 11 de Abril de 1520, havia emprazado, ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a lezíria da Aveirôa ou Oveirôa (Morraceira), pelo foro anual de 320 reis.
A Casa de Tavarede, possuidora de imensos domínios patrimoniais, tornou-se numa das mais ricas e poderosas de toda a zona central do País. No ano de 1540, instituiu o morgado de Tavarede, solicitando a sua aprovação ao rei D. João III, que o aprovou quando o requerente, António Fernandes de Quadros, já havia falecido.
Do seu casamento há o registo de dois filhos: Fernão Gomes de Quadros, que lhe sucedeu à frente da Casa de Tavarede, e Filipa de Azevedo de Quadros.
Foi grande benfeitor do convento de Santo António, fundado na Figueira por Frei António de Buarcos. “Tem o padroado da capela mor, como o testemunha o letreiro da sepultura no meio desta, onde foi enterrado no ano de 1540, e o escudo das suas armas gravado do arco da mesma capela e no remate da abóbada”.
“… mando que o meu corpo seja enterrado na capela da igreja do Mosteiro de Santo António, na Figueira. Deixo por minha testamenteira Genebra de Azevedo, minha mulher, e assim a deixo por tutora e curadoura de meus filhos, porquanto a dita Genebra de Azevedo e eu próprio havemos assentado fazer um morgado de todas as nossas terças, ressalvando cada um de nós até cem cruzados, para nossas exéquias e se despenderem no que nós quisermos…”, escreve-se no início do seu testamento de 8 de Maio de 1540.

(caderno: Tavaredenses com história)

Cuidados com uma bicicleta


O Adelino da Cruz Mariano seguiu a carreira militar, tendo falecido em Setúbal, onde residiu vários anos.

Foi um dedicado associativista e exerceu diversos cargos directivos, quer na Sociedade quer no Grupo. Naqueles tempos, meados do século passado, o meio de transporte da rapaziada era a tradicional bicicleta. A pedais, pois as motorizadas vieram depois.

Quando o Adelino deixou a aldeia, para seguir sua vida profissional, deixou a sua bicicleta, devidamente arrumada, na loja da sua casa, na Rua Direita, perto do Largo do Rio.

Um dia, melhor dizendo, uma noite, encontraram sua mãe a passear a bicicleta do filho, à mão, na estrada da Chã.

Estranhando o caso, alguém quis saber o que se passava e logo teve a resposta: O Adelino havia escrito à mãe e dizia-lhe para ela pedir a alguém para dar ar à bicicleta, para as câmaras e pneus não ressequirem.

A boa senhora não quis incomodar ninguém e foi ela mesmo passear a bicicleta para lhe dar ar...

Associativismo - Os princípios (1)




Julgo ter chegado o momento de me debruçar sobre o Associativismo na terra do limonete.
Já muita coisa escrevi sobre o assunto. Forçosamente terei de repetir-me. Mas parece-me interessante aqui deixar algo escrito sobre este tema, sobre o Teatro e sobre a Música, sobre as Colectividades, passadas e presentes, pois não há qualquer dúvida do papel importantíssimo que estas actividades tiveram no desenvolvimento cultural do povo tavaredense.
Teremos, assim, de recuar no tempo mais de duzentos anos. Terá sido nos finais do século dezoito ou princípios do século dezanove que tudo começou na nossa terra.
Mestre José Ribeiro sempre falou "duma tradição teatral" em Tavarede. Mas, desde quanto e como terá começado tal tradição? Ao certo, nada se sabe. A única certeza que ha é que, por meados do século dezanove, já se fazia Teatro, e bom, na nossa terra. Isto levou-nos a fazer uma espécie de "especulação", dentro de uma lógica admissivel. Ora, vejamos.
Nos finais do século dezoito era Morgada de Tavarede a senhora D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa, que, no dia 26 de Dezembro de 1791, havia casado com o ilustre e poderoso fidalgo D. Francisco de Almada e Mendonça, corregedor da cidade do Porto, além de detentor de muitos outros altos cargos governativos, na zona norte do País. Pois foi este fidalgo, quem mandou construir naquela cidade, o Teatro de S. João, ainda hoje em actividade, embora em edifício reconstruído, devido ao primeiro ter sido destruído por um incêndio. Dizem as crónicas desses tempos, que D. Francisco de Almada foi um grande protector do teatro e da dança, tendo feito apresentar, naquela casa, "as melhores companhias nacionais e estrangeiras".
No dicionário "Portugal Antigo e Moderno", de Pinho Leal, diz-se, relativamente a Tavarede e áquele fidalgo, que "quando aqui residia era a providência dos povos destes sítios.
Protector das Artes, no Porto, amigo do Povo da terra natal de sua Esposa, não será difícil aceitar que, aproveitando as longas noites de inverno, quando aqui permanecia com sua família, se ocupasse da educação do povo, servindo-se do teatro, certamente da forma mais simples, com uma ou outra comédia ou, porventura, alguns monólogos e cançonetas, muito em uso naqueles recuados tempos.
Na imprensa figueirense, as primeiras notícias sobre teatro em Tavarede, surgem a partir de 1870. Mas o teatro era muito mais antigo na terra do limonete.
No ano de 1896, surge, no jornal "Gazeta da Figueira", uma reportagem sob o título "Recordações de Tavarede", da autoria do figueirense Ernesto Fernandes Tomás, que assinava sob o pseudónimo de "Estoern", onde diz: "Aí pelos anos de 1865, tendo voltado de umas voltas pela América, no primeiro domingo que tinha adiante, depois da chegada, ouvi falar uns rapazes amigos em uns teatros em Tavarede..."
Ao recordar um dos principais amadores daquela época, escreve Estoern: "... o José do Inácio havia sido também, em outro tempo, uma parte obrigatória em todas as sociedades dramáticas que vegetavam em Tavarede como tortulhos".
(na segunda casa, à esquerda, era a casa de Romana Cruz. Foi aqui a primeira sede do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense)

Descrevia, então, a sala de espectáculos. "... a plateia, que para aproveitamento do maior número de espectadores, havia sido construida em forma de palanque, era engendrada por umas tábuas manhosamente pregadas nuns cunhos de madeira e estes, por sua vez, da mesma forma ligados a uns postes de pinheiro inclinados contra a parede. O pano de boca, qualquer colcha,de chita, de padrão em labirinto vermelho. A iluminação fazia-se por meio das clássicas velas de sebo espetadas em palmatórias de pau..."
Eram nestas 'salas de espectáculo' que "se representaram peças que fizeram correr rios de lágrimas e provocaram indigestões de gargalhadas..."
O primeiro espectáculo a que Estoern assistiu foi uma comédia intitulada "Os dois rivais". Permitimo-nos ir buscar ao livro "50 Anos ao Serviço do Povo", de Mestre José Ribeiro, os locais onde funcionaram teatros: ". Na casa do Paço, do lado do caminho para a Figueira; depois, na mesma casa, no teatro ali mandado construir pelo último Conde de Tavarede; na casa que foi de Romana Cruz, na Rua Direita, à entrada da povoação; na casa onde hoje vivem, a meio da Rua Direita, ps herdeiros de Martinho Correia; na chamada casa do Ferreira, logo adiante mas do lado oposto; na de Joaquim Águas, pai do velho capitão Águas, José Joaquim Alves Fernandes Águas, em frente do anterior, prédio em que mais tarde esteve o Grupo Musical Tavaredense; na casa, também na Rua Direita, que é hoje de João da Silva Cascão; e na então chamada Casa de Ourão, no Largo do Terreiro, o mesmo edifício que João José da Costa mandou transformar no teatro hoje propriedade e sede da Sociedade de Instrução Tavaredense".
Como se vê, tinha razão Estoern ao dizer que as sociedades dramáticas "vegetavam em Tavarede como tortulhos". E por agora, só mais um apontamento que nos foi deixado pelo tavaredense Aníbal Cruz que refere ter ouvido de sua avó que, nos tempos dela, em jovem, chegaram a representar-se em Tavarede, em simultâneo, seis presépios. E todos tinham casa cheia... (continua)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Emília Fernandes Monteiro e João Gaspar Amorim


EMÍLIA FERNANDES MONTEIRO

Nasceu no dia 20 de Abril de 1909, filha de Joaquim Migueis Fadigas e de Mariana Fernandes Monteiro.
Foi, no seu tempo, uma das primeiras amadoras do grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense. A sua estreia ocorreu em Outubro de 1924, na peça Os Amores de Mariana. “Figura elegante, desempenhou todo o género de personagens com grande naturalidade e possuidora de uma lindíssima voz, logo se tornou a primeira figura feminina do grupo cénico”.
O seu maior êxito teatral foi, sem dúvida, o papel de Rosa, em O Sonho do Cavador. E na opereta A Cigarra e a Formiga interpretou o papel da protagonista Luísa, a filha do António Moleiro, de tal maneira que, estando Mestre José Ribeiro preso e recebendo um convite para irem representar esta peça a Coimbra, em espectáculo de beneficência, como Emília Monteiro havia casado recentemente, escreveu ao seu marido, João Renato Gaspar de Lemos, dizendo: “Eu já disse para Coimbra que a Emília tinha casado e que tudo dependia da resposta dela. Há peças que não deixo representar senão com ela. Assim como o Sonho do Cavador não consinto que se represente sem o João Cascão, assim eu também não consinto que se represente a Cigarra e a Formiga e a Justiça de Sua Majestade sem a Emília”.
Além das acima mencionadas, Emília Monteiro entrou em mais cerca de 20 peças, entre comédias, operetas, fantasias e altas comédias, destacando nós Grão-Ducado de Tavarede, As pupilas do Senhor Reitor, Os fidalgos da Casa Mourisca, A Morgadinha dos Canaviais, A canção do berço e O Grande Industrial.
No ano de 1954, num espectáculo evocativo levado à cena nas comemorações das “bodas de oiro” da SIT, encarnou, novamente, o papel de Luísa, no segundo acto de A Cigarra e a Formiga, contracenando com João Cascão. Também na homenagem a Alberto de Lacerda, em Dezembro de 1963, reviveu a mesma peça, mas no papel de Fantasia.
Era sócia honorária da Sociedade de Instrução Tavaredense desde 1927.
Foi casada com João Renato Gaspar Lemos Amorim (ver nota abaixo), com um filho, João Pedro.
Faleceu em 28 de Julho de 1995.


JOÃO RENATO GASPAR DE LEMOS AMORIM

Natural de Tavarede, filho de Carlos Alves Assunção e de Cândida Otília Lemos Amorim, nasceu a 8 de Agosto de 1907 e faleceu no dia 9 de Agosto de 1987. Foi casado com Emília Monteiro (ver nota) e teve um filho, João Pedro.
Desde muito novo que se integrou no associativismo tavaredense, dedicando-se, nos primeiros tempos, à prática desportiva. Foi participante em provas atléticas e velocipédicas e, como praticante de futebol, foi elemento do Tavarede Futebol Clube, cuja equipa capitaneou.
Foi dirigente associativo muito activo e dedicado. Fez parte de diversas direcções do Grupo Musical, de que foi nomeado sócio honorário em 1951, e da Sociedade de Instrução, que também o distinguiu com igual diploma, em 1986.
Foi regedor da freguesia.

(Caderno: Tavaredenses com história)

Grande família

Naqueles bons velhos tempos, anteriores a 1950, Tavarede dava inteira razão à cantiga popular que diz "na nossa aldeia, todos são primos e primas...". Na verdade, a população da nossa terra ainda era muito reduzida. E como se pode dizer que não havia família que não tivesse um ou mais elementos no grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, também não é menos verdade que todas as famílias eram aparentadas umas com as outras. As excepções eram raríssimas.
Tem razão, pois, o nosso amigo Helder em chamar "primos" a todas as pessoas conhecidas.
O "primo" Helder, fogueteiro

Bem sabemos que, presentemente, é um bocado forçado, mas naqueles tempos era uma realidade.
Isto, no entanto, refere-se ao pequeno "burgo" de Tavarede e não à freguesia. Muitos ainda se recordarão que a pequena aldeia estava "encravada" num espaço limitado a nascente pela Igreja, a poente pelo Paço dos Condes de Tavarede e a norte pela sede da Sociedade de Instrução Tavaredense. Fora deste espaço encontrava-se uma ou outra casa.
Isto, diga-se, não é nenhuma discriminação para com as restantes povoações da freguesia, que merecem o meu maior respeito.
Este pequeno apontamento servirá como resposta ao comentário da amiga Inês Fonseca, a propósito de chamar "Tia" à Lita e a outras pessoas conhecidas. Bem sabemos que este "Tia" é uma prova de amizade que nada tem a ver com aquelas tias e tios que constantemente aparecem na televisão e nas revistas cor-de-rosa.
No caso da Inês é, como disse, amizade. E se aprofundássemos as nossas árvores geneológicas quem sabe se não haverá mesmo um parentesco, ainda que longínquo?
Portanto, minha amiga Inês, nunca reneguei nem renegarei os meus laços parentais. E como disse acima, na velha Tavarede dos meus tempos de jovem, se todos eram primos e primas, com certeza que também muitos seriam os tios e as tias.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Cavalhadas de S. João

Porque acabaram?

Foi no ano de 1927. No ano anterior, o movimento militar, iniciado em Braga e que seguira até Lisboa, no 28 de Maio, uma vez vencedor, derrubou o regime republicano. Não interessa aqui, pormenorizar o acontecimento histórico, que acabou, pouco depois, por instaurar a ditadura de Salazar, a qual se manteria até ao 25 de Abril de 1974.
Desde a implantação da República, em Outubro de 1910, que o partido republicano, no poder, travou dura luta contra a igreja católica, até então detentora de grandes privilégios e que tinha enorme influência política nos destinos do país. Foi natural, portanto, que, com o movimento atrás referido, imediatamente procurasse reconquistar o seu anterior poder e influência.
Como habitualmente, naquele ano de 1927, a comissão promotora das tradicionais festas sanjoaninas, tratou da organização e marcou-as para os dias 30 e 31 de Julho. Do programa previsto, para além das costumadas cerimónias religiosas, previam-se as “ornamentações, iluminações, fogo de artíficio, concertos pela filarmónica contratada, danças populares com acompanhamento da tuna, cavalhadas com ida à Figueira e a Buarcos, corridas de prémios, etc.”. O tradicional.
Acontece, porém, que semanas antes, o Bispo de Coimbra resolvera comunicar aos padres da sua diocese, que proibissem, pura e simplemente, que as cavalhadas fizessem parte do programa, pois as considerava “pagãs” e, como tal, indignas dos festejos a um santo, por mais popular que o S. João fosse. E, claro, logo pairou a ameaça de excomunhão para quem não obedecesse à deliberação do senhor Bispo...
A Figueira, de que na altura era pároco o bem conhecido reverendo Palrinhas, acatou a ordem sem discussão. Buarcos procedeu do mesmo modo. Até a nossa vizinha Brenha, embora muito lamentosa, não teve as suas cavalhadas, aliás, de pouca tradição naquela freguesia. Restava Tavarede e, com o aproximar da data, redobrava a curiosidade sobre a atitude que tomariam os tavaredenses, tanto mais que tinham anunciado, no seu programa, a realização das mesmas.
Aconteceu, então, o impensável. A comissão dos festeiros, com o apoio da população, resolveu não atender à ordem do senhor Bispo, apesar de todas as tentativas que o nosso padre Manuel Vicente fez para impedir a realização das cavalhadas. Mas ainda foram mais longe no seu atrevimento e desafio à Igreja.
Normalmente, as festas eram abrilhantadas por uma das filarmónicas da Figueira e, algumas vezes, pela das Alhadas ou de Santana. Naquele ano, porém, e ao terem conhecimento das ordens do Bispo de Coimbra, os festeiros tomaram uma atitude verdadeiramente reaccionária: contrataram a célebre filarmónica do Troviscal que, pouco tempo antes, havia sido excomungada pela Diocese de Coimbra, com proibição total de participar em festejos desta natureza. É verdade, ainda agora custa a crer como é que a comissão das festas, que até era composta por alguns católicos praticantes, tenha tido tal ousadia. Contratar uma banda excomungada!!!
E, então, divulgou um programa em que se lia: “Sábado, 30, às 18,39 – Recepção, na estação do caminho de ferro da Figueira, da banda do Troviscal, com a comparência da comissão promotora dos festejos, bandas da Figueira e outras associações”. Parece que foi uma recepção triunfal, a que o povo deu colaboração aparecendo em enorme número.
Realizaram-se as festas. Eis um comentário publicado a 3 de Agosto: “O reverendíssimo sr. Bispo de Coimbra está fulo com o povo de Tavarede – e não tardará a despejar sobre a terra do limonete, a sua abençoada excomunhão. Temos de concordar que sua reverendíssima excelência tem razão: - uma comissão de rapazes quiz fazer a festa a S. João, com a função da Igreja – novenas, missa, sermão, etc. – e a tradicional cavalhada; o sr. Bispo exigiu que do programa fosse suprimida a cavalhada – que se fazia desde há muitas dezenas de anos, com as bandeiras da igreja e repiques dos sinos – com o fundamento de que era um número pagão; os festeiros resolveram a questão com grande facilidade, dispensando pura e simplesmente a colaboração da Igreja, arranjando bandeiras não benzidas e, para completar, mandando vir a banda excomungada do Troviscal. E a música veio, a Igreja esteve fechada, e a cavalhada fez-se, correndo tudo na melhor ordem”.
O programa cumpriu-se, com a exclusão da parte religiosa. E as cavalhadas, conforme a tradição, lá foram até à Figueira. “Era uma cavalgada numerosa, com ordem, precedida do ruidoso Zé Pereira, e vendo-se nela também muitos trens cheios de gente alegre”. E lá estava, junto à Igreja de S. Julião, a banda do Troviscal, que tocou enquanto se cumpria a praxe das voltas à igreja, desta vez sem o repique dos sinos.
E, passados os festejos e com os ânimos certamente mais calmos, a imprensa figueirense noticiou:
“Tiveram grande luzimento os festejos populares de S. João, que se realizaram nos dias 30 e 31 do mês findo, com os números tradicionais. Não houve desta vez função religiosa, porque, tendo o sr. Bispo de Coimbra imposto a supressão da tradicional cavalhada, que é, de há longos anos, a característica das festas de S. João em Tavarede, os organizadores dos festejos resolveram, e muito bem, fazer as cavalhadas e dispensar pura e simplesmente a parte religiosa. Para compensar esta falta, veio a excelente banda do Troviscal, que foi apreciadíssima, tanto no concerto que realizou na noite de sábado para domingo, com programa de responsabilidade que teve primorosa execução e foi muito aplaudido, como no de domingo.
Das 2 horas até à madrugada de domingo houve danças populares, que se repetiram no domingo à noite, e na segunda-feira realizou-se a rosquilhada.
As cavalhadas foram muito concorridas, e visitaram a Figueira, onde os esperava a banda do Troviscal, e Buarcos.
A Tavarede veio muita gente dessa cidade e dos lugares vizinhos.
A banda do Troviscal foi aqui alvo de manifestações de simpatia. Cumprimentou as duas associações locais, onde se trocaram saudações calorosas e foi servido aos visitantes um copo-de-água. O regente da banda sr. Oliveira, afirmou-nos que ia penhoradíssimo com as amabilidades que ele e os executantes da sua banda foram alvo.
A igreja esteve fechada em todo o dia, e os católicos ficaram privados da missa.
A-pesar-das prédicas do pároco da freguesia para que ninguém se aproximasse da banda excomungada, não faltou uma enorme multidão a ouvi-la e a aplaudi-la.
E tudo correu na melhor ordem”.
A título de curiosidade, refiro que a mencionada banda havia sido excomungada unicamente por ter acompanhado um funeral civil. É verdade! E sofre dolorosamente a sua “ousadia”. Deixou de ter contratos para abrilhantar as festas populares. Tempos mais tarde encontrei, publicados aqui na Figueira, anúncios para a venda do seu instrumental. Alguns anos depois, voltou a reorganizar-se mas, segundo as notas que colhemos, nunca mais teve a fama e a projecção que havia obtido, especialmente devido à atitude drástica do senhor Bispo de Coimbra.
E, em Tavarede?
Bem, em Tavarede, acabaram para sempre os festejos ao S. João. Nunca mais se realizaram e acabaram por cair no esquecimento de todos. No “Chá de Limonete”, mestre José Ribeiro, no bairrista “Tavarede-Marca”, recorda “Pois quando ressuscitaram o São João, (por volta de 1940) o grande número das festas foram as cavalhadas. Porquê? Porque lá estava Tavarede em peso! A freguesia mandou uma burricada... mais comprida que desde o Rio ao Paço! Os burros eram tantos que a gente nem se via no meio deles... Ganhámos o prémio! Tavarede marca!”...
Com os naturais exageros de uma fantasia teatral, acredito que, efectivamente, Tavarede tenha marcado uma vez mais! Foi a última, neste campo, diga-se.

(Tavarede - A Terra de meus Avós - 3º. caderno)

sábado, 1 de agosto de 2009

Pedro Medina - Uma história da caça


Amanhã é o primeiro domingo de Agosto, o que quer dizer que é o dia da romaria à Senhora da Saúde, em Reveles, terra de minha Mãe, e onde ainda tenho famíliares. Durante muitos anos ali íamos em peregrinação. Mas se o domingo é o dia da festa na capela, sita perto da linha do caminho de ferro, que nesse dia fazia ali uma paragem, a festa 'pagã' é no dia seguinte, especialmente da parte da tarde, com a realização de jogos tradicionais e arraial.

Começo por pedir desculpa a algum leitor, se o tiver, mas, na verdade, o pensamento desta festa levou-me a recordar uma história passada com meu Pai, Pedro Medina, que era um dos principais animadores daquelas tardes. Aqui deixo, pois, recordada uma das suas histórias. E esta é de caça.
(Numa das tardes de segunda-feira, nas Festas da Senhora da Saúde, em Reveles)

Meu pai, Pedro Medina, era aquilo que se podia considerar como um irreverente e um repentista. Por índole, era uma pessoa bem disposta, sempre amigo do seu amigo, incapaz de causar problemas a quem quer que fosse, mas sempre pronto para pregar a sua “partidinha” inocente, mas cheia de oportunidade e graça. Poderia contar muitas historietas sobre ele, qual delas a mais engraçada. Vamos a esta, a que dou o nome de uma história da caça.
Naqueles tempos, havia em Tavarede um grande número de caçadores. A partir do princípio de Outubro, quando abria a época da caça, era vê-los por esses pinhais e montes fora, espingarda pronta a disparar, enquanto outros batiam silvados e moitas com os seus varapaus e os cães farejavam, numa constante busca de coelhos e outras espécies.
Eles próprios preparavam o seu equipamento. Hoje, a tanta distância, arrepio-me só de me lembrar o perigo que meu pai, e outros, igualmente, corria quando, ao serão, ia para o sótão da nossa casa, para numa pequena mesa, alumiada a candeeiro a petróleo, carregar algumas dezenas de cartuchos para levar para a caçada, na cartucheira que transportava à cinta.
Uma lata com os chumbos, outra com a pólvora, a pequenita balança para fazer as pesagens, as buchas e outros acessórios, encontravam-se à sua frente. E, no meio de tudo isto, outra lata a servir de cinzeiro, pois meu pai era um fumador inveterado. Volta que não volta, parava o trabalho, tirava uma mortalha de papel fino, punha-lhe em cima a precisa quantidade de tabaco, que sacava da respective onça, enrolava com perícia, humedecia a cola do papel e estava pronto o cigarrito, que acendia na chaminé do candieiro, tudo isto com a lata da pólvora mesmo ao lado… Não tenho memória de ter ocorrido qualquer acidente, mas sem dúvida que o risco era bastante elevado e muito pouco acautelado.
Algumas, poucas, vezes os acompanhei aos domingos. Nunca me atraiu este desporto. Gostava, é certo, e muito, de passear pelos campos e pelos pinhais, mas apreciava muito mais uma pêra ou uma maçã que, de quando em quando, surripiava de uma árvore carregada de frutos, do que ouvir os disparos e, muitas vezes, ver os pobres dos coelhos tombarem feridos de morte.
Cada um levava o seu bornal com o correspondente farnel para o almoço e o cantil, ou cabaça, cheio de vinho, quase sempre da lavra própria, pois praticamente todos amanhavam pequenos pedaços de terra onde, invariavelmente, tinham uma dúzia de cepas que, por ocasião das vindimas e com a ajuda de alguns cântaros de água da nossa fonte, as uvas eram transformadas numa deliciosa água-pé, pois que de vinho não se podia intitular.
Quando a hora chegava, procuravam um dos locais conhecidos, propícios à pausa para a petiscada e um pouco de descanso, sempre tendo por perto uma fonte ou bica, de água fresca e pura, de que a nossa zona era bem fornecida. Comiam, os animais também, descansavam um bom bocado e, já refeitos, continuava a caçada, agora no sentido do regresso à aldeia.
Nem sempre traziam caça pendurada no cinto. Muitas vezes, coelhos e perdizes não colaboravam nada com os caçadores. Mas, apesar disso, regressavam felizes e satisfeitos por mais um dia passado no meio da natureza, em alegre convívio. E não me esqueça uma coisa: algumas vezes vinham sem caça, é certo, mas os bornais quase sempre vinham cheios de boa fruta. Aquelas encostas do Prazo, dos Condados, do Saltadouro e dos Pejeiros, entre muitas outras, eram enormes pomares onde a fruta não faltava, em quantidade e em variedade.
A historieta que vou contar refere-se a uma das tais caçadas, mas a essa eu não assisti, pelo que a recordo pelo que me contaram. Foi para o lado sul do Mondego, para as bandas do Alqueidão, e era um enorme grupo de caçadores daqui que se reuniram, em caçada previamente combinada, com companheiros de trabalho e de caça, daquela zona.
Desta vez, por esquecimento, ou já por malandrice, meu pai não pediu para lhe arranjarem o farnel. De madrugada, à hora de partir para a caçada com os amigos, vai ao armário onde estava a bolsa do pão, agarra num dos grandes, daqueles a que se chamavam “casqueiros” e abre-o ao meio, para fazer uma enorme sandes. Em seguida, apanha uma broa das que estavam na tábua, a broa era amanhada lá em casa, e, com muito cuidado, corta a parte de baixo, o lar da broa, e apara-a muito bem. Feito isso, mete a côdea da broa dentro do pão, embrulha tudo num grande guardanapo branco e guarda tudo no bornal. O cantil também já estava em ordem de marcha.
Foram de bicicleta até ao ponto de encontro, no Alqueidão. À hora marcada estavam todos reunidos e dirigiram-se ao local onde começava a caçada. Tiro daqui, tiro dali, confesso que me não recordo o que é que apanharam naquele dia, e, horas depois, chegam ao local previamente escolhido para o almoço.
Cada um tira o seu farnel e coloca-o à sua frente. Na sua maior parte levavam fritos, peixe, pastéis de bacalhau, pataniscas e omoletas. Outros optavam pelos enchidos ou umas fatias de carne assada. Meu pai tinha-se sentado, bornal ao lado, mas não se resolvia. Os outros estranharam. “Oh! Pedro, então não comes? O que é o teu petisco?”. Como que um pouco enfadado, responde que ainda não tinha vontade de comer, mas, para lhes fazer companhia, também se resolveu e tirou o embrulho do guardanapo para a sua frente. “Era para ter feito uma omeleta, mas lembrei-me que tinha lá um bom naco de presunto e, olhem, resolvi fazer esta sandes”, disse mostrando o guardanapo bem enrolado no pão.
Os outros estranharam. Ele levar presunto? E logo um pedação daquele tamanho? Não acreditavam. Então ele, cheio de paciência e abrindo um pouco o embrulho, mostra um dos lados em que ser via o pão aberto ao meio e com uma coisa escura dentro, que se lhes afigurou ser realmente presunto. Do imediato logo lhe disseram: “Oh! Pedro, deixa isso para o fim. Cortamos o pão com o presunto às tiras e é mesmo bom para acabarmos o petisco. Vai saber bem para um último copo”.
É claro que, interiormente, meu pai terá sorrido ao ouvir aquilo que já esperava. E vai daí, embrulha novamente o pão e, pastel daqui, uma fatia de carne dali, deu a volta a todos, não se mostrando nada sem vontade, como havia dito antes.
Quando já estava bem almoçado, estende-se à sombra de uma árvore e diz: “Eh! rapazes, agora já não consigo comer mais nada. Tomem lá o meu farnel e comam à vontade o pão com o presunto”.
Os outros, ávidos pela perspectiva de saborearem tão boa sobremesa, agarram de imediato o embrulho e com uma navalha bem afiada, preparam-se para a distribuição. Oh! Céus! Então não é que, mais uma vez, o Pedro os havia enganado? O tal presunto não era mais do que a côdea da broa e ele, que acabara de almoçar à grande e à francesa, à borla, tinha-os deixado a chuchar no dedo, agarrados a um bocado de pão que nem sequer cheirava a presunto! Disseram-lhe das boas, mas, pouco depois, tudo acabou às gargalhadas. Mais uma das brincadeiras dele, que teve graça e não ofendeu ninguém .

(Caderno: Tavarede - A terra de meus Avós - 3º.)