sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Histórias e Lendas - 20

Morgado de Tavarede
Familiar da “Santa?” Inquisição

  
PEDRO LOPES DE QUADROS E SOUSA - Morgado. Filho de Fernão Gomes de Melo Quadros e Sousa e de D. Beatriz Maria de Albuquerque.          Nasceu e morou em Tavarede. Era manco de ambos os pés. Comendador da Ordem de Cristo e familiar do Santo Ofício. Foi baptizado na capela do Paço no dia 16 de Agosto de 1672,     Foi casado por duas vezes. Da primeira vez com D. Josefa Isabel Zambado de Vasconcelos, filha do dr. Bento Dias Zambado e, enviuvando, casou em segundas núpcias com D. Madalena Maria Henriques Meneses. Faleceu em 29 de Agosto de 1751.(Caderno: Tavaredenses com história)
         Ilmos. Senhores . Passando ao Couto de Tavarede, freguesia de S. Martinho, achei pela informação que com muita individualização tomei extrajudicialmente com o padre cura Manuel Pinto da Rocha e o padre Francisco Rodrigues Portugal, e com o padre José Neto Coelho e Filipe Jacome, José de Almeida e Manuel Ferreira Coimbra, todas pessoas crtistãos velhos, legais, fidedignas mais antigas e noticiosas, e naturais e moradores no dito Couto de Tavarede, que Pedro Lopes de Quadros e Sousa, casado com D. Madalena Henriques de Menezes, comendador da Ordem de Cristo, e natural e morador no dito lugar de  Tavarede, deste Bispado de Coimbra, e filho legítimo de Fernão
Gomes de Quadros, comendador da dita Ordem, natural do dito Couto de Tavarede, e de sua mulher D. Brites Maria de Albuquerque, e neto paterno de Pedro Lopes de Quadros, comendador da Ordem de Cristo, natural do dito Couto de Tavarede e de sua mulher D. Maria Teles de Menezes, por via de seu pai e avô paterno, é legítimo e inteiro cristão velho, limpo de toda a infectação, sem fama de rumor em contrário, é de boa vida e costumes por ser muito recolhido e zeloso da Igreja, anda sempre e seu filho, com os demais mordomos, com inteira satisfação. Porém, das pessoas referidas, que perguntei achei que três disserão que o dito Pedro Lopes de Quadros e Sousa é soberbo, porque manda pelos seus criados tirar os homens trabalhadores do serviço das pessoas com quem andam e se não querem obedecer-lhe  manda dar pancada pelos criados; e é de pleno juizo e capacidade para servir ao Santo Ofício no cargo de familiar e sabe ler e escrever e tem de idade 49 anos, pouco mais ou menos, e terá de renda, em cada ano, seis ou sete mil cruzados. O referido foi o que descobri. V. Sª. mandará o que for servido com a justiça e rectidão que em tudo costuma. Buarcos, 4 de Abril de 1720. Subdito de V. Sª., a comissão e vigário de Buarcos Manuel de Carvalho.
         A carta acima trancrita foi a resposta enviada aos inquisidores de Coimbra, para darem andamento ao pedido do morgado de Tavarede para ser familiar do Santo Ofício.  O pedido efectuado por carta da Comissão da Inquisição de Coimbra nomeou o escrivão Padre Manuel Ferreira de Carvalho, morador em Buarcos.
         Inquirição feita a 3 de Outubro e dias seguintes na Igreja de S. Martinho de Tavarede – Testemunhas que depuseram:
a)      Padre Manuel Pinto da Rocha, sacerdote do hábito de S. Pedro, natural e morador no Couto de Tavarede – o habilitando é comendador de S. Pedro das Alhadas – ele, testemunha, foi capelão de seu pai, Fernão Gomes de Quadros, pelo espaço de 20 anos, que também foi comendador de S. Pedro das Alhadas e ao presente se acha religioso professo na Ordem de S. Francisco, no Convento de Varatojo – viveram do seu morgado, comenda e prazos, tratando a lei de fidalgos andando em carroças e liteiras.
É vizinho dos sobreditos com os quais se criou, e sabe ele, testemunha, que o dito Pedro Lopes de Quadros, do 1º matrimónio não teve filhos, e fora do matrimónio tem 3 filhos: uma religiosa no Convento do Lorvão, que se chama D. Helena, filha de uma Maria Portulez, filha de António Portulez e de sua mulher Maria da Rocha, e outra que se chama D. Antónia, que se acha no Convento de Alenquer, filha de Páscoa Gonçalves e neta de José Gonçalves, naturais e moradores neste Couto de Tavarede, freguesia de S. Martinho, e de Maria Neta, do lugar de Brenha, freguesia de S. Teotónio, deste bispado e moradora que foi neste dito Couto de Tavarede e a dita D. Helena e sua mãe e avós maternos acima nomeados, são naturais e foram moradores no Couto de Vila Verde, freguesia de S. Julião da Figueira da Foz e de S. Pedro do Couto das Alhadas. E tem mais o dito habilitando em sua casa um filho, que se chama Bento, filho de Catarina de Paiva, neto pela parte materna de Manuel de Paiva e de Maria de Azambuja, naturais e moradores no dito Couto de Tavarede, freguesia de S. Martinho, e sabe ele, testemunha, que todas as sobreditas pessoas são legítimas e inteiras cristãs velhas e por tais tidas e havidas, e nunca algum deles morreram de infâmia publica, pena vil de feito ou de direito, nem descendem de quem a incorresse nem disso há fama ou rumor em contrário, que se houvesse havia ele, testemunha, de ter alguma notícia por ter pleno conhecimento de todas as sobreditas pessoas.
b)      O reverendo padre Francisco Ribeiro Portugal, sacerdote do hábito de S. Pedro, natural e morador neste Couto de Tavarede. Afilhado de baptismo do bisavô de habilitando, diz que este se trata com muito luzimento e limpeza com suas carruagens, que consta de liteira e seje. (resto mutatis mutandis).
c)      Filipe Jacome, homem oficial de tanoeiro, natural e morador em Tavarede ... se tratam a lei de fidalgos com carruagens, liteiras e coches. Criou-se lá em casa. (mutatis mutandis).
d)      Reverendo padre José Neto Coelho, sacerdote do hábito de S. Pedro, natural e morador deste Couto de Tavarede... foi mestre do habilitando que o ensinou a ler e a escrever, que o habilitando se trata com luzimento e limpeza, servindo-se com suas carruagens, escravos e criados. (mutatis mutandis).

Seguem-se outras testemunhas, num total de 12.
- Pedro Lopes de Quadros e Sousa, foi baptizado em 16 de Agosto de 1672 em sua casa.
Seu pai, Fernão Lopes de Quadros, foi baptizado em 3 de Janeiro de 1655. O avô, Pedro Quadros, foi baptizado em 16 de Dezembro de 1625.
Foram anexas ao processo as três certidões de nascimento Acima. Não foram encontrados os assentos dos casamentos de seus pais e vós.
Em 11 de Fevereiro e seguintes, na Igreja de S. Martinho de Tavarede, foram inquiridas mais 24 testemunhas.
Como facilmente se verifica, os processos para admissão a familiar do Santo Ofício eram morosos e complicados. Impõe-se a descrição do que era a ‘Santa?’ Inquisição estabelecida em Portugal no reinado de D. João III. Para tal uma vez mais recorremos aos livros manuscritos do Dr. Mesquita de Figueiredo.
A INQUISIÇÃO – Agora aparece um periódico de Lisboa a tratar de defender e justificar o horroroso e infame tribunal da inquisição. Será conveniente publicar alguns documentos, para mostrar a santidade de  semelhante tribunal e as virtudes dos seus ministros.
No Regimento do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal – ordenado pelo bispo e inquisidor geral D. Francisco de Castro, e impresso em 1640 em Lisboa, por Manuel da Silva, nos próprios paços da Inquisição (os Estaos), o qual é hoje raríssimo, mas de que possuimos um exemplar em perfeito estado de conservação – se determina o seguinte:
‘Havendo no Santo Ofício prova bastante de testemunhas, porque pareça que algumas pessoas defuntas podem ser convencidos do crime de heresia, mandarão os inquisidores, a requerimento do promotor, tirar certidão do livro de baptismo, porque conste se eram os defuntos cristãos baptizados, e não se achando o dito assento, se fará sumário de testemunhas, porqie conste se eram baptizados naturais do reino, e como eram tidos e havidos por cristãos baptizados; e junta a certidão ao sumário, havendo o promotor feito seu requerimento, verão os inquisidores tudo em mesa com as culpas do defunto, e pronunciarão que sejam citados seus herdeiros, ou pessoas, a quem de direito pertencer a defesa; e esta citação se fará pessoalmente aos que estiverem no reino, e por édito aos ausentes dele; e se continuará na causa, na forma que fica dito nos mais defuntos; e estando conclusa, verão os inquisidores o processo em mesa com o Ordinário e deputados, e achando que o crime está provado, condenarão os defuntos na forma que se acha no livro 3, título 26, parágrafo 5º.
Ora eswte livro, título e parágrafo do Regimento aqui citado, ordenavam o seguinte:
‘Se depois de se haver procedido contra os defuntos na forma que fica declarada no livro 2, título 18, eles forem havidos por convictos de heresia e apostasia, serão em sua sentença declarados por herejes e apostatas da nossa santa fé; e condenada a sua memória e fama, e confiscados seus bens, do tempo em que se provar que cometeram o delito; com tanto que não estejam legitimamente proscritos por espaço de quarenta anos; e serão seus ossos desenterrados e tirados das igrejas, adros, ou de qualquer outra sepultura eclesiástica em que estiverem, podendo-se separar os ossos dos pés cristãos, e levados com sua estátua ao Suto público da Fé, e relaxados à justiça secular’
Eis aí o que a Inquisição fazia aos próprios mortos! Nem a paz dos túmulos respeitavam aqueles bárbaros!
Só no fim de 40 anos se julgavam os crimes prescritos; e por isso, durante aquele longo espaço de tempo, nenhum filho em relação a seu pai, o pai em relação ao filho, a mulher a seu marido e vice-versa, e em geral todos os herdeiros, se podiam julgar seguros na posse de seus bens; nem estar descansados de que aquelas hienas de nova espécie, não viriam desenterrar os ossos dos seus antepassados, e levá-los (coisa horrorosa!) com a sua estátua ao auto público da fé, para aí serem relaxados à justiça secular, isto é, serem queimados!
Se os defuntos não escapavam aos inquisidores, não podiam ter melhor sorte os doidos!
            Aos que endoidecessem nos cárceres do Santo Ofício (e a quantos ali acontecia essa infelicidade!) fazia o regimento de 1640 a extrema graça de não serem castigados. ‘Não se dará (dizia o regimento) pena corporal, pois o juizo deles é incapaz dele.
            Ora na verdade, já era grande tolerância não castigar um doido! Mas julgam que ficaria aqui a caridade dos inquisidores? Não. Acrescentava logo o regimento ‘E ficarão os seus bens em sequestro, para que tornando o seu juizo, ou falecendo naquele estado, se proceda contra ele, ou contra a sua memória e fama; e tendo prova legítima será condenado em confiscação dos bens e dana sua fama e memória’.
            E que os inquisidores quando quizessem alcançar prova legítima, não oferecia a menor dúvida.
Tratava-se de roubar os bens do preso, e por isso estivessem certos de que não apareceriam provas mais claras que a luz do sol!
A inquisição prolongava quanto podia, para martirizar os réus, o seu tempo de prisão, e só tinham pressa de os julgar depois de mortos. Vamos agora dar um exemplo bem frisante deste procedimento inquisitorial.
‘Em 1666 mandou a Inquisição de Coimbra prender D. Margarida de Melo Pina, filha de Francisco de Pina Perestrelo, natural de Montemor-o-Velho e casada com seu primo Manuel da Fonseca Pina. Era acusada de ser ‘cristã-nova’.
Foi levada na forma do costume para os tenebrosos cárceres da inquisição. Ali, em uma daquelas casas da mais exígua dimensão, recebendo uma fraca claridade por uma muito pequena fresta, quase junto ao tecto, jazendo pelo espaço de – dezassete anos (17) – a infeliz D. Margarida de Melo Pina, sem ser julgada!
No fim desse longo período, tendo falecido nos cárceres da inquisição, é que os inquisidores se apressaram a julgar a ré.. A senteça lida no auto celebrado na sala da inquisição desta cidade, em 13 de Março de 1683, foi a seguinte:
            ‘Acordam os inquisidores, ordinário e deputados da Santa Inquisição de Coimbra, que vistos estes autos e culpas de D. Margarida de Melo, cristã velha (?), viúva de Manuel da Fonsec a Pinto, que vivia da sua fazenda, natural e moradora em Montemor-o-Velho, bispado de Coimbra, presa nos cárceres da inquisição da mesma cidade, e neles defunta; porque se mostra que sendo denunciada no Santo Ofício, que tinha cometido culpas contra a nossa Santa Fé Católica, e sendo por elas presa e por vezes admoestada as quizesse confessar, respondeu que não tinha cometido culpas contra a nossa Santa Fé Católica.
            O que tudo visto que dos autos consta, com as resultadas diligências que se fizeram por ordem do Santo Ofício, a respeito da qualidade da ré, e constar delas ser legítima e inteira cristã velha, limpa e sem raça alguma cristã nova, absolvem a ré D. Margarida de Melo da instância do juizo – e declaram que a seus ossos se pode dar sepultura eclesiástica, e oferecer a Deus por sua alma os sacrifícios e sufrágios da igreja. E mandam que esta sentença se leia na sala desta inquisição e depois se publique na paroquial igreja da dita vila de Montemor-o-Velho, donde a ré era freguesa, na estação da missa conventual, para que venha a notícia a todos, e lhe seja levantado o sequestro, que em seus bens se lhe haviam sido feitos, e deles se paguem as custas. (a) Sebastião Dinis Velho, Gonçalo Borges Pinto’.
            Não tiveram durante 17 anos tempo os infames inquisidores de julgar a infeliz D. Margarida de Melo Pina; e nem depois da sua morte declarar que estava inocente! E apesar de estar inocente, pelos seus bens se paguem as custas!
            Sendo a sentença publicada em 13 de Março de 1683, foi no dia 21 do mesmo mês lida na igreja paroquial de S. Martinho de Montemor-o-Velho, à estação da missa conventual, havendo por essa ocasião repiques de sinos, luminárias, muitas festas e sumptuosas exéquias, mandadas fazer pelos parentes da falecida.
            Como o cadáver desta senhora tinha sido sepultado no edifício da inquisição de Coimbra, trataram os seus descendentes, no ano de 1709, de trasladar os ossos dela, para a sua capela da Piedade, na referida freguesia de S. Martinho de Montemor-o-Velho. Aí se lhes deu sepultuura, e nela se pôs uma lápide, com a sentença gravada, havendo novas exéquias com sermão.
            Foi este o último acto de um tão tenebroso drama. Esta senhora, de quem foi descendente o sábio escritor Francisco de Pina e Melo, é presa por cristã nova; sofre durante 17 anos a mais dura prisão nos cárceres do Santo Ofício; e no fim, depois de morta, vêm dizer os inquisidores que era cristã velha, e que apesar de todas as diligências a que procederam, a achavam inocente!
            Quadros semelhantes são repugnadissimos a todas as pessoas dotadas de humanidade; mas é de razão que a geração actual seja sabedora do que nas épocas anteriores se praticava, e possa responder com vantagem àqueles que tratam unicamente de tornar salientes quaisquer actos condenáveis, que se tenham praticado depois de estabelecidas entre nós as instituições liberais.
Convém que os partidários do obscurantismo saibam que ainda se não perdeu a memória das atrocidades que se praticavam em nome de uma religião toda paz e caridade. – Joaquim Martins de Carvalho’
(Caderno 17, páginas 86 a 89)

Era este o procedimento normal da ‘Santa’ Inquisição, a que o nosso Morgado aderiu como ‘familiar’

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