Sua pregação, seus escritos e a
presença contemporânea de sua obra
Entre suas várias qualidades, chamou a
atenção de seus contemporâneos seu admirável dom como pregador. Muitas
descrições de época referem o fascínio que sua fala exercia sobre as multidões
de pessoas simples e também sobre clérigos doutos, e embora o efeito de sua
oração a viva voz não possa mais ser recuperado, seu estilo e os conteúdos que
abordava podem ser conhecidos em parte através dos 77 sermões que sobreviveram
e constam em sua obra publicada em edição crítica, Sermões
Dominicais e Festivos, e que são considerados autênticos, conforme disse
José Geraldo Freire. São textos eloquentes, persuasivos, cheios de zelo messiânico, sendo
frequentes a defesa do pobre e a reprimenda do rico, e o combate às heresias de seu tempo, como as dos albigenses evaldenses, com uma
eficácia tanta que lhe foi dado o apelido de malleus hereticorum (o martelo dos heréticos).
"Santo António de Lisboa, embora muito
festejado e venerado como santo pelo povo, é menos conhecido como um homem de
cultura literária invulgar e como um verdadeiro intelectual da Idade Média.
Reveladora dessa cultura ímpar, é a sua obra escrita, cheia de beleza e
densidade de pensamento, como nos testemunham os seus Sermões,
autênticos tesouros da Literatura e da História. Vasta, profunda,
extraordinária, a respeito da Sagrada Escritura. Ampla, variada e bem
apropriada nas transcrições dos Padres da Igreja e dos Autores Clássicos.
Impressionante, para o tempo, não apenas pelo conhecimento que revela das
ciências naturais e das humanidades, mas igualmente pelo erudito discurso sobre
noções jurídicas, como Poder, Direito e Justiça".
Naturalmente, era fiel à ortodoxia cristã.
Apesar de sua extensa cultura profana, considerava a Escritura sagrada a fonte
da ciência superior, da verdadeira ciência, da qual todas as outras eram meras
servas e simples coadjutoras no trabalho da Salvação. Por isso deu
grande importância a uma boa exegese do texto sagrado, privilegiando a extração
do seu sentido moral. Nota-se ainda
em sua obra alguns dos primeiros sinais de um progressivo abandono do
pensamento medieval, que apresentava o homem e o mundo como desprezíveis e
fontes do pecado, abrindo-se a uma apreciação mais positiva da vida concreta e
do relacionamento humano, entendendo o ser humano como uma maravilhosa obra
divina. Na análise de Pedro Calafate,
"Santo António não olvidará a
excelência da contemplação, mas sublinhará não obstante a circunstância terrena
do homem como corpo e alma, sem deixar de considerar que a abertura à
exterioridade não transforma o amor aos outros e às criaturas no apego à posse
das coisas, estando neste caso o culto da pobreza, nomeadamente as críticas
severas que dirigiu aos prelados e dignatários eclesiásticos, por se
comprazerem nos luxos do século. Tratando-se de uma espiritualidade que não
olvidou a dimensão prática e vivencial, equacionou também a relação entre a
ação e a contemplação no quadro da mística. Filha da vontade e do amor, numa alienatio
mentis que supera o plano
estritamente racional para que a alma, inteiramente conduzida pela graça,
contemple Deus como em espelho ou em enigma, a mística tampouco representará
uma renúncia à vida ativa, nem às exigências da vertente racional do homem,
porque a alma volta e regressa à vida ativa para a realizar com maior perfeição,
numa confluência entre o entender e o contemplar, o saber e a sabedoria".
Contudo, é de dizer que na forma como
chegaram, os ditos sermões são antes um manual didático para os noviços do que
transcrições de sermões verdadeiramente proferidos. Foram produzidos para seus
alunos, para instruí-los na arte predicatória, a fim de que depois eles
pudessem converter com sucesso os pecadores e infiéis à fé cristã. Apesar
disso, eles possuem em seu conjunto pouca ordem sistemática.
Os sermões são ainda um precioso documento
de época, muitas vezes fazendo alusões às transformações sociais e económicas
que ocorriam durante aquele período, atestando o crescimento das cidades, o
florescimento das atividades artesanais e do comércio, o surgimento das
corporações de ofícios, as diferenças de classes. Além dos conteúdos sacros,
que ainda preservam seu caráter inspirador, tais alusões - onde surge aguda
crítica social na condenação da avareza, da usura, da inveja, do egoísmo, da
falta de ética na administração pública, dos falsos moralistas e hipócritas,
dos maus pastores de almas, do orgulho dos eruditos, dos ricos ensimesmados em
sua opulência que oprimem e excluem os pobres do tecido social - são
responsáveis pelo valor perene e atual de seus escritos, sendo passíveis de
imediata identificação com muitas circunstâncias e contradições da vida
contemporânea.
Tradição taumatúrgica
Diz a tradição que em sua curta vida operou
muitos milagres, como seguem alguns exemplos.
·
Certa
feita, meditando à beira-mar sobre a frequente aparição da imagem do peixe nas Escrituras,
os peixes ter-se-iam reunido a seus pés para escutá-lo.
·
Teria
restaurado um campo de trigo maduro para colheita que fora estropiado por uma
multidão que o seguia; teria protegido milagrosamente seus ouvintes da chuva
que caía durante um sermão, e uma mulher impedida pelo marido de ir ouvi-lo
pôde escutar suas palavras a quilómetros de distância.
·
Quando
em disputa com um herege albigense sobre a presença ou não do Deus vivo
na hóstia consagrada, o herege, chamado
Bonvillo, disse que se uma mula, tendo passado três dias sem comer, honrasse
uma hóstia em detrimento de uma ração de aveia, ele acreditaria no santo.
Segundo a história, assim que a mula foi liberta de seu cercado, faminta,
desviou-se da ração e ajoelhou-se diante da hóstia que António lhe mostrava.
·
Restaurou
o pé amputado de um jovem.
·
Soprou
na boca de um noviço para expulsar as tentações que sofria, confirmando-o em
sua vocação.
·
Quando
alguns hereges colocaram veneno em sua comida para verificar sua santidade, o
santo fez o sinal da cruz sobre o alimento, comeu-o e nada
sofreu, para o vexame dos seus tentadores.
·
Outro
milagre famoso trata-se da aparição do Menino Jesus ao santo durante uma de suas orações,
uma cena multiplicada abundantemente em sua iconografia.
Também é bastante citado um milagre
ocorrido durante sua pregação num consistório diante do papa, inúmeros cardeais e
clérigos, e gentes de várias nações, quando, discorrendo com sutilíssimo
discernimento sobre intrincadas questões teológicas, cada um dos presentes
teria ouvido a pregação na sua própria língua materna. Na ocasião, diante de tão assombroso
fenómeno, que parecia uma reedição do Pentecostes bíblico, o papa o teria chamado de "a
arca do Testamento, o arsenal da Sagrada Escritura".
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