sábado, 20 de junho de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 11

         “Passaram agora sob a nossa janela as raparigas do rancho do Maio.
         O rancho do Maio!
         Todos os anos se organiza este cortejo florido. E quando passa nas ruas, deixando no ar o eco das cantigas e o perfume das rosas – é Primavera!
         Quando Abril começa a despedir-se, as raparigas animam-se, combinam, organizam o rancho. E na véspera do dia ansiosamente esperado, pedem às vizinhas, correm aos jardins, vão ao mercado – e levam para casa arregaçadas de flores. Arranjam os trajos. Enfeitam os potes, que desaparecem sob os desenhos caprichosos das rosas e malmequeres. Mal pregam olho durante a noite. E quando a manhã só é adivinhada pelo seu espírito em alvoroço, erguem-se, chamam-se umas às outras, reúnem-se – e as suas vozes fazem a alvorada antes que o chiar das rabecas e o tom-tom dos violões arrepie o ar nos estremeções da afinação.
         E marcham. Estrada fora, marcam em piso leve, airosas e frescas, o compasso da marcha que as suas vozes erguem no espaço, subindo alto, levada muito alto no perfume das flores, até fundir-se na atmosfera da madrugada húmida e ainda pesada dos orvalhos da noite. Sobre as cabeças inquietas levam os potes floridos. Dentro dos peitos arquejantes uma ansiedade, uma aspiração indecisa que toma forma nas suas bocas e é Amor nos seus lábios vermelhos sem pintura...
         ... Cantigas de amor!
         ... E a Vida aparece-lhes clara e transparente como a água das fontes que cai das bicas e canta com elas, luminosa e brilhante como a luz que começa a entornar oiro fluído sobre o azul do céu e o verde tenrinho, muito tenro e muito verde, da planície viçosa.
         Este ano o Abril foi de inverno. Frio e vendaval, chuvas teimosas que não tinham fim. Os rapazes da música não queriam sair: - Tenham juízo, não sejam malucas! Apanhar uma chuvada e ficarmos como pintos...
         Mas elas, enfeitando os cântaros, vendo-se no espelho das flores e recebendo destas a alegria e a certeza da primavera, viam lá a chuva, sentiam lá a chuva, queriam lá saber da chuva!... O 1º. de Maio era sempre o 1º. de Maio. No 1º. de Maio há sempre sol. Elas não acreditam na chuva. E se a chuva vier – há-de desfazer-se ao calor das suas vozes, dos seus corações ansiosos, da sua mocidade ardente. Elas acreditam no 1º. de Maio – e porque acreditam nele, vencem a chuva e vencem a dúvida e o medo dos rapazes das violas que parecem velhos – como o Velho-do-Restelo...
         Passou agora o rancho sob a nossa janela. Lá de cima do céu, que parece mais baixo todo forrado de chumbo, cai uma chuva miúda, muito leve e muito fina, como poeira de prata. Mas não desce além dos telhados, fica-se no ar, suspensa sobre a camada de    som e de perfume que enche a rua numa alvorada de sol.
         ... Os cântaros enfeitados!
         ... E as raparigas dos cântaros!
         Há neste conjunto de flores e gente moça que não sente a chuva e que vence a chuva, qualquer coisa de profundamente simbólico.
         Quantos homens fogem à vida, e não a constroem e não a vivem.
         Quantos não vêem o sol porque se assustam com a chuva?
         Quantos homens poderiam aprender no riso fresco, na chama da vida, na certeza da Primavera destas raparigas que vão lá adiante no cortejo florido dos cântaros, a vencer a dúvida e a edificar por suas mãos o triunfo da sua crença?”.

         Prossigo, agora, com mais uma evocação ainda comemorada nos meus tempos de criança. A tarde da chamada “merenda grande” era de ida aos pinhais onde, sob a sombra acolhedora e fresca, eram comidos alguns petiscos. O pinhal mais frequentado era o da quinta da Borlateira, aos Quatro Caminhos. Com o farnel acondicionado no cesto, lá íamos à procura de poiso onde pudessemos estender a toalha e umas velhas mantas, onde nos sentávamos confortavelmente. Claro que também esta “merenda grande” já era uma pálida amostra das antigas, como se pode adivinhar por este recorte, publicado em 1902.

         “Diz-se, e com razão, que esta vida são dois dias... É um pensamento que não oferece dúvida, e eis porque muito boa gente não perde um momento em que os possa levar regaladamente. Assim, é ver como alguns andam á espreita dos dias de folgança, para gozar e divertirem-se; há uma festarola, lá vão - em massa, cheios de alegria, farnel aviado e ideia fixa no santinho que os arrasta áquela adoração - esquecer por umas horas as tristezas e amarguras da atribulada vida...
E aqui estava eu a começar um banal aranzel, quando afinal o meu intento é falar da merenda grande, que foi na segunda-feira, e que, como é da praxe, atraíu á minha risonha terra bastante gente que gosta da pandega. Isto contaram-mo, porque a pouca sorte não me deu a felicidade daquelas venturosas creaturas...
Mas as locandas animaram-se; por essas quintarolas fora dizem-nos que houve regabofe desmedido; as pequenas alunas da escola oficial cantavam as estopinhas pelas ruas da povoação, cestinho á cabeça, qual deles enfeitado com mais capricho; nas lautas merendas devoradas com apetite á fresca sombra de copadas árvores ou entre o inebriante perfume exalado dos canteiros e vergéis engrinaldados de lindas rosas, ou ainda nas eiras, onde corria brandamente a pura viração do norte, tudo concorreu para deliciar os ditosos visitantes da minha estremecida e bem amada aldeia.

E, a prova, é que ali os brindes sucederam-se com espontaneidade entusiástica, os hips e os hurrahs tomaram um calor delirante, e, para que nada faltasse a similhar os mais alegres e ruidosos festins, chegou-se a reduzir a estilhaços, depois de vazias, as pobres garrafas a que pouco antes se dedicara o mais santo e acrisolado afecto.
A tarde de segunda-feira, pois, devia ter sido memorável para os felizes que podem gastar o seu tempo naquelas folganças. Isto já lá vae há três dias, é certo, mas ah!... a maldita inveja não me deixa sair da mente os dulcíssimos momentos que por aqui se passaram na festejada merenda grande...”.

         Alguns dias santificados pela Igreja, também tinham tradições ou costumes festivos. O dia de quinta-feira santa, da parte da manhã, era grande para nós. Manhã cedo, munidos duma bolsa, daquelas que nossas mães faziam de retalhos de chita, juntávamo-nos em grupo e íamos pedir a “esmola”. Dinheiro, naqueles tempos, era coisa que não havia. Nas mercearias, eram rebuçados, muitas das vezes daqueles que traziam cromos. Numa ou noutra casa lá vinha um punhado de feijão ou de milho e, na maior parte, era um “não pode ser”! Uma casa havia, no entanto, onde tínhamos acolhimento todos os anos: a casa do sr. Leite, ali na Simôa. Havia sempre uma boa mão cheia de avelãs para cada um dos “pedintes”. Na sua quinta, junto ao ribeiro do Pereiro, existiam umas enormes aveleiras e uma boa parte da colheita era reservada para neste dia dar “esmola” à rapaziada que lhe ia bater à porta a desejar uma feliz Páscoa…

         No sábado de Aleluia, algumas vezes, poucas, me recordo de haver alguém que, na rua Direita, içava um Judas, para nós o desfazermos à cacetada, com as canas que íamos arrancar aos valados… No dia seguinte, domingo de Páscoa, era o dia de irmos buscar o folar. Novamente a bolsa de retalhos servia, pelo menos no meu caso, para                                                                                 ir a casa de meu padrinho, onde, além do costumado folar de quatro ovos, me dava sempre uma moeda das maiores.

         Outro dia muito desejado era o de quinta-feira da Ascensão, também conhecido como “o dia da espiga”. Já vinha de longe este costume. Em 1912, a “Gazeta da Figueira” trazia a seguinte notícia: Pela tradição do costume foram ranchos de pessoas pela fresca manhã de quinta-feira de Ascenção colher ás searas raminhos de espigas de trigo e ramadinhas de oliveira para que o ano corrente seja próspero e feliz. Grupos de raparigas entoavam canções alegres fazendo um maravilhoso conjunto com os seus maviosos trinados dos rouxinois e doutros passarinhos que saltitavam nas ramadas das floridas árvores do campo.
         Á tarde merendaram muitas pessoas á sombra saudável de pinheiros e um rancho de raparigas, acompanhado dum grupo musical, foram ás Caldas da Amieira, dançando ali e regressando a Tavarede á noitinha. Ao Bussaco também foi bastante gente daqui”.

         Mais poética, é a notícia que “O Figueirense” publicou em 1928:  “É amanhã, quinta-feira da Ascensão, em que bandos de raparigas moças, de lábios rubros, faces rosadas e olheiras fundas, correm estonteantes, borboleteando em redor das searas como uma nuvem de daninhos e alados pardais, na faina voluptuosa e risonha de colher a Espiga, que depois entrelaçam com as mais belas flores silvestres.
         Cada espiga que vão colhendo é uma esperança que se aglomera no cérebro,  cada flor cortada é um facho de luz mais puro que o sol benfazejo da primavera, que se lhes ilumina a alma e faz tanger a corda mais íntima do seu coração. É, pois, amanhã um grande dia, um dia santo, que até o mais   libertino deve respeitar como o dia da Ascensão do Mártir do Calvário. “Se os passarinhos soubessem…”.”

         A espiga era colhida da parte da manhã e, da parte da tarde, havia saída para os pinhais, para mais uma costumada merenda. Algumas famílias optavam por ir passar o dia às termas da Amieira, onde se realizavam grandes festas, enquanto outras escolhiam uma ida ao Bussaco. Foi ali, aliás, na quinta-feira da Ascensão de 1938, que se fez ouvir, pela última vez,  a tão afamada tuna de Tavarede. É dos poucos costumes e tradições que, embora com diminuta concorrência, ainda se mantém na nossa terra.

         No primeiro caderno contei, também, alguma coisa sobre o S. Martinho. É interessante, contudo, o facto de que, sendo S. Martinho o orago da nossa freguesia, só há relativamente poucos anos, comparativamente ao longo período da história da terra do limonete, aqui tenha começado a ser festejado religiosamente.

No entanto, e segundo muitos escritos encontrados, se o santo não era comemorado religiosamente, não era esquecido nas casas dos tavaredenses. Vejamos uma notícia de Novembro de 1899:
         “Deixai-nos, velho santo, que vos apresentemos aqui reverentemente os nossos respeitosos cumprimentos, pela chegada do dia 11, dia em que o Borda d’Agua regista a vossa passagem pela galeria dos santos.
         Grande data, para as gentes da freguesia de Tavarede, por ser a do dia do seu querido orago! Não lhes passa ela desapercebida, e por isso naquele dia à noite se costuma ouvir aqui o festivo estralejar de grande foguetório, lançado em honra do célebre protector dos amigos do divino Bacho...
         Vê-se muita alegria, fazem-se importantes magustos, dá-se cresta às roliças farinheiras feitas pelas mais recentes matanças de nutridos cevados, e quase todos espicham os vinhos da sua última colheita.
         Aqui tínhamos nós agora uma bela ocasião para atrair a esta localidade milhares e milhares de pessoas, se soubéssemos celebrar ruidosamente o dia de S. Martinho, estabelecendo-se para esse fim um programa deslumbrante que anunciasse grandes procissões, Te Deuns, missas acompanhadas por grandes coros e orquestras, espaventoso arraial, admiráveis fogos de artificio, musicatas, exposição do Deus Bacho em capelas apropriadas, magustos oferecidos ao público, etc., etc., etc. Fizesse-se depois constar por toda a parte esta festança e veríamos se acorriam ou não aqui forasteiros dos cantos mais recônditos do mundo!..Porém, nunca ninguém se lembrou para isso deste pobre santo, que no seu tempo foi tão milagroso, e que hoje tem a sua imagem desprezada e esquecida a um canto da sacristia da igreja de que ele é  patrono, como se tivesse sido um personagem sem importância que não legasse à posteridade, como ele fez, tamanha nomeada.
         Bem se vê que estamos nos tempos da ingratidão...”.

         Como se vê, as comemorações ao nosso santo padroeiro eram comemoradas em casa, à lareira e perto da adega. Encontram-se imensas referências a estas “comemorações”. Considero, das mais interessantes, este comentário, escrito pelo figueirense Raimundo Esteves, em 1940.

         “Se ainda não matou o porco, se o chambaril não entrou em acção, nem a salgadeira tem sal novo, branquinho como bagos de granizo, à certa deve haver um presunto preso pelo cotrunho, à dependura da trave mestra da adega, ou guardado na arca um queijo do outro ano, do de codea forte e polpa amarelada, rijo e a esboroçoar-se, daquele que deixa os beiços mordidos de secura…

                   Pelo S. Martinho
                   Prova o teu vinho…
                   Se ele te agradar,
                   Torna-o a provar…

         - Vá seu Compadre, que um dia não são dias! Este São Martinho faz um formigueiro nas goelas, que até parece que um homem acabou agora duma sacha rija, por Junho ardente…
         Ergue-se o copo à transparência. Lindo palhete! Tem tons de topázio! E uma auréola cor de cravo moço, daqueles que as cachopas poem sobre os seios, na noite santa de S. João… Primeiro, a fazer a cerimónia, leva-se com geito aos lábios o licor divino, com uma unção quase religiosa, quase espiritual. Bate-se o líquido nos beiços, a tomar-lhe bem o travo. Masca-se. Depois, escorre pela língua, com um estalido seco no céu na boca. Pisca-se o olho maroto. Franze-se o nariz e a testa. Baloiça-se com a cabeça. Nova golada. O mesmo rito solene. Ergue-se de novo o copo. Mira-se à luz. Agita-se o vinho de forma a sujar bem os rebordos. Engolipa-se outro sorvo. Está completa a prova. Agora é de virar, - que provar não é beber!
         O magusto é tradicional por esta época do ano. Em lares mais fartos, o magusto é pretexto para ceata de restolho, que mete bacalhau cozido com batatas, couves, cebolas, ovos e azeite novo, quase cru, com um acentuado sabor ao fruto que o deu… Se já se fez a matança, vai uma orelhada para pessoa de mais consideração e respeito, e para o resto da companhia febras de churrasco, ou linguiça arrancada do fumeiro da lareira, onde as carumas e as cepas da poda  lhe deram um sabor e um aroma preciosos.
         O pichel anda numa roda viva, de mão em mão. No brazido, de um bom toro de oliveira, ou raizeiro de carvalho velho, que o fogo consome lentamente, entre áscuas, como bichas de rabiar, - estoiram as castanhas de entre as cinzas. Tiram-se em arranques de coragem. Peneiram-se as unhas escaldadas para esfrearem mais depressa. Se surge uma “Filipina”, vão gritinhos de prazer: - Quem quer ser minha comadre?! … E ás vezes é com uma castanha assim que estoira a castanha na boca a qualquer mancebo desprevenido das artimanhas diabólicas das moças casadoiras!”.

         Em Novembro de 1957 o “velho” tavaredense, Aníbal Nunes Cruz que, durante muitos anos residiu  em Anadia, onde exerceu actividade profissional, resolveu recordar o S. Martinho. Escreveu, então, no jornal “O Figueirense”:

         “Preside aos destinos da nossa freguesia o orago São Martinho, que se venera na igreja paroquial sem que haja memória de ter-se realizado qualquer cerimónia litúrgica em seu louvor.
         No entanto, São Martinho possui bastantes devotos em toda a redondeza da freguesia, que, decerto, muito bem se lembram do seu dia, homenageando-o com as tradicionais ceias em que não faltam as castanhas e a abertura da saborosa água-pé e do bom vinho.
         As famílias – pobres e remediadas – festejam-no numa alegria sã e espirituosa, quantas vezes com preces de saudades dos amigos e dos ausentes, levando a humanidade a conjugar as práticas da confraternização e da amizade como se o divino Padroeiro fizesse esse milagre tão preciso à vida e à religião da família nestes tenebrosos tempos que decorrem.
         São Martinho da nossa terra, que, no seu divino altar, vem, através de tantos anos, presidindo aos solenes baptismos dos tavaredenses, dando a unção da sua doçura para recordar o dia 11 de Novembro sentia-se feliz nessas noites em que estralejavam nos ares os foguetes a anunciar a alegria das famílias e a abertura do vinho novo.
         Louvado seja, São Martinho!...”.

         Era, então, pároco em Tavarede, o reverendo Manuel Joaquim da Costa Ferreira, que desenvolveu notável acção na nossa terra durante os anos em que aqui esteve. Fundou, inclusivamente, em Outubro de 1957, um pequeno jornal a que deu o título de “Notícias de Tavarede”, no qual se propunha contribuir para o alargamento do Reino de Deus na paróquia que lhe havia sido confiada e para cooperar com todas as iniciativas de utilidade local.
        
Talvez que a notícia de Aníbal Cruz lhe tenha despertado a curiosidade, pois o padre Costa Ferreira tomou interesse pelo assunto e, com inteira razão, entendeu que se o patrono de Tavarede era o S. Martinho, o mesmo não deveria continuar esquecido religiosamente.
        
Terá feito diversas investigações e diligências e logo no ano seguinte, 1958, estas festas foram uma realidade. Aliás, o padre Costa Ferreira, muito inteligentemente, aproveitou a oportunidade para obter uma forma de financiar as diversas obras de que a igreja estava bem carenciada. Em Novembro desse ano tiveram lugar as primeiras festas religiosas ao S. Martinho, acompanhadas, claro está, com festas populares. “A Voz da Figueira” relatava, assim, o acontecimento: O povo de Tavarede, por iniciativa do seu pároco, Revº. Manuel Joaquim da Costa Ferreira, vai fazer reviver, este ano, a antiga festa ao orago da freguesia – S. Martinho – cuja imagem, depois de ter estado durante dezenas de anos, retirada do culto e até depositada no Museu da Figueira, acaba de ser restaurada e vai de novo ser colocada no lugar que lhe pertence”.

         Termino estas recordações com uma breve evocação do Natal. Era um dia querido por todos. Dias antes, íamos “roubar” um pequeno pinheirinho para fazermos a árvore de Natal e apanhar musgo para o presépio. A árvore era enfeitada com uns fiosinhos, algodão a fingir de neve e, pendurados por aqui e ali uns pacotitos de bombons e pequenas tabletes de chocolates. Para nós, era um encanto. No dia de Natal, manhã cedo, lá íamos ver se o Menino Jesus não se tinha esquecido de nós. E não. Lá estava alguma roupa e mais alguns chocolates.
         Na véspera, de tarde, era grande a azáfama nas nossas casas, pois chegava a hora de fazer as tortas doces. Farinha, açúcar, abóbora menina, as passas de uvas, nozes, que partíamos aos bocadinhos, pinhões, etc. Quase todas as casas tinham um pequeno forno, que era, então, aquecido a lenha, enquanto a massa levedava. Nessa noite havia sempre teatro e toda a família ia ver. Depois de terminado o espectáculo, regressávamos a casa e eram horas de fritar os filhós, que já estavam prontinhos a ir para a sertã. Polvilhados com açucar amarelo e acompanhados por uma enorme caneca de café de cevada, era a consoada da maior parte das famílias tavaredenses.



Tavarede no Teatro - 2

         Em Janeiro de 1911, a Sociedade de Instrução Tavaredense, para comemoração do seu sétimo aniversário, levou a efeito um novo espectáculo. Recolhi esta notícia do jornal “A Voz da Justiça”, do dia 31 daquele mês e, embora não informe qual foi o programa apresentado, surpreendeu-me bastante na parte que vou transcrever:

“Foi um magnifico serão, fechando pela exibição d’um trabalho de José da Silva Ribeiro, a que nós damos bastante valor. É um pequeno drama e uma grande lição que oxalá aproveite aos que infelizmente preferem a frequencia na taberna e no jogo ao santuario da Escola. Pintando claramente as consequencias funestas dos que se deixam arrastar pelo vicio até à pratica dos mais horrorosos crimes, termina pela – Apoteóse à Instrução.
         Felicitamos José Ribeiro pelo exito merecido que obteve a sua produção literaria e desejamos que continue”.

         Muito frequentemente se encontram, nos diversos jornais figueirenses, ao longo dos anos, notícias dos seus correspondentes locais, chamando a atenção, e condenando mesmo, os nefastos efeitos da trilogia “taberna, jogo e alcool” que, não sendo exclusivo de Tavarede, proliferava com abundância na nossa terra. Claro que era proveitoso para os taberneiros, e havia bastantes, mas trazia graves prejuízos aos pobres trabalhadores, na sua maior parte cavadores, ainda sem qualquer nível de instrução, e que depois de árduos dias de trabalho com a enxada, procuravam, naqueles vícios, um pouco de esquecimento para a sua “negra” vida. Posso dizer que desde os primeiros números dos jornais publicados encontrei notícias destas. E, infelizmente, muitos anos depois ainda as continuei a encontrar.

         Como se verá lá mais para a frente, o teatro era, então, um meio ideal para denunciar e combater este mal. Ora, aquele retalho acima transcrito, leva-me a fazer dois comentários. Um deles é que, tendo feito dezasseis anos havia dois meses, terá sido este o primeiro trabalho de José Ribeiro como autor teatral. É, na verdade, extraordinário que, com dezasseis anos, tenha escrito uma pequena peça, para mais um drama, que mereceu tão elogiosas referências. O segundo, e sabendo nós como ao longo de toda a sua existência José Ribeiro sempre lutou em defesa dos trabalhadores e do povo da terra do limonete, leva-me a admitir que ele tenha situado a acção daquele pequeno drama, nas tabernas de Tavarede e na Escola, certamente referindo-se à escola nocturna da Sociedade de Instrução Tavaredense.

         Nada posso acrescentar sobre este assunto, mas julgo acertado incluir aqui esta breve referência, não só como simples curiosidade, mas como demonstração da precocidade talentosa do saudoso Mestre nestes trabalhos teatrais dedicados ao povo da terra do limonete, da qual tanto se orgulhava de ser filho.

         No ano seguinte, 1912, surgiu no palco tavaredense a primeira revista. Tinha o título de “Na Terra do Limonete” e foi seu autor João dos Santos, o proprietário da quinta dos Condados e do edifício do Terreiro, onde se encontrava instalada, desde o seu início, a Sociedade de Instrução Tavaredense, e que havia herdado de João José da Costa. Tal como este, também João dos Santos exerceu temporariamente as funções de ensaiador do grupo cénico. Foi autor da música o tavaredense Gentil da Silva Ribeiro, pai de José Ribeiro.

         Relativamente a esta revista, encontrei na imprensa figueirense os seguintes apontamentos. Em “A Voz da Justiça” de 9 de Abril, diz-se:

“Como dissémos, a Sociedade de Instrução realizou na sábado uma récita com a revista intitulada Na Terra do Limonete e a comédia Birras do Papá. Fazer uma revista de costumes de Tavarede, terra pequena, em que escasseia o assunto e há sobretudo o receio de melindrar as personalidades atingidas, não é tarefa muito fácil. Daremos, porém, em poucas palavras, a nossa humilde opinião: - os artistas compreenderam bem os seus papeis, imprimindo-lhes muita graça e naturalidade. A revista foi admiravelmente ensaiada por Vicente Ferreira. O cenário, obra de Jean Batout produz magnífico efeito. A música, composição de Gentil Ribeiro, tem números lindíssimos e boa execução e, já que falamos em música, não esqueceremos Eugénia Tondela e António Graça, que cantaram corretamente as canções que lhe foram destinadas. Houve aplausos em barda, especialmente na parte final (apoteose), em que D. Limonete estabelece o confronto entre o convívio deletério da taberna e a paz e a fraternidade que predomina no seio da Sociedade d’Instrução. No próximo sábado repete-se a revista”.

         No outro jornal então publicado, a “Gazeta da Figueira”, escrevia-se na sua edição de 17 do mesmo mês:

         “O elegante theatro da Sociedade d’Instrução nos dois ultimos sabbados regorgitou de pessoas da familia dos seus associados. A Superior sobressaia pela formosura das nossas gentis conterraneas vestidas luxuosamente, dando assim uma nota sympathica à festa familiar da benemerita agremiação.
         Representou-se a revista de costumes tavaredenses – Na Terra do Limonete – que foi habilmente desempenhada, tendo por isso o agrado de todos que applaudiram com enthusiasmo os amadores, especialisando Eugenia Tondella, inteligente rapariga que tem conquistado no palco innumeras sympathias; Antonio Graça e Vicente Ferreira, ensaiador e quem interpretou o papel de D. Limonete, - arrancando à plateia bastantes palmas na apotheose – excellente propaganda para instruir os filhos do povo, porque se combate os vicios que os fazem viver criminosamente nas trevas da ignorancia e se lhes aponta o caminho do bem: - a escola e a associação.
         A musica de Gentil Ribeiro é bonita e o scenario do nosso amigo Jean Batut é de magnifico effeito, trabalho que prova mais uma vez a sua habilidade de pintor.
         Ao sr. João dos Santos, auctor da revista, endereçamos os nossos applausos, desejando ardentemente que continue, com o mesmo enthusiasmo, na espinhosa mas humanitaria missão de instruir os filhos de Tavarede”.

         Ainda sobre esta revista mais um pequeno apontamento que encontrei em “A Voz da Justiça”, do dia 23 de Abril:

         “Com a repetição da revista – Na Terra do limonete – terminou no sábado a série de serões teatrais com que a Sociedade d’Instrução Tavaredense nos deliciou nos ultimos mezes.
         A sala estava repléta de espétadores que ali foram manifestar a sua gratidão aos briosos rapazes que tão proveitosamente souberam empregar as horas que lhes restavam do seu labor quotidiano.
         Surpreendeu-nos o que D. Limonete lobrigou no firmamento atravez d’um vidro fumado: além d’uma enorme multidão de ratos e musicos, em volta do sol, viu tambem o Vicente Ferreira a dançar o vira com a lua e o compadre Alegria a chorar como uma Madaléna arrependida”.

         Para abertura da época teatral de 1913, encontrámos, também em “A Voz da Justiça”, de 4 de Abril, a notícia de mais uma récita promovida pela Sociedade de Instrução Tavaredense, representando-se – Uma situação complicada (certamente uma comédia) e uma paródia de revista, intitulada “Dona Várzea”. Desta, não encontrei qualquer outra notícia.

         É pena que se não encontrem os textos destas duas revistas de João dos Santos, pois presumo a sua autoria de ambas, mas foram elas, e disso não há qualquer dúvida, as primeiras escritas sobre os usos e os costumes do povo tavaredense. Da última, encontra-se arquivada na biblioteca da colectividade, a partitura musical.

         Como se faz referência nas notícias transcritas, foi ensaiador Vicente Ferreira, também ele intérprete.

         É pouco, como se vê, mesmo muito pouco, o que se sabe sobre estes trabalhos. Mas, e ainda antes de passar à seguinte peça sobre o tema tratado, e a partir da qual já existem os textos e muito mais notícias, vou, uma vez mais, socorrer-me do livro “50 Anos ao Serviço do Povo”:

         “O primeiro programa impresso que existe no arquivo, é o da revista local em 2 actos e 6 quadros Na Terra do Limonete, representada no dia 6 de Abril de 1912. Foi escrita por João dos Santos e musicada por Gentil da Silva Ribeiro, que desde os primeiros anos da Sociedade, logo após a saída de João Proa, tomou a direcção da orquestra e ensinou música, mantendo-se naquelas funções, dedicada e desinteressadamente, até ao seu falecimento, em 25 de Julho de 1918. Por este prospecto sabemos que o grupo cénico era então constituído por: Eugénia Tondela, Felismina de Oliveira, Clementina de Oliveira, Belmira Rodrigues, Aurora de Oliveira, Guilhermina Santos, Virgínia de Oliveira, Vicente Ferreira, António Broeiro, Jaime Broeiro, José da Silva Ribeiro, António Graça, José Fernandes Serra, António Duarte Silva, João Figueiredo, José Gomes da Apolónia, João Graça e António Grilo. Faltam, porém, aqui os nomes de alguns elementos do coro, que não figuram no programa”.



sábado, 13 de junho de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 10

Algumas festas em Tavarede


         Já não são do meu tempo as grandes festas populares em Tavarede. No primeiro caderno, e com base nas notícias colhidas na imprensa figueirense, recordei as principais. E, segundo os elementos disponíveis, em lugar bem destacado, encontravam-se as festas ao S. João. Destas, o número que tinha mais fama eram as cavalhadas. Na terceira parte deste caderno, entre as diversas histórias que conto, volto a recordar estas festividades, especialmente para dar a conhecer como e quando acabaram.

                                                                                                                                    Mas as cavalhadas foram recordadas num dos primeiros anos de 1940. Lembro-me muito bem de ver desfilar o cortejo frente a minha casa, com a bandeira à frente, a caminho da Figueira e Buarcos, para dar a antiga volta. E, assim, também aqui vou recordar as festas ao Santo Precursor, como o farei a outras que, de alguma forma, ainda se efectuavam ou foram evocadas nos meus tempos.
                                                                                                                                    Das festas sanjoaninas, vou transcrever uma nota escrita por Mestre José Ribeiro.
        
“As chamadas festas de S. João em Tavarede tiveram sempre carácter religioso e profano. Com mais propriedade lhes chamaríamos – São João do Limonete.
         O número de maior realce e que mais avultava nestas festas de S. João, e as tornava bem conhecidas em toda a aldeia e arredores, foram, incontestavelmente, as cavalhadas ou, como mais singelamente se designava o conjunto daqueles festejos – a Bandeira. E, já que referimos a Bandeira, melhor se dirá as bandeiras, porque de duas bandeiras se tratava. Seja-nos permitido ler o que consta da acta da sessão da Junta da Paróquia de Tavarede, de 26 de Junho de 1889:
         “As bandeiras de S. João são trastes ou objectos da paróquia, tendo o padre obrigação de fazer a sua entrega aos forasteiros que se apresentarem para fazer a festa, visto que o fim principal destas funções é um divertimento de arraial com fogueiras no mês de Junho, onde se salta, canta e dança estouvadamente; iluminações nas ruas, cavalhadas em toda a qualidade de alimárias, mascaradas grotescas, com folganças e exibições fantasiosas, tudo para entreter, divertir e fazer rir”.


         Antes do início das festas fazia-se a chamada pega da bandeira, às vezes com cerca de um ano de antecedência sobre a nova festa de S. João.
         Na manhã do primeiro domingo da festa havia a função religiosa, com aparatosa ornamentação da igreja, missa cantada e sermão. Vinha também orquestra, e alguns cantadores de Coimbra.
         As cavalhadas eram o prato forte da festa, com o grande cortejo equestre, assim formado: abrindo o cortejo, em nota cómica e com sabor carnavalesco, vinha numerosa burricada, em jeito de guarda-avançada da cavalaria que abria com dois guias, assim chamados os dois cavaleiros que iniciavam o solene cortejo hípico e exibiam cada um a sua vara de 2 metros, pintada de branco e com um lacinho de fita de cor. Seguia-se então a cavalaria, em duas filas que marginavam as ruas do percurso; nesse conjunto destacavam-se dois grupos de 3 cavaleiros: o porta-estandarte da bandeira pequena, ao centro e os dois padrinhos, um de cada lado, e grupo semelhante com a bandeira grande. Era um cortejo extenso, vistoso e imponente.
         No asínino grupo da guarda-avançada já referida destacava-se o muito simpático, e sempre alegre e desejada presença, representante da famosa e estimadíssima dinastia dos Toquins de Tavarede. Este vistoso cortejo passava por Buarcos, ia dar volta à Praça Nova, na Figueira, e vinha de seguida a Tavarede, a dar as tradicionais 3 voltas à igreja, enquanto festivamente repicavam os sinos da torre.
Emudecidos os sinos, era a pausa do cortejo. Os cavaleiros abalavam por instantes largando rédeas; as mesmo tempo, ao longo da rua, desde a Igreja ao Paço, vão-se abrindo as portas e aparecem as moradoras, mulheres e raparigas, sobraçando limonete, erguendo e oferecendo, em alegria ruidosa, ramos de limonete, braçadas de limonete, numa apoteose de verdura rústica e bem cheirosa. O silêncio tristonho da rua mudou-se em animação de vozear alegre; dominava já a mocidade de Buarcos, gente moça que aproveitava o passeio e homens e mulheres que vinham à feira do limonete. Pequenos quintais de residências, leiras do Quintal Ferreira, retalhos de várzeas em redor da aldeia, eram pródigos em limonete: fosse velhos troncos que a poda impiedosamente fizesse reverdecer e enfeitar-se de novos e sempre renovados ramos, ou novos e generosos limoneteiros que já exibiam ramos vigorosos, alguns prestes a enfeitarem-se de pequeninas estrelas nas pontas dos ramos franzinos, em flores ternadas ou binadas, dispostas em espigas frouxas, formando panícula piramidal.
         Nesta pausa do cortejo, intervalo obrigatório, os cavaleiros não se ficavam quedos, que o não consentiam os cavalos frenéticos, talvez já embriagados com o cheiro da lúcia-lima, a bela-luísa, a doce-lima, a erva-luísa, o pessegueiro inglês – que tudo é limonete.
         Alguns dos cavaleiros vestiam fraque e chapéu alto, e era vê-los abalarem, velozes, pela rua cheia de gente, aproveitando o intervalo para uma fuga em visita-relâmpago aos arredores da aldeia.
         A cerimónia religiosa, na igreja primorosamente ornamentada para o efeito, realizava-se com toda a pompa e respeito. Orquestra e cantores fizeram-se ouvir no coro. No púlpito, um sacerdote proferiu adequado sermão. A cerimónia decorria sob a invocação de São João Baptista. Não me lembro de ter ouvido referir no sermão o nome de Herodíase que no meu espírito vinha sempre ligado ao da luxuriosa Salomé e ao martírio de São João Baptista, o profeta Yokanaan. A propósito, direi que vi a cabeça degolada do puro e austero pastor que vivia no deserto e se alimentava de mel silvestre e gafanhotos. Posso garantir que vi a cabeça de S. João Baptista – moldada em barro, naturalmente... e muito bem pintada -, já colocada sobre o grande prato de cobre que servia ao sedutor bailado da Salomé, no caso interpretada pela exímia, rica e formosa bailarina Sara Sevilha, que teve luxuosa habitação na Figueira, no chalé da quinta do Pinhal, muito falada então bailarina famosa que tivemos oportunidade de apresentar aos leitores de “A Voz da Justiça”, neste nosso jornal nos dias 9, 20 e 30 de Maio de 1922.
         Passaram 60 anos...
         Terá envelhecido a sempre jovem, brilhante e formosa Salomé do chalé luxuoso e rico do Pinhal?”.

         Quase tão desejadas quanto as festas a S. João, eram as madrugadas do primeiro de Maio, estas com a particularidade de inspirarem poetas. E se já transcrevi alguns trechos bem poéticos, muitos mais encontrei e que merecem ser recordados. O poeta e escritor figueirense António Augusto Esteves, que usou o pseudónimo de Carlos Sombrio, deixou-nos descrito a primeiro de Maio na fonte da Várzea.

         “Quem não conhece, na madrugada de amanhã, a Fonte da Várzea da Figueira?
         Ranchos alegres que apregoam, nas cantigas repassadas de côr, a alegria salutar do amor, da vida, da felicidade!...
         Cântaros à cabeça, transformados em maciços de flôres, elas lá vão em busca da água fresquinha que hão de trazer no regresso, depois de bailarem a alegria que lhes vai nas almas e de folgarem tôda a mocidade que vive nos seus corações amorosos.
         É que aquela Várzea é bem, neste dia, um altar onde as moças poisam as melhores preces de seu amor feliz, e onde fazem as preces da sua alegria venturosa.
         Reboam ali, naquele largo, pertinho da Fonte, cantigas desfiadas por fieiras de oiro, correndo, como veios de água cantante e fresca, cada vez mais felizes, cada vez com mais encantos.
         E quando o sol se ergue para doirar a folhagem tenra dos arbustos, a desafiar o viço e a roubar a frescura das rosas – manchas de neve, pintas de oiro ou pontos vermelhos, sensuais, de fogo aveludado -, em que a palidez da madrugada empresta às moças desaparece, para as fazer de olhar mais perturbante, mais amoroso e mais feiticeiro, a ventura, a saúde, o prazer de gosar a liberdade, de cantar e de viver, assim, à sôlta, - viver que não extenua, que não cansa, que perturba e entontece, - então os corações erguem-se mais altos, tão altos como a alegria juvenil da mocidade – tal qual como os braços espinhosos das roseiras, e contam á água fresca que os cântaros levam, a sua alegria que, por ser muita, é sempre pouca – tão curta é a hora feliz que os venturosos julgam descuidadamente viver!
         Pudessem muitos mentir, e na madrugada de amanhã, o riso a florir nos lábios, a alma, lá dentro, a brincar contente, satisfeita e feliz, ir até à Várzea, nos ranchos alados da mocidade, e dizer às rosas, no seu dia, o que sentem e o que não podem dizer!...
         Se assim fôsse, todos seriamos felizes, todos seriamos alegres, contentes, pelo menos, aparentemente.
         E as rosas, no dia do seu culto, teriam, naturalmente, mais beleza, mais frescura e mais perfume!...”.


         Finalmente, mais uma vez recorro a Mestre José Ribeiro. Aliás, foi ele quem em 1950, na sua peça “Chá de Limonete”, fez reviver o rancho dos potes floridos de Tavarede.

Tavarede no Teatro - 1

À guisa de... Prólogo






 João José da Costa
Fundador do  teatro do Terreiro


         É com verdadeira satisfação que confesso que, ao longo deste últimos anos, tem sido para mim extraordinariamente aliciante este trabalho de leitura e pesquisa, feito em livros, jornais, revistas e outros documentos que, por alguma forma, estivessem relacionados com a história de Tavarede.

         O mesmo aconteceria, com toda a certeza, a qualquer outro que ao mesmo assunto dedicasse algum do seu tempo disponível. Talvez, e acredito que sim, eu tenha um tempo mais disponível. Mas, repito, tenho-me sentido fascinado nestas minhas buscas, pois, a verdade seja dita, a nossa terra tem um passado histórico, social e cultural de que nós, tavaredenses, nos devemos legitimamente orgulhar.

         Pena é que quase todo esse passado seja, no presente, praticamente desconhecido de todos os filhos de Tavarede, aqui residentes ou não. E, na verdade, a nossa terra, com a transformação que nela se operou nestes últimos vinte a trinta anos, já muito pouco tem que desperte a curiosidade a alguém para conhecer o seu passado.

         Nós, os mais velhos, ainda recordamos o prazer que sentiamos em dizer, quando isso nos perguntavam, que éramos tavaredenses, naturais de Tavarede, a pequena e linda aldeia do limonete. Agora, não. O isolamento desapareceu e a integração no perímetro da cidade da Figueira da Foz teve, como consequência, uma modificação total na maneira de ser e viver dos tavaredenses. A cidade, pouco a pouco, tudo nos foi absorvendo.

         Além da imensa vastidão de terrenos que a Figueira fez desanexar de Tavarede, também “obrigou” os tavaredenses a modificarem as suas actividades sociais e culturais, levando-os a esquecer as suas raízes aldeãs e campesinas, e a adoptar os novos sistemas citadinos. Quanto à história, isso... já tinha passado à história no longínquo dia de 12 de Março de 1771, quando o governo de então resolveu elevar a vila o lugar da Figueira da foz do Mondego, transferindo para lá a nossa câmara e as nossas justiças.

         Não admira, portanto, que o passado de Tavarede esteja esquecido. Até porque não há muita coisa escrita sobre a nossa terra, isto de forma acessível, pois quem se der ao trabalho de pesquisa encontra muito material, e bastante interessante, embora de difícil consulta.

         Foi o desejo, que sempre tive, de conhecer melhor o passado da minha terra e de o deixar escrito, de forma simples e acessível, a um ou outro familiar ou amigo que um dia queira dar “uma vista de olhos”, que me levou a esta imensa, mas, ao mesmo tempo, gratificante, tarefa.

         Tinha proposto a mim próprio, e assim o referi nos dois cadernos já publicados, fazer apenas um resumo, acompanhado das necessárias transcrições, do que fosse encontrando, e que me parecesse de interesse, sobre o passado de Tavarede.

         Aconteceu, no entanto, que determinados assuntos ou temas, que reputo de muito interesse para quem queira conhecer a história passada da terra do limonete, não poderiam ser integrados naqueles cadernos que intitulei “Tavarede – a terra de meus avós”, pois que, só por si, ocupariam demasiado espaço e, até, seriam descabidos. Mas, também, não os poderia ignorar, pura e simplesmente, se a minha intenção era a divulgar todo o material histórico, social e cultural a que eu tivesse acesso.

         E foi assim que me surgiu outra ideia. Porque não fazer destes assuntos, que por mera opção pessoal me parecem dignos de ser recordados, uns outros cadernos bem mais pequenos e acessíveis?

         Assim pensei e assim fiz. E surgiu uma outra série de pequenos cadernos, tão despretenciosos uns quanto os outros, a que dei o título de “Recordando...”, de que este é o segundo.

         Curiosamente, e se o primeiro diz respeito ao teatro, pois que tive o gosto de o dedicar a essa extraordinária amadora dramática tavaredense que se chamou Violinda Nunes Medina e Silva, o segundo também o dedico a essa grande e querida tradição da minha terra.

         Não ignoro que é demasiado arriscado escrever sobre o passado teatral em Tavarede. É que esse passado, digo mesmo, esse glorioso passado de tão cultural Arte, é, talvez, o mais honroso e o maior emblema da terra do limonete. Mas, descanse quem tiver a paciência de ler estas linhas, também me não atrevo a tanto.

         É que, nunca será demais recordá-lo, Tavarede teve o orgulho e o privilégio de ter como filho, um verdadeiro Homem de Teatro, um Mestre na arte cénica que, tão assombrosamente, elevou o teatro tavaredense ao mais alto nível no nosso país. E escrever sobre o teatro em Tavarede será, na sua maior parte, escrever a história de Mestre José da Silva Ribeiro, inegavelmente o maior vulto da cultura tavaredense, não contemporânea mas de todos os tempos. Para tal terá de ser alguém com saber, engenho e tempo disponível para escrever uma bem enorme obra, tanto há a referir sobre este assunto, desde os finais do século dezoito até quase aos finais do século vinte, ou seja, duzentos anos de teatro em Tavarede!

         Mas acredito sinceramente que já não será ousadia da minha parte, pelo menos indesculpável, escrever alguma coisa, não sobre o teatro em Tavarede mas, sim, sobre Tavarede no teatro. É coisa completamente diferente. Enquanto a história do teatro em Tavarede abrange um vastíssimo universo, Tavarede no teatro tem um campo relativamente curto, isto só em termos de comparação.

         Facilmente se depreende que, o que pretendo recordar neste pequeno caderno, são as peças (revistas, fantasias ou operetas) que tenham sido escritas para Tavarede, para serem apresentadas no seu palco e aos seus conterrâneos e nas quais, os seus autores, afloraram a vida na terra do limonete.

         E referi “no seu palco” pois, embora o teatro não tenha sido um exclusivo, em Tavarede, da Sociedade de Instrução, pois a sua história começa bem antes da fundação desta colectividade, as peças em questão foram escritas para serem representadas pelo grupo cénico desta colectividade.

         Não há notícia de que nas pequenas sociedades dramáticas, que em meados do século dezanove, “vegetavam em Tavarede como tortulhos”, ou nas posteriores associações “Estudantina” ou “Grupo de Instrução”, desaparecidas nos primeiros anos do século vinte, e, também, no Grupo Musical e de Instrução, felizmente ainda em actividade, embora não teatral, mas que teve um excelente grupo dramático desde a sua fundação, em 1911, até ao ano de 1930 em que, por motivos que tentarei explicar num outro trabalho, deixou de ter condições para fazer teatro, se representassem quaisquer trabalhos de características locais.

Talvez que ao tão afamado “Presépio” tenham dado, num ou noutro quadro ou cena, algum sabor local, mas, pelo menos em tudo o que li, não encontrei nada de concreto. Não esqueçamos, no entanto, que por volta de 1870, se representaram em Tavarede, e em simultâneo, seis Presépios! Quem nos diz que uma das cenas, num deles, não tinha sido localizada na nossa terra pelo respectivo encenador, até para dar mais entusiasmo aos seus assistentes?

         Mas vou prosseguir. Curiosamente, o tema que estou a tratar, “Tavarede no Teatro”, tem duas épocas, ou vertentes, como agora se diz, absolutamente distintas. Uma delas, a primeira, que vai até à década de 1930/1940, é exclusivamente dedicada à fantasia e à vida e costumes do povo tavaredense de então. Como adiante veremos, teve três autores: João dos Santos, João Gaspar de Lemos Amorim e José da Silva Ribeiro, e ainda uma ligeira participação do saudoso prof. Alberto de Lacerda. Isto quanto ao texto, pois na parte musical teve a intervenção de Gentil da Silva Ribeiro e do prof. António Maria de Oliveira Simões.

         A segunda época, bem mais recente e que se iniciou, em Outubro de 1950, com a célebre fantasia “Chá de Limonete”, é toda ela da autoria de Mestre José Ribeiro que, com o seu enorme talento e inteligência, se serviu deste género teatral para dar a conhecer aos seus conterrâneos a história de Tavarede, escrevendo e encenando, como só ele o sabia fazer, dez revistas-fantasias, em que descreveu alguns dos mais importantes acontecimentos históricos da nossa terra e recordando tradições, usos e costumes ignorados pelos tavaredenses a quem ele, de maneira tão feliz, os deu a conhecer. Musicalmente, teve a colaboração nestes trabalhos do prof. António Simões, de Anselmo Cardoso Júnior e de João da Silva Cascão, aquele também uma dedicação de muitos anos à nossa terra, e este último, que se pode considerar um tavaredense, e que muito se tem distinguido na música.

         Pois bem, refiro, desde já, que este meu trabalho, ou melhor, este meu estudo, se debruçou unicamente sobre a primeira daquelas duas vertentes. Os meus conterrâneos mais “entradotes” na idade, ainda se lembrarão de “O Sonho do Cavador”, de um ou outro quadro de “A Cigarra e a Formiga” e pouco mais. Mas, e isso com toda a certeza, se lembram de muitas cantigas que foram escritas para as primeiras revistas e operetas sobre Tavarede.

         Ainda hoje, quando se representam espectáculos de evocação, se ouvem muitas dessas cantigas, sempre com o maior agrado. Nos meus tempos de rapaz, cantava-se muito em Tavarede. Na lida da casa, na costura, enquanto lavavam no rio ou andavam nas tarefas das sementeiras ou colheitas, cantava-se, e cantava-se com alegria

         A maior parte dessas cantigas, senão mesmo todas, eram do teatro. As mais velhas, entoavam as cantigas dos seus tempos da mocidade, aquelas que mais lhes tinham agradado e que recordavam com saudade. As mais novas, cantavam as lindas canções de “O Sonho do Cavador” e de outras peças mais recentes. Todas elas, no entanto, muito bonitas, cheias de melodia, cantando, quase sempre, a vida do campo, nas suas fainas alegres e tarefas rudes, e a rusticidade da nossa aldeia pequenina mas bem pitoresca.

         Até nisso houve uma grande modificação. Já se não ouvem cantigas nas ruas de Tavarede; o rio, ou antes, o pequeno ribeiro, já não tem lavadeiras a quem “fazia cócegas nas pernas”; as terras, na sua maioria, já não são cultivadas. E aquela alegria que tão própria era do povo da minha aldeia, também essa, infelizmente, nos foi tirada pela cidade.

         E agora reparo: o que eu me alonguei nesta explicação que eu pretendia ser tão
pequena. Chega, e vamos, então, a “Tavarede no Teatro”.

sábado, 6 de junho de 2015

Tavarede - a terra de meus avós - 9

O Carnaval

        
Tavarede nunca foi uma terra muito dada a festas carnavalescas. Curiosamente, as cegadas ou mascaradas apareciam, na nossa terra, nas cavalhadas que se organizavam pelo S. João. Era nesses cortejos que, através de máscaras, se criticavam ou satirizavam algumas figuras públicas. De resto, e pelo que encontrei, o Carnaval somente era lembrado nas colectividades, com bailes em que havia sempre concurso de mascarados, com prémios aliciantes, e com notícias picarescas e jocosas que os correspondentes locais publicavam nos periódicos figueirenses.

         Mas, e pelo menos na década dos anos trinta do século passado, já em Tavarede havia umas amostras de brincadeiras de Carnaval. Algumas mascaradas, umas mais interessantes e outras nem tanto, um ou outro assalto, mais ou menos consentido, na busca de merenda e uma ou outra brincadeira mais ou menos inocente.

         Como divertimento mais interessante, recordo o “caqueiro”. Naqueles tempos as casas não tinham água canalizada, pelo que todos os dias, à tardinha, lá iam, novas e velhas, com os potes e cântaros, buscar água à fonte. Estas vasilhas, de barro encarnado, conservavam a água fresca durante muito tempo. Mas, e como lá diz o ditado, “tantas vezes o cântaro vai à fonte que lá deixa a asa”, acontecia, não deixar a asa, mas como eram muito frágeis, à mais leve pancada rachavam e ficavam inutilizados para os seus fins.

         Não eram deitados fora. Guardavam-se a um canto até ao próximo Carnaval. Quando o dia chegava, grandes grupos de rapazes e raparigas formavam uma roda na rua e divertiam-se jogando ao “caqueiro”. Os potes e cântaros inutilizados, e até caçoilas, algumas bem negras de fumo das lareiras, eram atirados à roda até que algum ou alguma mais desajeitada o deixava cair, desfazendo-se em cacos. Bastava, nalguns, o simples impulso para se partirem ao serem agarrados. Por vezes, e por partida, punham água dentro e então era banho certo para quem o agarrava.

         É claro que a água era o elemento principal das brincadeiras carnavalescas. A água e a farinha. Não era raro sair de uma janela uma bacia de água e quem apanhava… apanhava, claro. Depois, enquanto o atingido procurava sacudir a água que lhe caíra em cima, vinham, por trás, um grupo de raparigas mais atrevidas, esfregar-lhes a boca e cara com as mãos cheias de farinha. Outras vezes eram os rapazes que o faziam às raparigas… Com o correr dos anos, tais brincadeiras desapareceram e os potes acabaram em Tavarede, com a água canalizada nas casas.

         Num determinado ano, em dia de Carnaval, uma pequena comitiva estabeleceu arraial na rua Direita, frente à loja que à data era do Guerreiro. Devidamente enfarpelado, de chapéu alto e casaca, com um enorme “papillon”, resolveu ir dar consulta e fazer reclame da sua técnica e muita sabedoria o afamado dentista doutor Ernesto Búzio. Os seus acompanhantes, enfermeiros e auxiliares, montaram o consultório. Pouco depois, estava o sábio doutor a fazer a propaganda dos seus dotes técnicos, apareceu o primeiro, e por acaso o único, paciente, por sinal bem paciente, pois, apesar da cabeça apertada por vistoso cachené, gritava que nem um desalmado, tais seriam as dores do maldito dente…

         Era a oportunidade desejada pelo doutor Búzio para mostrar as suas elevadas qualidades. Sentado o doente, dada a anestesia local com uma enorme seringa, com muito jeito consegue meter-lhe na boca os bicos duma tenaz e, num brusco movimento, consegue arrancar-lhe… a dentadura postiça. O doutor Ernesto Búzio foi  desempenhado por António Simões, cantoneiro, e o paciente, que efectivamente tinha dentadura postiça, foi meu pai, Pedro Medina. A festa acabou no quintal da referida loja, com farta merenda.

         Um outro episódio carnavalesco que me recordo não acabou tão bem. Desta vez  foi frente à loja de António Pedro Carvalho. Resolveram fazer uma tourada! Um dos intervenientes havia conseguido, por empréstimo, uma armação figurando uma cabeça de touro, que havia no Coliseu Figueirense. O escolhido para fazer de touro foi Luís Mineiro, ferroviário, morador no Casal do Rato. Brinca, brincando, tudo ia correndo bem, com mais passe por alto, menos passe por baixo, até que, entusiasmado ou espicaçado pela assistência, resolveu investir com tal violência, contra um dos improvisados toureiros, que este teve de ser levado de imediato ao hospital da Figueira, onde lhe foi diagnosticada fractura de uma clavícula!

         De vez em quando fazíamos pequenas cegadas. Algumas vezes, e sem autorização, conseguíamos mascarar-nos com fatos do guarda-roupa do teatro. Uma noite conseguimos as fardas de soldados da peça “Justiça de Sua Majestade” e fomos, Saltadouro acima, fazer uma cegada a Brenha, ao Taborda. Com pífaros e instrumentos de cana, fizemos sucesso e muito barulho. É que até levámos o bombo grande da

colectividade. Levámos… é uma  maneira de dizer. Quem o levou e o trouxe às costas, foi o “Tó Parreco”, a quem conseguimos confiar o encargo…

         O badalo também era uma das partidas mais desejadas pela rapaziada. Normalmente a porta de entrada das casas tinham um fecho e aí era pendurada, com um grosso cordel, uma pesada pedra. Um outro cordel era preso a este fio e esticado até à esquina mais próxima, onde, escondidos, puxavam a pedra que batia com força na porta. Alguns, e com toda a razão, digamos, afinavam com esta brincadeira. Às tantas da noite fazerem uma barulhada daquelas à porta, precisamente quando estavam a descansar…








O Associativismo na Terra do Limonete -131

         Ainda em 2007, o teatro tavaredense, através da associação do Terreiro, deslocou-se, pela segunda vez, ao estrangeiro. Foi a Espanha e  aqui fica a notícia. A Sociedade de Instrução Tavaredense está neste momento inserida num projecto concebido pela Escola da Noite a convite da Delegação Regional da Cultura do Centro e que decorre ao longo do ano de 2007.
         Estão envolvidos cinco grupos de teatro da região centro e a matéria teatral sobre a qual se debruça este projecto é constituída por oito peças em um acto de Anton Tchekov.
         Coube à SIT representar as peças ‘O pedido de casamento’ e ‘O urso’, as quais já foram apresentadas em Caceira, no âmbito das jornadas do Teatro Amador e também em Valladolid, e no Centro Cívico Bailarin Vicente Escudero.  Esta deslocação foifeitaaconvite da Delegação Regional da Cultura do Centro que mantém um intercâmbio

         Coube também à SIT encerrar o Festival de Teatro Amador de Castilla y Léon 2007. Segundo fonte da colectividade de Tavarede, ‘a actuação aconteceu perante uma sala repleta de espectadores, alguns dos quais especialistas em teatro, mas desconhecedores da nossa língua, o que foi para os amadores da SIT um enorme desafio apresentar o seu espectáculo. Contudo, fizeram-no com enorme brilhantismo, tendo, inclusivamente, sido interrompidos por uma ocasião.
         A forma entusiástica como foram aplaudidos e felicitados demonstra bem o agrado com que o nosso trabalho foi recebido’.
         O próximo dia 19 de Maio, pelas 21,30 horas, haverá de novo Tchekov na SIT, sendo talvez esta última representação em Tavarede devido a compromissos já assumidos em termos de itinerância.

         Também aqui registamos mais uma pequena nota, recolhida da reportagem escrita sobre as festas comemorativas de mais um aniversário do Clube Desportivo e Amizade do Saltadouro. ...’ trabalho e união de muita gente para discutir como fazer mais e melhor para o Saltadouro’. A colectividade tem como objectivo ‘possibilitar que as pessoas se encontrem umas às outras para além das acções que desenvolvem’. Na sessão solene de 2009, ‘... para o CDAS que estava com dificuldade na constituição das direcção. É uma satisfação trabalhar nesta colectividade pelo amor ao associativismo, sem esquecer o trabalho inexcedível da família Serra’, disse o novo presidente.
         Como obras necessárias apontou-se a necessidade de ampliação da sede. Falta um salão de ensaios, um armazém dos apetrechos do Rancho dos Cavadores do Saltadouro e uma sala de exposições que permita dar visibilidade ao rico espólio.

         E, para acabar este capítulo, é a altura de nos debruçarmos um pouco sobre o centenário do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense.

         Com a simplicidade que é tradicional na longa vida do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, foram festejados, em Agosto de 2011, os primeiros cem anos desta associação. Foram comemorações simples, mas que tiveram a dignidade que o brilhante passado da colectividade merecia.
        
         Dentro do programa, que além da confraternização dos seus sócios e simpatizantes, teve diversos acontecimentos desportivos e recreativos, de que destacamos o espaço dedicado ao folclore, houve dois eventos destacados, a publicação de um livro historiando a vida da colectividade e a sessão solene do centenário.

         No decorrer dos cadernos destas memórias e histórias do associativismo na nossa terra, temos descrito, de forma sumária mas baseada em elementos concretos, a vida e a obra desenvolvida por todas as associações da freguesia, embora nos tenhamos debruçado mais pelas duas colectividades aldeãs. É um facto real e indesmentível a sua acção no desenvolvimento social, cultural e educativo que desempenharam ao serviço dos tavaredenses.

         Certamente que ainda estarão recordados daquilo que foi lembrado da vida do Grupo Musical agora centenário. Houve períodos difíceis, é certo, mas os grupistas, sempre com uma dedicação invulgar, tiveram a coragem suficiente para as ultrapassar. A actual sede da colectividade é a quarta sede da colectividade. E se a primeira era um pequeno e modesto ‘cardanho’, a actual é uma obra de que a própria vila de Tavarede se pode orgulhar.


         O seu teatro, que alcançou êxitos enormes, não só localmente mas em muitos palcos onde actuou e a sua tuna ‘a mais completa e bem organizada do concelho, foram evocações especializadas na sessão solene comemorativa, durante a qual se registaram muitas declarações de apreço pela actividade desenvolvida pelo Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, no decurso do tempo decorrido desde 17 de Agosto de 1911, data escolhida para a fundação, até à actualidade. Esta boa actividade não foi esquecida pelas autoridades locais e concelhias presentes no evento.



    Associativismo em Tavarede...
                 ... até quando?...



         À pergunta ‘O Associativismo na Terra do Limonete (Tavarede) até quando?’,  com a qual titulámos este nosso último capítulo destas “Memórias e Tradições”, ocorre-nos, de imediato, responder: “Até sempre!”.

         Porquê? Pela simples razão de acreditarmos sinceramente que o homem, como ser humano, racional e inteligente, já aprendeu que o isolamento, por muito cómodo que seja, não é futuro. Mas, vejamos primeiramente o que é o Associativismo. “É o sistema dos que se encontram unidos por um ideal ou objectivo comum. É o movimento que fomenta a proliferação de associações com o objectivo de atingir, solidariamente, finalidades comuns quer revertem a favor dos seus membros”.

         Transcrita esta descrição de Associativismo, debrucemo-nos então sobre o mesmo na nossa terra. Já sabemos que terá tido os seus inícios nos fins do século dezoito ou no princípio do século dezanove. Tavarede vivera, até pouco tempo antes,  num verdadeiro regime feudalista, sob o qual a família Quadros ‘reinava’ despoticamente na aldeia, aliás, também subordinada ao Cabido da Sé de Coimbra, devido à doação que lhe havia sido feita séculos atrás.

         A libertação do povo tavaredense ocorreu em 1771, com a elevação do lugar da Figueira da foz do Mondego a vila e com a transferência para lá da câmara e justiças que, havia séculos, estavam sedeadas em Tavarede. O povo, contudo, encontrava-se num verdadeiro estado de ignorância total.

Mas, apesar de abrigada dos ventos do norte pela encosta serrana, a nossa terra não escapou aos revolucionários ventos que, provindos especialmente de França, terão espalhado por todo o lado as três mágicas palavras: liberdade, igualdade e fraternidade. Porém, se esta trilogia era por todos ambicionada, qual seria a melhor maneira de a conseguir?

Como sabemos, a liberdade só tem sentido se a soubermos gozar dentro dos limites que vão até ao caso de com ela não prejudicarmos ou lesarmos o nosso próximo. A igualdade leva-nos a admitir que todos nascemos iguais e que assim deveremos morrer, pelo que os direitos e regalias devem ser iguais para todos, independentemente do seu nascimento.  E quanto  à fraternidade, as relações harmoniosas e a convivência amigável entre as pessoas e as comunidades onde estão inseridas, são a sua razão principal.

 E se a Declaração Universal dos Direitos do Homem estipula que ‘toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas’, a própria Constituição da República Portuguesa diz que ‘os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização constituir associações, desde que estas não se dediquem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei’.

Ora isto tudo é bastante claro para todos nos dias de hoje. Mas, há duzentos e tal anos, o povo vivia, na sua grande maioria, em total ignorância, sem ter quaisquer possibilidades de adquirir conhecimentos sobre a realidade da vida, uma vez que o seu analfabetismo o não permita. Daí que os trabalhadores, quase todos rurais, procurassem refúgio nas tabernas, nas suas horas vagas e habitualmente depois de comida a parca ceia. Prejudicial para ele e sua família, devido ao consumo excessivo de alcool e ao jogo desenfreado, só disso beneficiava o taberneiro.

E, segundo se sabe, eram vícios que estavam bem arreigados aos nossos antepassados. Felizmente, aquelas palavras acabaram por trazer novos procedimentos e novos costumes. Alguns mais abastados, que tinham tido a possibilidade de se educar e instruir na cidade vizinha, iniciaram uma luta verdadeiramente titânica. Primeiro em família e, depois, com amigos e vizinhos mais chegados, começaram a reunir-se e a conviver em sociedade nos seus tempos vagos.

Não bastava, no entanto, atrair os seus conterrâneos. Era preciso, além de lhes acabar com aqueles nefastos vícios, começar a dar-lhes alguma instrução e educação Escolheram o teatro como o veículo indicado. Terá sido assim que nasceu o associativismo em Tavarede. Os humildes ‘cardanhos’ proliferaram. Com os ensaios e com as representações, o povo começou a gostar de ver e aprender. Já sabemos o percurso feito. Com o teatro veio a música. Com as humildes associações, ‘que vegetavam em Tavarede como tortulhos’, veio o ensino noturno das primeiras letras. Mesmo aqueles que pouco sabiam procuravam ensinar esse pouco áqueles que nada sabiam.

O teatro cresceu muito e a música, durante muitas décadas, também teve enorme adesão. Igualmente se deu o mesmo com o folclore, com o desporto e com outras actividades sociais.

É agora que nos resta lançar a tal pergunta: até quando? Atrevemo-nos a repetir: até sempre! O associativismo está definitivamente impregnado nos tavaredenses. Embora neste momento, que julgamos transitório, o isolamento seja uma realidade, não acreditamos que o espírito de união, de convivência e, até, de solidariedade, não volte a adquirir a força e o entusiasmo de antigamente.

         Bem sabemos a enorme diferença que se verifica entra as vidas actual e antiga. Mas, voltamos a repetir, acreditamos que o presente fenómeno do isolamento e da solidão familiar seja transitório. E nas diversas vertentes do associativismo na terra do limonete. Vejamos:

Em prmeiro lugar o teatro. Mais antiga tradição em Tavarede, lembramo-nos das palavras que José Ribeiro pôs na boca da velha figura teatral na ‘histórica’ fantasia ‘Chá de Limonete’: - Sou velho, sim! Mas sou eterno! Sofro o desprezo, o esquecimento da multidão, mas guardo em mim a essência da própria vida. O teatro não morre!’

As nossas actuais associações e, felizmente, são cinco, continuam a tradição. De igual modo a música e o folclore. Já não temos a célebre tuna de Tavarede, nem os ranchos da Alegria e da Flor da Mocidade. Mas quase todas as nossas associações de cultura  popular e recreio têm escolas de música, com bastante frequência, e o folclore é uma realidade com os seus ranchos. Grupos de dança e corais igualmente existem em actividade. Será ‘carolice’ dos mais velhos? Não, é o espírito associativo que em Tavarede, na velhinha Terra do Limonete, continua e continuará sempre vivo. A mocidade actual, com ou sem a experiência dos mais velhos, não deixará acabar na nossa terra este sublime ideal: o ASSOCIATIVISMO.




As associações de cultura e recreio populares em Tavarede:




Bijou Tavaredense (acabou)


Estudantina Tavaredense (acabou)


Grupo de Instrução Tavaredense (acabou)


Sociedade de Instrução Tavaredense
15.1.1904


Grupo Musical e de Instrução Tavaredense
17.8.1911


União Instrução e Recreio Robalense (acabou)


Grupo Musical Carritense
5.8.1921


Grupo Desportivo e Amizade do Saltadouro
11.3.1979


Clube Desportivo e Recreativo da Chã

1.5.1986